“O Congresso não pode criar monopólios de patentes por duração ilimitada, nem poderá autorizar a emissão de patentes cujos efeitos sejam o de remover o conhecimento existente em domínio público ou restringir o livre acesso a materiais já disponíveis. A Suprema Corte dos Estados Unidos, Graham v. John Deere Co. de Kansas City, 383 U. S. 1, 383 U. S. 6 (1966)”.
Iniciemos por duas indagações:
- Quando uma patente cai em domínio público? O prazo de validade de uma patente de invenção é de 20 anos, contados a partir do depósito do pedido. A partir daí uma patente de invenção cai em domínio público, ou seja, o inventor e/ou proprietário daquele invento não pode mais usufruir de exclusividade para si. Assim, no caso de um produto, por exemplo, qualquer outra empresa pode começar a produzi-lo e comercializá-lo a um preço mais acessível.
- O que são royalties? Royalties é um pagamento contraprestacional correlativo a uma licença de um direito exclusivo; no caso, uma ou mais patentes de invenção.
As relações de mercado entre empresas detentoras da tecnologia agrícola protegida e o produtor rural constituem um fator nevrálgico no que concerne a contratos ou acordos de licenciamento e a fixação de royalties. Existem situações em que a prática diverge da teoria. Sob o amparo dos instrumentos de contratos de licenciamento ou acordos, as multinacionais sementeiras, detentoras de alto poder concentrado de mercado, amarram as partes contratantes através de cláusulas consideradas anticompetitivas, abusivas e ilegais. A ilegalidade no modelo contratual em questão está na determinação da base de cálculo dos royalties. As empresas sementeiras no Brasil que detém uma tecnologia protegida por patente “descansam em berços esplêndidos” na cobrança de seus royalties por estarem respaldadas por uma rede de parceiros e colaboradores direcionados para as cobranças abusivas e ilícitas praticadas contra os agricultores.
Em 2015 escrevi um artigo intitulado “O Brasil segundo a Monsanto: eterno “déjà vu” AOS MOLDES DO DOCUMENTÁRIO DE MARIE-MONIQUE ROBIN 1”, onde explícito a sistemática de cobrança de royalties adotada pelas indústrias sementeiras aos agricultores, segue: “A própria Monsanto, na oportunidade da diligência efetuada pelo CADE para o licenciamento da tecnologia Intacta RR2 PRO alegou que o agricultor paga por três vezes royalties à licenciadora da tecnologia transgênica: A primeira é realizada no momento da aquisição das sementes junto aos multiplicadores. Nesta fase há, pela multinacional, a monitoração do preço pago pelo agricultor ao seu multiplicador ou distribuidor, e uma devassa reguladora que monitora a identidade do agricultor, localização, quantidade vendida, safra, estado de plantio, plantabilidade e produtividade, entre outras informações, como uma espécie de ditadura militar: a Monsanto tem uma agência de controle chamada “polícia genética”. É um sistema ultrajante: estas são agências particulares de investigação que vão aos campos dos agricultores e colhem amostras; eles pedem aos agricultores que apresentem as notas fiscais de compra de sementes e herbicidas da Monsanto, e caso eles não a tenham, são processados. A empresa sempre ganha, porque não respeitar um contrato é considerado quebra de direitos de propriedade intelectual da Monsanto. A segunda forma de cobrança se refere à utilização pelos agricultores de sementes salvas dentro da Lei de Proteção dos Cultivares, sob os arrepios do artigo 10 da lei de proteção de cultivares. A terceira cobrança ocorre na ocasião de entrega do grão de soja nos pontos de entrega (POD-Point of delivery), de forma que, sendo a soja geneticamente modificada, ocorre o pagamento dos royalties. Há também uma quarta cobrança, paga pelos multiplicadores, o royalty de multiplicação.
Há, dessa forma, a inquestionável dependência econômica por parte das licenciadas e dos produtores, bem como o alto grau de concentração da produção de tecnologia transgênica por parte da multinacional. A Bayer, que adquiriu a Monsanto nos autos do processo administrativo junto ao CADE, esclarece atualmente que: no momento da venda de sementes de algodão, anualmente, a Bayer firma com os cotonicultores um contrato de licenciamento de tecnologia de algodão, o chamado Termo de Compromisso para Uso de Cultivares de Algodão – Safra XXX (termo de compromisso) (doc. Confidencial – acesso restrito-), por meio do qual a BAYER concede ao agricultor o direito de utilizar suas tecnologias patenteadas por uma única safra ou um único cultivo comercial), em consonância com a Lei de Propriedade Intelectual – lei 9.279/96 e a lei de proteção de cultivares – lei 9.456/97. Sempre argumentei em meus artigos e pareceres que os royalties estão diretamente relacionados à sobreposição de exclusivas, isto é, entre patentes e cultivares. Em outras palavras, os royalties são consequência direta da Lei de Patentes e a interpretação subjetiva defendida pelas gigantes do setor com o aval dos Poderes Legislativo e Judiciário, haja vista o julgamento do RESP n. 1.610.728/RS, que se tornou um paradigma por força de má interpretação e equívocos de seus pares e que irá respingar em futuros confrontos de propriedade intelectual. Antes tínhamos uma geração de agricultores que, nos últimos 12 mil anos, separavam parte da colheita para semeadura seguinte como preceito cultural e ligados umbilicalmente à própria segurança alimentar da raça humana sem pedir autorização a ninguém para vender e produzir aquilo que produziam. Hoje, os agricultores estão todos acorrentados a Contratos de Adesão ilegais das multinacionais sementeiras, que solapam com teses subjetivas as leis nacionais e os tratados internacionais em todos os sentidos, desde os royalties abusivos ao nocaute dos direitos dos agricultores esculpidos na nossa legislação.
Por hora, o Rei Davi logrou êxito contra o gigante Golias. Explico. As Associações dos Produtores de Soja (Aprosojas) dos Estados de Mato Grosso, Rondônia, Piauí, Tocantins, Goiás, Bahia, bem com a Associação Mato-grossense dos Produtores de Algodão, através do processo de n. 1014311- 30.2022.8.11.0000, requereu ao Juízo que as empresas Monsanto do Brasil e Monsanto Technology Ltda. se abstivessem da cobrança de royalties pelo uso da tecnologia referente a essas patentes a partir das datas em que caíram em domínio público, bem com a repetição de indébito dos royalties pagos pelos produtores rurais associados por prazo superior a 20 (vinte) anos de vigência, contados da data do protocolo dos pedidos de patente pelas mesmas, por duas razões: 1. Porque as patentes de invenção das empresas Monsanto, quais sejam: PI0016460-7; PI0610654-4 e PI9816295-0, que usam a tecnologia denominada “INTACTA RR2 PRO” caíram em domínio público e, 2. Os royalties cobrados pela utilização da referida tecnologia, além de abusivos, são ilegais, eis que contraria a decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5529/DF, cujo decisum de mérito do parágrafo único do artigo 40 da Lei Federal 9.279/96 limita o prazo de vigência de toda e qualquer patente de invenção a 20 (vinte) anos, contados da data do pedido perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI. Fato que o juízo deferiu em 18 de agosto do corrente ano de 2022 a concessão da medida liminar, ad cautelam e reconsiderou a decisão prolatada no ID. 136752680, deferindo a antecipação da tutela recursal e determinando que a Monsanto deposite em Juízo 1/3 (um terço) dos royalties referentes à patente de invenção PI9816295- 0, a contar da data de seu vencimento, que ocorreu em 03/03/2018. Assim, “porque é ilegal e abusivo a cobrança de royalties para patentes que caíram em domínio público?” Porque a partir do momento em que as patentes caem em domínio público, não há mais o objeto mercadológico principal – a inovação e o direito exclusivo do titular da tecnologia. O conhecimento será público e irrestrito. Assim, as patentes PI0016460-7; PI0610654-4 e PI9816295-0, que usam a tecnologia denominada “INTACTA RR2 PRO” passam a ser de conhecimento público e sua utilização não demanda de maneira alguma uma contraprestação por royalties por parte dos agricultores.
Charlene de Ávila Advogada – Mestre em Direito e Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura (Néri Perin Advogados Associados)