O filme “Ainda Estou Aqui”, concorrente ao Oscar, traz à tona questões cruciais sobre o luto familiar e os desafios jurídicos enfrentados pelos parentes de desaparecidos políticos durante a ditadura militar brasileira. A obra destaca a complexidade emocional e legal dessas situações.
O longo processo de reconhecimento da morte presumida e o acesso aos bens dos desaparecidos políticos revelam as cicatrizes deixadas pelo regime autoritário. Essas questões não apenas afetam o aspecto emocional das famílias, mas também têm implicações jurídicas e patrimoniais significativas.
Como o filme “Ainda Estou Aqui” aborda o luto familiar dos desaparecidos políticos?
Com a corrida pelo Oscar do filme brasileiro “Ainda Estou Aqui”, que trata do luto da Família Paiva pela perda de Rubens Beyrodt Paiva – sequestrado e morto no DOI-CODI em 1971 –, vem à tona a urgência de debater os lutos não resolvidos da Ditadura Militar.
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Três desafios afligem a família em um luto inconcluso. Primeiro, a ocultação do corpo e da verdade força a família do desaparecido a escolher entre apostar na esperança do regresso ou presumir a morte para poder seguir a vida em frente.
Exige-se dela uma tarefa mais complexa do que no luto comum: em vez de processarem a perda em razão da morte constatada, aqui o dilema é “manter vivo” ou “matar” subjetivamente uma figura, da qual desconhecem o paradeiro. Portanto, o sumiço do corpo prolonga a prática da tortura, agora infligida atemporalmente aos familiares.
Quais são os principais desafios enfrentados pelas famílias dos desaparecidos políticos?
Seguidamente, outro aspecto desse luto traumático é o preconceito. Como os discursos oficiais da Ditadura Civil-Militar estereotipavam os opositores do governo como “subversivos” e “rebeldes”, até hoje os familiares das vítimas sofrem discriminação em função desse legado narrativo.
Sua busca por justiça continua sendo censurada e criticada como um ato de defesa em prol de “criminosos”, vide que no último domingo, Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e Eunice Paiva, e autor do livro Ainda Estou Aqui, foi agredido durante um desfile de carnaval em São Paulo.
Quando a Doutrina de Segurança Nacional disseminou a ideia de que as pessoas presas, mortas, torturadas, ocultadas e desaparecidas “mereceram” esse destino por ameaçarem à pátria, a dor dos familiares é invalidada, a justiça é negada e o desejo de reparação é obstado.
Como a impunidade afeta o processo de luto das famílias?
Por fim, a sensação de impunidade é outro trauma que entra no processo de elaboração do luto familiar. As autoridades, ao abnegarem a responsabilidade pelos crimes cometidos no período da Ditadura, perpetuam o ciclo de dor e de violência. Sendo assim, a resiliência interna das famílias é a única arma contra a opressão e a injustiça.
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Tais famílias tendem a se sentir desamparadas em razão da contenção solitária do próprio trauma. Por isso, a literatura, os filmes, as peças teatrais, os protestos e os movimentos de resistência, além de catárticos, proporcionaram alívio à sensação de loucura familiar imposta pelas deslegitimações da Ditadura Civil-Militar.
Como as famílias podem romper o pacto de medo?
Nesse cenário, as famílias que rompem com o pacto de medo atestam publicamente sua sanidade, revelando assim a verdadeira ameaça da sociedade: o governo. Se precisam ocultar fatos e corpos, atestam tacitamente que são criminosos.
Enfrentar o silenciamento é essencial para construir uma ressignificação dos fatos, produzindo uma memória coletiva sobre os eventos traumáticos e fantasmáticos.
Desse modo, o sofrimento pode ser retirado da sensação de ser um delírio pessoal, ganhando assim um caráter de realidade que possibilita novas inscrições psíquicas. Através da realidade pessoal compartilhada, o processo de luto das famílias pode ser facilitado.
Qual é a importância do testemunho familiar no processo de luto?
Através da relação com outros interlocutores, o testemunho familiar perde o efeito do desmentido, da negação da tortura, da morte e da desqualificação realizada pelo sistema necropolítico da Ditadura.
A justiça, enquanto vingança sublimada, requer agressividade; e a capacidade de resistir às perversões do Estado evidencia a força interna das famílias enlutadas.
Com a validação social e jurídica dos depoimentos, a família alivia o fardo de sustentar sozinha a memória do desaparecido, agora localizado no domínio público.
Afinal, a história de vida de um desaparecido é um capítulo inacabado, possui começo e meio, mas sem os ritos e símbolos e fatos que confirmam o seu fim. É um nome sem corpo, um morto sem a celebração final da passagem pelo mundo que ampara a elaboração sadia do luto.
Como a busca por respostas influencia o equilíbrio emocional dos familiares?
Apesar de ser torturante emocionalmente, o sofrimento da busca por respostas pode ser a forja do trabalho de luto. Quando a família mobiliza todos os seus esforços para solucionar o enigma do desaparecimento, ela pode pacificar os sentimentos de culpa provocada pela inércia e resignação em razão do medo de represálias.
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A investigação empírica do desaparecimento permite à família concluir a separação entre fantasia e realidade, e entre a descoberta e o que foi contado, deduzindo a verdade pelo reconhecimento da mentira.
Quando ela atravessa o rochedo das omissões, ocultações e falácias, passando pelo instante de ver, compreender e concluir dedutivamente, o status de desaparecido pode ser alterado para morto. Presumir a morte, por mais difícil que seja, possibilita preservar a memória em detrimento da esperança do retorno.
Como o conceito de desaparecimento afeta o processo de luto?
Assim, a figura desaparecida pode ser retirada desse limbo subjetivo, do lugar de ser um morto-vivo, um ausente-presente, um ente fora das coordenadas do espaço-tempo, que se presentifica eternamente porque a família foi privada do direito de simbolizá-lo no reino dos mortos.
Portanto, a busca por respostas possibilita a ritualização do luto, um direito subtraído pela ocultação do cadáver. Nesse caso, o tempo não cura, a verdade não aparece e a justiça falha e tarda.
Tudo isso convoca os familiares a agirem ativamente para concluir o luto do desaparecido, construindo artificialmente, a partir dos próprios esforços, os ritos de passagem que possibilitam admitir a perda.
Em última análise, através do teste de realidade, o psiquismo é capaz de criar uma representação simbólica para a morte a partir da noção do corpo sem vida.
Contudo, a noção de “desaparecimento” é um conceito irrepresentável para a mente, algo inominável e vazio de sentido, tal qual ao conceito de “nada”. Contudo, são os atos de amor para com os desaparecidos que sustentam a silhueta humana do corpo que a Ditadura Militar tentou apagar.
O que o filme “Ainda Estou Aqui” revela sobre o acesso aos bens de desaparecidos políticos?
O instituto da morte presumida está previsto no Código Civil de 1916 e foi mantido no Código Civil de 2002. Ele permite que, diante do desaparecimento de uma pessoa sem que haja provas concretas de seu falecimento, seja possível declarar sua morte para fins jurídicos, garantindo segurança aos familiares na sucessão patrimonial e no exercício de outros direitos civis.
Como o caso da família Paiva ilustra os desafios enfrentados pelos familiares de desaparecidos políticos?
Um dos casos mais emblemáticos dessa realidade foi o do ex-deputado Rubens Paiva , preso ilegalmente e morto pelo regime militar em 1971.
Sua esposa, Eunice Paiva , enfrentou anos de incerteza e obstáculos burocráticos para obter o reconhecimento oficial da morte do marido. A ocultação do corpo e a negativa do Estado em fornecer informações acabou tornando esse processo ainda mais doloroso.
A luta da família Paiva foi retratada no filme “Ainda Estou Aqui”, estrelado por Fernanda Torres e baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva , filho do ex-deputado.
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A obra ilustra a realidade de tantas famílias que, além da dor da perda, precisaram recorrer ao Direito para obter um mínimo de reconhecimento sobre o destino de seus entes desaparecidos.
Qual é a importância da legislação sobre morte presumida no contexto da ditadura militar?
A advogada Ariadne Maranhão , especialista em Direito das Famílias e Sucessões, destaca a relevância dessa legislação, “A morte presumida sempre teve um papel essencial no Direito das Famílias, mas, no contexto da ditadura militar, tornou-se uma ferramenta para reduzir o sofrimento de que perderam seus familiares sem qualquer resposta do Estado. O reconhecimento antecipado da morte foi um avanço que garantiu não apenas segurança jurídica, mas um alívio necessário para que essas famílias seguissem com suas vidas dentro do ordenamento”.
Os desaparecimentos provocados por opositores do regime militar brasileiro entre 1961 e 1988 geraram um impasse jurídico. Como o Estado negou a responsabilidade por prisões ilegais e execuções, as famílias das vítimas enfrentaram enormes dificuldades para obter o reconhecimento da morte de seus entes.
O procedimento tradicional da ausência, previsto no Código Civil, prevê um longo prazo para que a morte presumida fosse declarada, o que apenas aumentava a insegurança jurídica dessas famílias.
Como a Lei nº 9.140 de 1995 impactou o reconhecimento dos desaparecidos políticos?
Para solucionar essa questão, foi sancionada a Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, alterada posteriormente pela Lei nº 10.536, de 14 de agosto de 2002, permitindo o reconhecimento antecipado da morte presumida dos desaparecidos políticos, sem a necessidade de aguardar os prazos estabelecidos no Código Civil.
Isso possibilitou a regularização de registros civis , a tramitação de inventários e partilhas e a viabilização de direitos patrimoniais que foram bloqueados devido à falta de um atestado de óbito oficial.
O direito de propriedade sempre sofreu com as transições políticas que afetaram e afetam a sociedade, outrora ocorriam os confiscos de bens por conta de mudanças no cenário político, o que gerava um verdadeiro embate jurídico, e, por óbvio, impedia que as famílias acessassem o patrimônio deixado,
“Muitas dessas famílias já estavam fragilizadas pela perda irreparável de um pai, um filho ou um irmão. Além disso, foram submetidas a um labirinto burocrático que impedia o acesso a direitos básicos, como a regularização de bens”, explica Ariadne Maranhão.
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Qual foi o impacto da legislação sobre morte presumida para as famílias dos desaparecidos políticos?
A demora do Estado em oferecer uma resposta efetiva levou milhares de famílias a dificuldades financeiras, sem acesso ao patrimônio a que têm direito. A criação dessa legislação rompeu essa barreira, permitindo a sucessão patrimonial sem a necessidade de aguardar os prazos originalmente previstos no Código Civil.
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“A morte presumida, nesses casos, teve um impacto que foi além do Direito das Famílias e Sucessões. Ela representou um marco jurídico, ainda que parcial, para as vítimas da ditadura. Ao considerar a morte de desaparecidos políticos sem exigir o cumprimento dos prazos normais do instituto da ausência, a legislação garantiu que, pelo menos no campo jurídico, as famílias não ficassem à mercê da burocracia e do descaso estatal”, conclui Ariadne Maranhão.
A regularização desses casos declara a importância do Direito em proteger o patrimônio das famílias e garantir a segurança jurídica em momentos de extrema vulnerabilidade.
Embora a legislação tenha chegado tarde para muitos, seu impacto foi essencial para garantir que os familiares dos desaparecidos políticos pudessem, pelo menos, ter acesso aos direitos que lhes eram devidos.
Sobre Marcos Torati
Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, com especialização em psicanálise (abordagem winnicottiana) e psicoterapia focal. É supervisor de atendimento clínico e professor e coordenador de cursos de pós-graduação em Psicologia e Psicanálise.
Sobre Ariadne Maranhão
Ariadne Maranhão é advogada especialista em Direito das Famílias e Sucessões com uma trajetória de mais de 20 anos de atuação na área. Formada em Direito pela Universidade Gama Filho (UGF) em 1999, é membro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ) desde 2000.
Ao longo de sua carreira, especializou-se em temas fundamentais para a gestão de patrimônios e litígios familiares, destacando-se como uma referência em Planejamento Patrimonial e Sucessório, Mediação Familiar e Direito das Sucessões.
Além de sua carreira jurídica, Ariadne é uma mulher multifacetada: atleta de ultramaratona, vegetariana estrita e defensora incansável dos direitos dos animais. Seguindo os princípios do Espiritismo Cristão, ela é comprometida com causas sociais e humanitárias.
Conclusão
O filme “Ainda Estou Aqui” e as questões jurídicas relacionadas aos bens dos desaparecidos políticos revelam a complexidade do luto familiar e os desafios legais enfrentados pelos parentes das vítimas da ditadura militar.
Ambos os temas destacam a importância do reconhecimento oficial e da justiça para o processo de cura e reparação, tanto emocional quanto patrimonial, das famílias afetadas por esse período sombrio da história brasileira.
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Fonte: fashionbubbles