A agricultura familiar é caracterizada por diversas atividades econômicas. No entanto, o que define o segmento são as pessoas que estão diretamente ligadas à produção. O conceito ganhou forma na década de 90. Naquele período, em 1996, foi criado o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que existe até os dias atuais. Dez anos depois, foi instituída a Lei 11.326/06 que estabeleceu diretrizes e políticas públicas para os pequenos agricultores. O próprio governo federal destaca que os agricultores familiares são responsáveis pela maior parte da produção de alimentos disponibilizados para o consumo da população brasileira. Para o Estado, este setor é constituído de pequenos produtores rurais, povos e comunidades tradicionais, assentados da reforma agrária, silvicultores, aquicultores, extrativistas e pescadores. A produção se baseia na safra de milho, raiz de mandioca, pecuária leiteira, gado de corte e ovinos.
O último levantamento sobre o segmento, o Censo Agropecuário, foi divulgado em 2017. A pesquisa foi realizada em mais de 5 milhões de propriedades rurais de todo o Brasil. Nesse universo, 77% dos estabelecimentos agrícolas do país foram classificados como agricultura familiar. Para se ter ideia, em extensão de área, a agricultura familiar ocupava no período da pesquisa 80,9 milhões de hectares, o que representa apenas 23% da área total dos estabelecimentos agropecuários brasileiros, considerando as grandes e médias propriedades. No entanto, o setor empregava mais de 10 milhões de pessoas, em setembro de 2017, isto é, 67% do total de pessoas ocupadas na agropecuária. Além disso, a agricultura familiar foi apontada como responsável por 23% do valor total da produção dos estabelecimentos agropecuários.
Assim, os dados do censo mostram que os agricultores familiares têm participação significativa na produção dos alimentos que vão para a mesa dos brasileiros. Nas culturas permanentes, o segmento responde por 48% do valor da produção de café e banana; nas culturas temporárias, são responsáveis por 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão. “A gente trabalha com esses dados de 2017 para mensurar diversos indicadores da agricultura familiar e da agricultura como um todo. No Brasil tem hoje 3.897.408 estabelecimentos da agricultura familiar. Isso representa 76,8% de todos os estabelecimentos agropecuários do país”, destaca a professora da Escola de Agronomia da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenadora da Agro Centro-Oeste Familiar 2023, Graciella Corcioli.
A pesquisadora pontua que a agricultura familiar brasileira emprega cerca de 70% de toda a mão de obra do campo, sendo responsável por aproximadamente R$ 106 bilhões em valor de produção. Entretanto, ela observa que o território ocupado pelos agricultores familiares é muito menor se comparado com os grandes e médios produtores rurais. “É importante também considerar que esse pessoal da agricultura familiar eles trabalham numa área muito reduzida, gira em torno também de 23% de toda a área dos estabelecimentos agropecuários brasileiros”, cita.
Corcioli e mais três colegas, Gabriel Medina, Marcelo Gosch e Thiago Verano, publicaram a segunda edição do “Atlas da Agricultura Familiar em Goiás”. O estudo ilustra no mapa geográfico do Estado a distribuição dos estabelecimentos da agricultura familiar nos 246 municípios. O atlas mostra onde há funcionamento de feiras com participação dos agricultores e atuação de cooperativas e programas estatais, dentre os quais Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
“Em Goiás há 95.684 estabelecimentos da agricultura familiar, isso representa 62,8% de todos os estabelecimentos agropecuários do Estado, que emprega 46,8% da mão de obra no campo e gera cerca de R$ 4 bilhões em valor de produção, que representa 10,5% do valor de produção total do Estado. Aqui também, com relação a quantidade de terras, a área de produção desses agricultores familiares goianos é de 13,8% da área total de todos os estabelecimentos agropecuários”, resume Graciella Corcioli.
Ao comentar a legislação da agricultura familiar, a professora explica que basicamente para ser considerado um agricultor familiar, o produtor rural não pode ter mais do que quatro módulos fiscais (unidades de medidas de área expressas em hectares fixadas diferentemente para cada município, uma vez que leva em conta as particularidades locais). Ou seja, é uma pequena propriedade tocada por família. “Esse estabelecimento familiar tem que ser gerido e trabalhado pela família. Pode ter mão de obra contratada? Pode, mas tem que ter mão de obra predominantemente familiar. Além disso, tem que ter um percentual de renda mínimo originário da atividade econômica do estabelecimento familiar. Essa renda familiar anual não pode exceder R$ 500 mil, isso aí varia de tempos em tempos. Atualmente, o governo federal fixou R$ 500 mil e tem que morar no estabelecimento ou próximo dele. Basicamente, para ser considerada agricultura familiar tem que atender aos critérios exigidos na Lei 11.326 de 2006”, esclarece a professora da UFG.
Porém, por desempenhar as mesmas atividades dos grandes produtores, a agricultura familiar em muitos casos integra a essa cadeia produtiva. “Temos agricultor familiar que está muito próximo daquele agronegócio empresarial. Pessoas que estão inseridas nas cadeias produtivas e podem ainda ser consideradas agricultores familiares. Tem outro público da agricultura familiar que produz muito, mas ele não está inserido em cadeias produtivas e trabalha muito com circuitos curtos de comercialização, por exemplo, as feiras. Tem muitos agricultores que produzem os seus produtos lá no estabelecimento familiar e vende os seus produtos no comércio local”, exemplifica.
Um exemplo em Goiânia é o José Francisco da Silva, o seu Tatico, que trabalha a quase 50 anos na produção de hortaliças no Jardim América. Por décadas, comercializava os alimentos nas feiras da cidade e nos últimos 15 anos conseguiu um ponto fixo no bairro para vender os produtos. O local é revezado com o filho, que seguiu os passos do pai no segmento. A área que pertence à família é de 42 mil metros, mas seu Tatico usa apenas cerca de 5 mil metros, cujo trabalho conta com um funcionário. Para essas pessoas, o Estado possui diversos programas de apoio, como da aquisição de alimentos para a merenda escolar, indagado se já participou de alguma dessas iniciativas, seu Tatico respondeu que não.
Produtora de agroecologia há 6 anos, Myllena Camargo menciona os programas de apoios para a agricultura familiar no Estado. Dentre os principais, ela destaca o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) estadual, o trabalho para o setor desenvolvido pela Agência Goiana de Assistência Técnica, Extensão Rural, e Pesquisa Agropecuária (EMATER), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar Goiás). Por exemplo, o PPA Estadual é um programa em parceria entre os governos estadual e federal. A execução ocorre via Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) e da Agência Goiana de Assistência Técnica, Extensão Rural e Pesquisa Agropecuária (Emater). Essa política pública prevê a articulação entre a produção da agricultura familiar e as demandas regionais de suplementação alimentar, isto é, os produtos são adquiridos e doados para pessoas em insegurança alimentar, o que pode promover o desenvolvimento da economia local.
Notoriedade
Embora tenha ganhado maior visibilidade nas últimas duas décadas, a agricultura de pequenos produtores contribui com a maior parte da produção de alimentos. São mais de 60% de todo o leite produzido no país; mais de 60% das hortícolas, mais de 80% da mandioca colhida, 50% da produção de banana e 70% da produção de abacaxi. “Temos que olhar para essas culturas e entender que boa parte delas são produzidas pelos agricultores familiares. Em se tratando de proteína animal, pode se considerar que 30% dos suínos e 30% das aves produzidas para consumo são provenientes da agricultura familiar em Goiás”, afirma. No Estado, a atividade de destaque da agricultura familiar é a bovinocultura de leite. “O principal produto da agricultura familiar goiana é o leite. Em Goiás, a agricultura familiar produziu 51% do leite em seus estabelecimentos,” revela Corcioli.
A professora recorda da ampliação do Pronaf no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2003. “O programa foi capilarizado em todas as regiões do Brasil, ganhando muita força. Ele passou a ser um incremento crescente nos valores disponibilizados para esses agricultores familiares. Vimos uma curva ascendente muito importante dos valores de disponibilizados pelo Pronaf a partir de 2003”, relembra. Ela compara que atualmente a situação mudou. “A ponto de chegarmos no último plano safra, já no governo Jair Bolsonaro, com cerca de R$ 50 bilhões para a agricultura familiar. Quando a gente fala de R$ 50 bilhões isso é um valor muito grande, porém se compararmos com o que se tinha no início do Pronaf é muito pouco e perto do crédito rural que é disponibilizado para grandes produtores, é quase irrisório”, compara. A especialista menciona que o crédito rural total é em torno de R$ 340 bilhões, desse valor são destinados apenas os R$ 50 bilhões para a agricultura familiar de todo o país. “Temos muito mais agricultura familiar do que grandes e médios produtores rurais, mesmo assim, eles ficam com uma parcela bem maior”, diz.
Mas, segundo ela, isso não é o mais grave, neste momento, porque muitos agricultores familiares não utilizam esse recurso todo por falta de conhecimento. “A gente tem uma grande parcela da população que sequer sabe que existe o Pronaf. O acesso está muito associado à informação e à escolaridade, por exemplo, em todos os períodos, a região Sul do Brasil consumiu metade do recurso do programa de todo o Brasil, sendo que não é a região que tem mais agricultores familiares. A região que mais tem agricultura familiar é o Nordeste. Mas a região Sul é onde se tem os melhores índices, como por exemplo, o IDH e onde tem outras estratégias que garantem acessos a essa política pública, como mais cooperativas e associações que propagam a informação”, salienta.
Diante deste cenário, Corcioli lamenta que exista agricultores familiares em situação de vulnerabilidade social. “Encontra-se no Brasil, hoje, uma parcela muito importante da agricultura familiar que está na condição de passar fome”, denúncia. Uma das soluções que pode melhorar as condições para a categoria é um projeto que foi aprovado, na sexta-feira, 25, pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados que garante percentuais mínimos de produtos da agricultura familiar nas cestas básicas que forem distribuídas pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).De acordo com o texto, a ideia é estimular a geração de renda desse segmento de produtores. O Sisan é responsável por implementar as políticas de segurança alimentar e nutricional nas três esferas do governo, com o objetivo de estimular a integração dos esforços entre governo e sociedade civil na promoção do direito à alimentação.
Fonte: portaldoagronegocio