A Fazenda Santa Elisa, pertencente ao Instituto Agronômico de Campinas (IAC), passou recentemente por um processo de mapeamento e desmembramento solicitado pelo Governo Paulista. De acordo com a Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), essa ação envolve uma gleba de 70 mil metros quadrados, conhecida como São José, onde se encontram exemplares únicos de diversas espécies de café. Este local abriga a população mais antiga do mundo de plantas de cafeeiro arábica clonadas por meio da cultura de tecidos, com mais de 20 anos dedicados ao estudo da viabilidade técnica e da longevidade desses cafeeiros clonados por Embriogênese Somática.
A APqC destaca que esse desmembramento revela a intenção do Governo do Estado, por intermédio da Secretaria da Agricultura (SAA), de vender áreas experimentais de pesquisa do IAC. “Fatiar e vender áreas experimentais de pesquisa reforçam a postura negacionista do Estado de São Paulo diante da emergência climática. Neste momento, ao invés de abrir mão dessas áreas, deveríamos ampliar as iniciativas de pesquisa e conservação”, afirma Helena Dutra Lutgens, presidente da APqC.
Na Fazenda Santa Elisa, localizada em Campinas, interior de São Paulo, encontra-se o maior banco de germoplasma de café do Brasil e um dos principais do mundo. A área experimental abriga cerca de cinco mil acessos, que correspondem a diferentes tipos de café, muitos deles considerados raros e em risco de extinção.
O Banco de Germoplasma de café do IAC foi criado em 1930, com a introdução de todas as variedades de café disponíveis no Brasil na época. Posteriormente, por meio de acordos internacionais com os principais países produtores, o IAC conseguiu integrar variedades de café de todo o mundo. “Um acordo de cooperação que envolveu o Governo dos Estados Unidos, na década de 1950, possibilitou a introdução de mais de 500 variedades provenientes da Etiópia, Quênia, Índia e América Central, entre outros. Esses acessos, extremamente raros, possibilitaram estudos genéticos fundamentais para o Brasil, além da criação de variedades adaptadas ao clima brasileiro”, explica Lutgens.
Dentre as variedades obtidas a partir desse germoplasma, destacam-se aquelas resistentes à ferrugem e, mais recentemente, ao bicho mineiro. Pesquisas adicionais indicam a existência de variabilidade genética para tolerância à seca e ao calor, características essenciais para enfrentar os desafios impostos pela emergência climática já visíveis no Brasil. “Manter esse banco de germoplasma é vital para a cafeicultura brasileira; não podemos correr o risco de perder sequer um exemplar desse valioso material genético”, reforça Lutgens.
Além disso, estudos realizados com o germoplasma da Fazenda Santa Elisa resultaram na identificação de variedades de café arábica sem cafeína nos grãos, provenientes de acessos selvagens da Etiópia. Ao final dos testes em campo, pretende-se obter cultivares que apresentem ausência de cafeína e excelente qualidade de bebida, visando atender consumidores com sensibilidade à substância. Esse avanço torna o IAC a única instituição no mundo a desenvolver cultivar de café arábica com essas características.
Lutgens destaca que, após as extensas coletas de germoplasma na década de 1960, a Etiópia enfrentou períodos de guerra e desmatamento, que devastaram importantes áreas de conservação do cafeeiro nativo. Assim, é possível que muitos dos materiais coletados na época e preservados no IAC não existam mais em seu centro de origem, reforçando a importância do banco de germoplasma do instituto.
Conforme dados do IAC, cerca de 90% do café produzido no Brasil utiliza variedades desenvolvidas pelo Instituto Agronômico desde 1932, oriundas do banco de germoplasma da Fazenda Santa Elisa. Ao longo das décadas, pesquisadores pioneiros conseguiram desenvolver cultivares que não apenas se adaptam ao clima, mas que também se tornaram resistentes a pragas e doenças, como a ferrugem, o bicho mineiro e os nematóides.
“Essa fazenda experimental é um patrimônio inestimável do Estado de São Paulo, que deve ser defendido não apenas por cafeicultores, que dependem dessas pesquisas para otimizar sua produção, mas por todos os cidadãos brasileiros que valorizam a ciência e a sociedade paulista, que se fortaleceu a partir da cultura do café”, conclui Lutgens.
Em relação à pesquisa, a falta de investimento em ciência para a agricultura se torna uma preocupação, uma vez que o setor enfrenta um esvaziamento do quadro funcional. O último concurso público para contratação de pesquisadores no Estado de São Paulo ocorreu em 2003. Embora 37 vagas tenham sido abertas no ano passado, esse número é insuficiente para atender à demanda, e até o momento não houve a inclusão de novos cientistas na equipe do IAC. Sem novos pesquisadores, o conhecimento adquirido ao longo de décadas se perde, assim como as linhas de pesquisa e os investimentos realizados.
“Além dos pesquisadores, que são essenciais para o desenvolvimento de novas variedades de alimentos e para a manutenção das linhas de pesquisa ativas, também faltam profissionais de apoio que garantam a preservação dessas fazendas e áreas de estudo. Para ilustrar a situação, a Secretaria da Agricultura de São Paulo conta com quase 4,5 mil cargos vagos”, ressalta a presidente da APqC.
Atualmente, cerca de 90% das pesquisas cafeeiras realizadas pelo IAC na Fazenda Santa Elisa são financiadas pelo Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé), do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), através de convênios com o Consórcio Pesquisa Café, coordenado pela Embrapa. Também há aportes da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), de outras instituições de fomento e do setor privado. A manutenção do germoplasma é realizada exclusivamente com recursos oriundos dessas fontes, uma vez que o Estado não disponibiliza orçamento específico para essa finalidade.
“A pesquisa pública é fundamental para o avanço da ciência e da sociedade. Sabemos que nem todas as espécies agrícolas e alimentos atraem investimentos de empresas privadas. Além disso, estudos com espécies perenes, como o café, demandam mais de 20 anos dedicados ao melhoramento genético para o desenvolvimento de novas cultivares que atendam à demanda do setor. Portanto, esses investimentos de longo prazo são altos demais para atrair o interesse de empresas”, conclui Lutgens.
Fonte: portaldoagronegocio