Houve um tempo em que uma das maiores estrelas das aulas de ciência, dos vestibulares e dos concursos públicos era uma ovelhinha escocesa com nome de cantora country.
Dolly, o primeiro mamífero clonado da história, em 1996, conseguiu se enfiar de tal maneira na consciência coletiva da humanidade que a ideia de copiar geneticamente outro mamífero – o ser humano – virou até tema da novela das oito (O Clone, exibida pela Globo em 2001).
Quase 30 anos após o nascimento daquela ovelha, porém, clonar gente continua não passando de ficção científica, e não há o menor sinal de que isso vá mudar tão cedo. Seria a clonagem a maior flopada da biotecnologia em todos os tempos?
Bem, mais ou menos. Embora a produção de clones tenha perdido o estrelato científico de que gozava no começo deste século, ela foi um dos motores por trás do avanço de uma compreensão muito mais ampla sobre como eu, você e todo mundo que já viveu surge a partir de uma única célula. Esse conhecimento ainda não virou uma máquina de salvar vidas na escala que se imaginava possível quando Dolly veio ao mundo, mas a promessa de que isso aconteça continua um bocado viva.
Além desse lado cientificamente sólido, porém, as promessas da clonagem também se transformaram, durante anos, num terreno fértil para a germinação de picaretas e escroques de diversos tipos.
A maioria deles nunca chegou a ser levada a sério por mais do que cinco minutos, mas ao menos um desses sujeitos conseguiu engambelar o governo de seu país e algumas das publicações científicas mais nobres do mundo antes de cair do seu pedestal. Esses, portanto, são os dois lados da moeda na história da clonagem: revolução biológica e cara-de-pau estelionatária – vez ou outra, bastante misturadas.
No princípio era o sapo
Apesar da fama global da ovelhinha escocesa, uma das grandes ironias dessa história é que Dolly e os responsáveis por seu nascimento, os cientistas britânicos Ian Wilmut e Keith Campbell, foram solenemente esnobados pelo comitê do Prêmio Nobel e morreram (em 2023 e 2012, respectivamente) sem levá-lo para casa.
O único ganhador do Nobel que pôs a mão na massa em trabalhos com clones também era britânico, mas mexia com um bicho bem menos fofucho que Dolly: uma rã africana do gênero Xenopus – basicamente a versão anfíbia de um camundongo de laboratório.
Sir John Bertrand Gurdon, que tem 90 anos no momento em que escrevo esta reportagem, foi o primeiro a realizar com sucesso a clonagem de um vertebrado. Em 1962, trabalhando na Universidade de Oxford, Gurdon extraiu o núcleo de um óvulo da rã e o substituiu com o núcleo de uma célula do intestino de um girino de Xenopus.
A “cirurgia celular” [veja no infográfico abaixo como é feita a clonagem de um animal] funcionou: a nova célula híbrida começou a se desenvolver e a se dividir normalmente, dando origem a uma rã adulta.
Se nada disso parece particularmente emocionante, vale a pena colocar as coisas em contexto. Em 1962, fazia menos de dez anos que a ciência tinha finalmente começado a entender como o DNA (o “morador” ilustre do núcleo celular) funcionava. Faltavam, no entanto, inúmeras peças desse quebra-cabeças.
A engenharia genética ainda era um sonho longínquo. Mas a troca de núcleos nas células de rã havia demonstrado um fato intrigante: cada uma das unidades básicas do organismo do bicho ainda parecia conter, em seu núcleo, tudo o que era necessário para construir o corpo dele de novo, do zero.
Aquilo confirmava o papel do DNA como “livro de receitas” dos seres vivos. (Como veremos ao longo deste texto, essa analogia é uma simplificação grosseira, mas vamos usá-la por enquanto.) De quebra, abria a possibilidade de entender os detalhes da relação entre o “livro de receitas”, de um lado, e o “bolo” (o bicho adulto, no caso), de outro.
Por exemplo: se você transferisse o núcleo de células do mesmo girino cem vezes e criasse cada um dos girinos clonados em águas com diferentes concentrações de poluentes, as rãs adultas seriam idênticas entre si (sinal de que o DNA estava no volante do ônibus do desenvolvimento), totalmente diferentes umas das outras (indício de que a influência do ambiente era soberana) ou algum meio-termo?
E com suas células e tecidos (músculos, nervos, ossos etc.), haveria diferença? Vale lembrar que o truque de Gurdon com suas Xenopus aconteceu poucos anos depois dos primeiros transplantes bem-sucedidos de órgãos.
Para os médicos, já estava claro fazia muito tempo que a maior barreira para esse tipo de tratamento era a rejeição: o corpo do doente “sabia” que o órgão doado vinha de um organismo estranho e começava a destruí-lo. Mas e se, como tudo indicava, um clone fosse biologicamente indistinguível do organismo “original”?
Nesse caso, seria possível criar tecidos e órgãos a partir dele e realizar transplantes sem risco de rejeição. Mas é óbvio que tudo isso não passava de especulação maluca na época em que os Beatles estavam na ativa. Alguém mais cético poderia ter listado um caminhão de fatores pelos quais não daria para esperar que aquela mágica operada nas rãs se repetisse com mamíferos.
Para começar, os óvulos de anfíbios costumam ser enormes, o que facilita muito a manipulação deles. Em segundo lugar, o “transplante de núcleo” feito por Gurdon usou células de um girino – a rigor, uma forma larval do bicho, que estaria mais próxima de um embrião humano, digamos.
Talvez a versatilidade do DNA fosse diminuindo até sumir de modo quase irreversível num adulto “de verdade” – ou, pelo menos, diminuísse de modo a impedir a reconstrução do organismo inteiro a partir de uma só célula. Ou talvez o funcionamento das células de anfíbios fosse simplesmente diferente do que se vê em mamíferos.
Aos poucos, as décadas seguintes foram respondendo várias dessas dúvidas, em grande parte graças ao avanço das técnicas de manipulação de embriões de mamíferos. Nos anos 1980, vários grupos de pesquisadores nos EUA identificaram a existência das chamadas células-tronco embrionárias – cerca de uma centena de células, presentes nos embriões com poucos dias de vida, dotadas da chamada “pluripotência”.
Trata-se do superpoder biológico por excelência: a capacidade de a célula se diferenciar e dar origem a qualquer componente do organismo. De alguma forma, a clonagem parecia capaz de fazer com que uma célula adulta, que já era o produto de muitas divisões e processos de especialização, recuperasse a pluripotência.
–Clonar um mamífero demonstraria a capacidade de recriar a mágica da pluripotência em laboratório. Mas também já dava para imaginar outra aplicação prática da clonagem: a produção de alimentos. Talvez você já tenha ouvido falar da importância dos cruzamentos para a qualidade do leite, da carne e de outros produtos de origem animal.
É por isso que uma quantidade absurda de bezerros e bezerras nascidos hoje são fruto de inseminação artificial e descendem de relativamente poucos touros: as fazendas selecionam os reprodutores que possuem as qualidades genéticas desejadas. A clonagem poderia aperfeiçoar esse processo: o produtor ganharia não só um bicho que, com alguma sorte, “puxaria” as qualidades do papai ou da mamãe, mas um(a) bezerro(a) geneticamente idêntico ao original.
Mas não era só isso. Nos anos 1990, despontavam no horizonte as primeiras tentativas de modificar geneticamente animais de criação com objetivos comerciais: de novo, maior produtividade; quiçá leite e carne mais saudáveis; e até coisas mais malucas, como a produção de substâncias de outros seres vivos no leite, digamos, usando vacas ou cabras como “biofábricas”.
Dava um trabalho dos infernos alterar geneticamente o primeiro bicho, e havia o risco de seus filhos não nascerem com a característica desejada. Se fosse possível cloná-lo “em massa”, o problema estava resolvido.
E tudo isso nos leva de volta à nossa querida Dolly, gerada a partir do núcleo de células das mamas de uma ovelha adulta, e nascida em 5 de julho de 1996. (Daí o apelido da ovina, uma referência aos seios fartos da cantora americana Dolly Parton – hoje uma senhora de 78 anos.)
Não foi por acaso que o Instituto Roslin, onde a ovelha nasceu, perto de Edimburgo, recebeu financiamento do Ministério da Agricultura britânico e de uma empresa de biotecnologia, a PPL Therapeutics. Havia um evidente interesse comercial.
Mas com o nascimento de Dolly e, pouco depois, de outros mamíferos clonados, como camundongos, ratos, gatos e bovinos, algumas coisas foram ficando claras. Uma das mais importantes, e que praticamente não mudou do fim dos anos 1990 para cá, é a gigantesca ineficiência do processo.
A ética e a prática
A trabalheira necessária para clonar um mamífero começa com a necessidade de obter centenas de óvulos. Desses, apenas algumas dezenas geram embriões viáveis, que possam ser transferidos para uma “mãe de aluguel”. E, dessa batelada de gestações, é comum que apenas uma ou duas acabem desembocando no nascimento de um filhote – isso quando o filhote não morre poucas horas depois de nascer.
A principal razão para tanta dor de cabeça leva o nome de imprinting, ou “estampagem epigenética”. Em grego, o prefixo epi equivale mais ou menos ao nosso “sobre” ou “em cima”. Ou seja, os fenômenos epigenéticos dizem respeito ao que acontece “por cima” da genética – como a ativação ou desativação dos genes contidos no DNA.
Quando um óvulo é fecundado por um espermatozoide do jeito tradicional, existe toda uma programação celular epigenética, cujo papel é “etiquetar” o DNA de origem materna e paterna. Isso porque, é claro, mamíferos como nós costumam receber metade de seu DNA do pai, e a outra metade, da mãe, com duas cópias diferentes de um mesmo pedaço de informação.
Em certos trechos do nosso genoma, a estampagem genética usa pequenos compostos químicos, como o grupo metil (um átomo de carbono ligado a três de hidrogênio), para impedir que aquele pedaço de DNA seja “lido” pela célula. É como se ele ganhasse uma etiqueta dizendo, digamos: “DNA de origem paterna. Favor ignorar e usar somente o de origem materna”. E vice-versa.
Acontece que a clonagem atrapalha esse processo. O imprinting tende a sair todo bagunçado, e é bem difícil acertá-lo manualmente, ao menos com a tecnologia que temos até hoje. É por isso que, com frequência, animais clonados têm problemas de desenvolvimento, com fetos grandes ou pequenos demais, gestações de risco, e saúde mais frágil até para bichos que aparentemente nasceram saudáveis.
A própria Dolly acabou sendo sacrificada pelo Instituto Roslin aos seis anos de idade (metade da expectativa de vida normal de uma ovelha) por estar com artrite severa e dificuldades respiratórias causadas por um câncer de pulmão. A equipe escocesa afirmou, na época, que esses problemas poderiam ter vitimado igualmente uma ovelha gerada pelo método tradicional. Mas é difícil não achar que havia algo de significativo nesse fim prematuro da ovina-celebridade.
“Desde a clonagem da Dolly, havia a expectativa de que o processo se tornaria gradativamente mais simples e bem-sucedido. Entretanto, não foi o que aconteceu”, resume Stevens Kastrup Rehen, especialista em células-tronco e professor titular da UFRJ. “As taxas de sucesso seguiram baixas, além da descrição de anormalidades na placenta, problemas de imprinting e de saúde nos filhotes gerados.”
Com tanta dor de cabeça e incerteza sobre os reais efeitos da clonagem sobre o organismo de mamíferos geneticamente copiados, praticamente nenhum cientista respeitável se propôs a investigar a clonagem humana. Ou, ao menos, não a ponto de fazer com que um eventual embrião produzido por meio da técnica fosse implantado no útero de uma mulher e se desenvolvesse até nascer.
Mas a produção do embrião em si era outra história: ela foi bastante estudada e praticada em laboratório. Tanto que, para alguns pioneiros da biotecnologia, o certo seria abandonar o termo clonagem e adotar uma sigla mais limpinha e cheirosa – SCNT, ou “transferência nuclear de célula somática” – para descrever o processo.
Por essa visão, a SCNT seria o meio ideal para produzir células-tronco embrionárias geneticamente idênticas às de uma pessoa que está precisando de um transplante, por exemplo.
Elas seriam cultivadas em laboratório, se transformariam em determinados tecidos (como células do pâncreas capazes de produzir insulina para diabéticos) e seriam reintroduzidas no corpo do paciente sem risco de rejeição. No papel, parecia lindo, embora houvesse diversos obstáculos práticos – muitos dos quais persistem até hoje.
Também havia outro problema a resolver: as questões éticas. Para muitos ativistas e políticos antiaborto, por exemplo, não havia diferença substancial entre um embrião humano que surgisse a partir de uma fecundação natural e um outro produzido via SCNT.
Para eles, ambos eram dotados de idêntica dignidade humana e não podiam ser destruídos apenas para que os cientistas obtivessem células-tronco.
A pressão política contra o uso de embriões nesse tipo de experimento se tornou particularmente forte nos EUA – justamente o maior centro financiador de pesquisas biomédicas do mundo – durante os dois mandatos do presidente George W. Bush (de janeiro de 2001 a janeiro de 2009).
Bush baixou regras que impediam o uso de dinheiro do governo federal americano em estudos que envolvessem a destruição de quaisquer embriões humanos – inclusive, é claro, os clonados.
Ainda não era o fim da linha para a pesquisa com SCNT. Fora dos EUA ou usando financiamento privado, a corrida para produzir embriões humanos clonados e derivar células-tronco deles prosseguia. E, ao mesmo tempo, um pessoal de reputação duvidosa afirmava já estar pronto para ir muito além disso.
Os quatro salafrários
Nos primeiros quatro ou cinco anos deste século, dois pesquisadores que já tinham fama midiática, e uma seita com obsessão por ETs, fizeram um bocado de barulho ao afirmar que já haviam clonado seres humanos, ou estavam muito perto de fazê-lo.
Na Itália, os holofotes se voltavam para o médico Severino Antinori, especialista em reprodução humana que tinha se notabilizado na década de 1990 por conseguir que uma mulher de 63 anos engravidasse e desse à luz um bebê. No Kentucky (sul dos EUA), um fisiologista nascido no Chipre, chamado Panayiotis Zavos, de início colaborador de Antinori e depois seu rival, prometia, tal como o italiano, o nascimento de uma criança clonada para breve.
Mas os membros mais exóticos da lista eram os raelianos, seita fundada por “Raël” (pseudônimo do jornalista francês Claude Vorilhon) que pregava uma variante da crença nos “deuses-astronautas” – ou seja, a ideia de que a humanidade seria o resultado de um experimento feito por extraterrestres chamados Elohim (um dos nomes de Deus na Bíblia Hebraica).
Raël, que se dizia irmão de jesus cristo por parte de pai (um alienígena, claro), afirmou ter encarregado a química raeliana Brigitte Boisselier de clonar seres humanos como parte do projeto dos Elohim para levar a humanidade a um novo patamar evolutivo. Boisselier chegou a anunciar o nascimento de três crianças clonadas entre 2001 e 2003, mas as afirmações da seita sobre o tema nunca foram comprovadas.
Coisas muito parecidas aconteceram com Antinori e Zavos. Anuncio choc di Antinori: “Ho clonato l’uomo”, dizia a manchete de 12 de julho de 2002 do jornal Corriere della Sera, que quase não precisa de tradução e fica ainda mais dramática em italiano.
Antinori afirmava ter implantado embriões clonados no útero de três mulheres diferentes, e dizia que o primeiro dos bebês nasceria em janeiro de 2003. Mas, por motivos de confidencialidade, não poderia divulgar quem eram os pais.
Zavos adotou o mesmo figurino quando o entrevistei, em abril de 2002. Alegou que as pesquisas preliminares estavam indo às mil maravilhas e que esperava implantar os embriões no verão daquele ano. “Pode escrever aí que Zavos disse que 2003 vai ser o ano do clone!”, afirmou.
Ressaltou que os trabalhos estariam acontecendo fora dos EUA. “Mas não vou dizer onde, pois faria de você um homem rico com isso”, acrescentou. Provas de todo esse gogó? Mais uma vez, zero.
O prestígio dessas figuras duvidosas pareceu ter chegado ao fim em 2004. Foi quando um artigo publicado no periódico Science alçou ao estrelato global o veterinário coreano Hwang Woo-Suk, então pesquisador da Universidade Nacional de Seul.
Hwang e seus colegas afirmavam ter gerado células-tronco pluripotentes [capazes de se transformar em qualquer tecido, e portanto adequadas para transplantes] usando um embrião gerado por SCNT.
De quebra, disseram ter repetido o feito em maio de 2005, a partir de células doadas por 11 pacientes diferentes. Aquilo parecia dar mais peso à promessa da chamada “clonagem terapêutica”: embriões clonados cujas células poderiam ser usadas para tratar, sem risco de rejeição, cada um de seus doadores.
Durante alguns meses, Hwang se tornou o cientista mais requisitado do planeta. E a cereja do bolo veio com aquele tipo de notícia fofinha que todo mundo ficaria compartilhando feito doido, se as redes sociais existissem naquela época: o nascimento de Snuppy (o nome do bicho era a sigla da universidade coreana, SNU, mais a palavra puppy, “filhote” em inglês), o primeiro cachorro clonado. E o último grande êxito de Hwang.
Snuppy, de fato, era um clone. Mas todo o resto dos triunfos de Hwang veio abaixo, feito um castelo de cartas, naquele mesmo ano. Surgiram denúncias de que o sul-coreano ou seus assistentes mais próximos coagiam mulheres do laboratório a “doar” seus óvulos para pesquisa, e análises das células produzidas nos supostos experimentos de clonagem mostraram que elas não tinham sido criadas dessa maneira.
Ele perdeu todos os seus cargos e fontes de financiamento e nunca mais voltou a publicar estudos relevantes.
Recalculando a rota
Apesar dos insucessos (e picaretagens) nesses primeiros anos, todo o trabalho com as tentativas de fazer SCNT com células humanas, bem como o estudo das células obtidas diretamente de embriões normais, estava ajudando os cientistas a entender o que, no fundo, era o essencial da história.
Afinal, como o núcleo de uma célula adulta podia ser reprogramado, passando a “achar” que ela tinha voltado à sua versão original, pluripotente, de poucos dias após a fecundação? Será que não dava para pular toda aquela trabalheira envolvida na clonagem, e reprogramar diretamente o núcleo da célula?
Afinal, a maioria das células do organismo adulto carrega a receita necessária para reconstruir o organismo (tirando algumas exceções, como os glóbulos vermelhos do sangue, que nem núcleo têm).
O que muda de um tipo de célula para outra é o padrão de ativação e desativação dos diferentes trechos do DNA, fazendo com que, após certo número de divisões, as células deem origem a tecidos diferentes, como músculos, neurônios, ossos, pele etc.
Em tese, deveria ser possível controlar esse padrão de ativação do DNA, para que a célula voltasse ao seu estado “primitivo” pluripotente. E as pistas necessárias para saber como fazer isso estavam justamente nas próprias células-tronco embrionárias.
O primeiro a formular uma receita viável foi o pesquisador japonês Shinya Yamanaka. Num trabalho publicado em agosto de 2006, Yamanaka e seus colegas mostraram que inserir cópias extras de quatro genes no DNA de células adultas fazia com que elas retornassem ao estado embrionário inicial. Esses genes correspondiam a fatores de transcrição – moléculas que regulam onde e como o DNA é ativado.
As células criadas por Yamanaka foram batizadas com a sigla iPS (“células-tronco pluripotentes induzidas”, em inglês). Inúmeros experimentos feitos desde então mostraram que as células iPS de fato têm o mesmo potencial das células-tronco embrionárias (tanto as oriundas de uma fecundação normal quanto as geradas por SCNT) para se transformar em qualquer tecido do corpo.
Não por acaso, o comitê do Nobel resolveu premiar Yamanaka, junto com Sir John Gurdon, em 2012. Naquele ano, ambos ganharam o Nobel de Medicina, um reconhecimento de que seus estudos, embora muito diferentes, eram duas faces da mesma moeda.
“A SCNT e a Dolly foram grandes conquistas científicas, que nos ajudaram a entender muito o processo de diferenciação celular durante a embriogênese [o desenvolvimento dos embriões]”, pondera o biólogo brasileiro Alysson Muotri, professor da Universidade da Califórnia em San Diego. “Porém, depois dos achados do Yamanaka, o processo de reprogramação celular se tornou muito mais fácil e prático de se fazer em laboratório do que a SCNT.”
O potencial terapêutico das iPS ainda é uma promessa. Já há vários testes clínicos (ou seja, em pacientes humanos) de seu uso para tratar doenças como a degeneração ocular, mas ainda sem resultados conclusivos. Mesmo assim, elas têm se mostrado um bocado úteis de outras maneiras, funcionando, por exemplo, como laboratórios vivos.
As células iPS carregam todas as características genéticas das pessoas das quais foram extraídas. Por isso, elas podem ser usadas para testar novos medicamentos contra doenças que essas pessoas têm – seja como células isoladas, seja como organoides (“mini-órgãos”) criados em laboratório.
Organoides cerebrais, ou seja, versões em miniatura e muito simplificadas do cérebro, têm ajudado os cientistas a entender com mais precisão o que acontece com o sistema nervoso de pessoas que sofrem de Parkinson ou integram o espectro autista, por exemplo.
Isso não significa, porém, que a SCNT tenha ficado totalmente para escanteio. Nos últimos tempos, uma outra possibilidade terapêutica – usar órgãos de animais geneticamente modificados para transplantes em pessoas – tem sido turbinada pela clonagem, explica a geneticista Mayana Zatz, da USP, que está trabalhando com porcos geneticamente modificados.
“Estamos usando exatamente a mesma tecnologia que foi usada para gerar a Dolly. Editamos o DNA das células dos porcos, alterando os genes que causam a rejeição. Depois, com a técnica de transferência de núcleo, a gente transfere esse DNA para óvulos de porcas, gerando os embriões que vão ser inseridos em porcas ‘barriga de aluguel’. Então, a importância dessa tecnologia não vai ser apenas histórica”, argumenta ela.
Quanto à clonagem de pessoas “inteiras”, os desafios técnicos são tão complexos, e a oposição ética à ideia está tão consolidada, inclusive na legislação da maioria dos países, que é difícil imaginar que ela venha a acontecer nas próximas muitas décadas.
Se rolar, um dia, não estaremos copiando um humano: será como produzir um gêmeo idêntico, bebê, de uma pessoa já adulta. E gêmeos idênticos, como sabemos, são indivíduos únicos; não meras cópias de seus irmãos. Cada vida é, sempre, uma nova vida.
Fonte: abril