Embora a transição energética e a descarbonização a ela associada tenham sido elevadas à consciência política e ao nível de aspiração internacional nos últimos cinco a dez anos, o trabalho pragmático de satisfazer tais aspirações começou de fato há mais de vinte anos e ainda vai continuar por gerações.
Independentemente de como chegaremos lá, está claro que o futuro energético e o futuro ambiental do nosso planeta estão intrinsecamente ligados.
As evidências dessa interdependência têm se mostrado há muito tempo, mas ainda assim continuamos a procurar por uma solução isolada, que atue em apenas um dos aspectos para resolver esse problema. As mudanças do clima global e os impactos naturais crescentes tornam evidente que não podemos nos dar ao luxo de manter o assunto dentro dos limites e fronteiras de países ou regiões individuais.
É necessário um portfólio equilibrado de soluções energéticas, industriais, sociais e ambientais. Precisamos de uma visão prática compartilhada por todos para resolver um problema complexo, que afeta cada um dos habitantes do planeta.
Daniel Yergin, no seu recente livro O Novo Mapa: Energia, Clima e o Conflito entre Nações, salienta que “durante mais de um século, a disponibilidade, o acesso e os fluxos de energia estiveram interligados com a segurança e a geopolítica”.
Eu acrescentaria a necessidade de considerar a equidade social e ambiental no desenvolvimento de soluções para as mudanças climáticas globais, o uso de tecnologias avançadas para monitorar e mitigar as emissões, a adoção de soluções para descarbonizar múltiplos setores e, ainda, o estabelecimento de leis e regulamentos para ordenar as ações.
São necessárias políticas que incentivem a descarbonização responsável, cuidando, porém, da manutenção da segurança energética e dos sistemas industriais existentes.
Além disso, como sociedade global, precisamos fazer perguntas difíceis, tais como quem se beneficia e quem sofre os danos se continuarmos a nossa trajetória atual.
Precisamos também considerar como alcançar os objetivos que os indivíduos estão demandando dos governos e da indústria.
Reduzindo emissões com CCUS
A boa notícia é que não estamos começando do zero.
A captura, utilização e armazenamento de carbono, conhecida pela sigla CCUS (do inglês, Carbon Capture, Utilization and Storage), proporciona a maior oportunidade que temos de reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2), um dos gases do efeito de estufa, antes que ele seja emitido para a atmosfera.
O trabalho de descarbonização dos setores energético e industrial tem sido o foco de várias agências governamentais de pesquisa e desenvolvimento em energia desde o final dos anos 90. Programas de pesquisa nos Estados Unidos, Austrália, Noruega, Japão, Coreia do Sul, União Europeia e agora no Brasil demonstram o potencial seguro e eficaz do CCUS.
O arranjo de tecnologias necessárias para a implementação do CCUS está bem estabelecido e testado com o objetivo específico de reduzir as emissões de CO2.
O CO2 é capturado de uma grande fonte emissora estacionária, como uma usina termelétrica ou uma usina de etanol, antes que seja emitido para a atmosfera. O gás CO2 é comprimido, desidratado e transportado para um local onde poderá ser utilizado ou armazenado.
Atualmente, a principal forma de utilização é a recuperação avançada de petróleo, que aproveita o CO2 para extrair petróleo adicional de reservatórios maduros.
Novos métodos para o desenvolvimento de produtos químicos e outros produtos a partir do CO2 estão na vanguarda da inovação. No entanto, o maior potencial de redução de CO2 da atmosfera é de longe o seu armazenamento em formações geológicas a mais de 2 km abaixo da superfície.
Armazenamento geológico
O processo de armazenamento envolve a pesquisa por rochas que possam armazenar o CO2 de forma permanente.
Isto é conseguido através de um “pacote” de formações rochosas, também chamado de complexo de armazenamento, que normalmente consiste num arenito poroso e permeável, que atua como reservatório.
O CO2 injetado é retido permanentemente nos espaços porosos desse arenito. Uma proteção adicional contra a fuga do CO2 para a superfície é fornecida por camadas de rochas impermeáveis chamadas folhelhos, que agem como selo ou trapa para o CO2 armazenado.
Esta combinação eficaz de formações rochosas pode ser encontrada em todo o mundo em muitas bacias sedimentares e é considerada a principal característica a ser pesquisada para definir o potencial de armazenamento.
Uma geologia adequada é o mais importante fator de sucesso para o armazenamento e para a capacidade de gerir e controlar o risco de fuga do CO2 para a superfície, embora isto seja altamente improvável. A retenção permanente do CO2 injetado é o objetivo principal do CCS (Carbon Capture and Storage) e faz parte da concepção do sistema.
O armazenamento bem-sucedido de carbono requer uma fonte confiável de CO2 e uma forma de transporte entre a fonte e o local de armazenamento.
Bioenergia com captura de carbono
Uma das oportunidades mais promissoras para a captura de grandes volumes de CO2 industrial é através do CCS na bioenergia, ou BECCS (Bioenergy CCS).
Através deste processo, a energia pode ser produzida a partir de materiais biológicos, como o milho ou a cana-de-açúcar, para a produção de etanol. A captura do CO2 resulta num sistema potencialmente negativo em carbono, em que o carbono das plantas é capturado após a sua combinação com o oxigênio, mas antes de ser liberado na atmosfera.
Devido à facilidade com que o CO2 pode ser capturado e processado, a tecnologia BECCS é altamente atrativa para a mitigação dos gases do efeito estufa.
Por exemplo, o CO2 produzido no processo de produção de etanol a partir de milho ou cana-de-açúcar, quer seja nos Estados Unidos ou no Brasil, tem pureza superior a 95%, com algum teor de água associada. O dióxido de carbono é um gás compressível, que pode ser facilmente desidratado, tornando-o ideal para o armazenamento de carbono.
O potencial de armazenamento de carbono proveniente de biocombustíveis representa uma significativa oportunidade para reduzir as emissões rapidamente — uma estratégia-chave para atingir os objetivos de emissões líquidas negativas.
Além disso, o etanol produzido com emissões negativas pode assumir um papel importante como matéria-prima para o desenvolvimento de combustíveis de aviação sustentáveis (SAF, ou Sustainable Aviation Fuels), o que pode ser a principal solução para a descarbonização desse setor, considerado difícil de abater no curto prazo.
Experiência de Ilinois
A tecnologia BECCS vem sendo aplicada efetivamente em Decatur, Illinois (EUA), desde 2007. Em dois projetos liderados pelo Serviço Geológico do Estado de Illinois, da Universidade de Illinois, e a Archer Daniels Midland (ADM), esta estratégia de mitigação de emissões provou ser segura e viável.
Mais de 3,5 milhões de toneladas de CO2 foram armazenadas a mais de 2 km de profundidade desde 2011, no maior e mais longo ensaio de viabilidade do conceito BECCS.
Os projetos de demonstração em Decatur abrangem todo o ciclo do projeto, desde o desenvolvimento e licenciamento da infraestrutura, passando pela operação da injeção 24 horas por dia, 7 dias por semana, até o monitoramento pós-encerramento das atividades.
Esses projetos estão servindo de base para a expansão das redes ou hubs de captura e armazenamento de carbono, especialmente na parte central dos Estados Unidos.
Por exemplo, produtores de biocombustíveis como a ADM estão colaborando com operadores de dutos e sítios de armazenamento de CO2 para conectar usinas de produção de etanol existentes em Iowa a um duto de 560 quilômetros, capaz de transportar 12 milhões de toneladas de CO2 por ano para armazenamento geológico em Decatur.
Modelo regulatório
O panorama político e técnico nos Estados Unidos está bem estabelecido e pode servir de modelo para outros países.
O Infrastructure Investment and Jobs Act (IIJA) é uma lei que disponibilizou US$ 12,1 bilhões de dólares ao longo de cinco anos para CCUS.
Além disso, tem havido um grande aumento do interesse na implantação de projetos de captura e armazenamento de carbono nos Estados Unidos em função de um crédito fiscal (45Q Tax Code) que fornece até US$ 85 por tonelada de CO2 armazenada permanentemente.
Os empreendedores têm até janeiro de 2033 para iniciar a construção de sistemas de captura e armazenamento de carbono para fazer jus à obtenção dos créditos.
A combinação de financiamento federal, crédito fiscal (45Q), arcabouço regulatório e eficácia comprovada dos sistemas de captura e armazenamento promete gerar reduções significativas de emissões de gases do efeito de estufa nos próximos anos.
Com uma produção de 56 milhões de m3 de etanol por ano (2021) nos EUA, e de 30 milhões de m3 por ano (2021) no Brasil, os dois principais produtores de etanol do mundo têm um potencial significativo para o desenvolvimento do conceito BECCS por meio da combinação da indústria do etanol e de condições geológicas adequadas.
Este promissor conjunto de tecnologias pode ajudar o Brasil a alcançar os objetivos climáticos de neutralidade de carbono.
Enquanto os fatores facilitadores continuam a ser postos em prática nos Estados Unidos, o Brasil se beneficiaria muito com a definição do arcabouço regulatório necessário para assegurar a implantação de projetos com segurança, possibilitando a realização de investimentos para alcançar todos os benefícios do modelo BECCS, uma das alternativas de custo mais baixo para prevenir as emissões de CO2 para a atmosfera.
Sallie E. Greenberg
PhD, é geóloga, pesquisadora-chefe em ciências da Energia e Minerais do Illinois State Geological Survey, University of Illinois, nos EUA. Lidera os estudos de geologia do projeto de demonstração da tecnologia BECCS em escala comercial em Decatur, Illinois (EUA).
Tradução de Milas Evangelista de Sousa, consultor do projeto de BECCS da FS.
Fonte: portaldoagronegocio