Será que o chuchu, em uma vingança silenciosa pela fama de insosso, seria culpado pela nossa falta de concentração? Ou seria a acelga a grande hipócrita do cardápio, com ares de magrinha, mas levando a gente a engordar? O espinafre, em vez dar a força de um marinheiro Popeye, derrubaria alguns de fadiga — difamam os “Brutus”. Já pela barriga estufada de gases talvez sejam acusados a manga, a framboesa, o alecrim ou o peito de peru. O fôlego do asmático, quem sabe, voltaria se ele tirasse do prato o queijo e o tomate ou, ainda, o orégano e a farinha, dando adeus à pizza do sábado.
Estes são apenas exemplos aleatórios. O laudo de um teste de sensibilidade alimentar pode sugerir que os verdadeiros responsáveis— não só por esses problemas, mas por diarreias, constipações, dores de cabeça, inchaço nas articulações e muito mais — são outros, entre as centenas de ingredientes que lista, da carne de vaca à de avestruz, do pão nosso de cada dia ao caviar.
Aliás, por um precinho que não é de banana, quem o oferece promete dosar quanto o sistema imunológico produz de IgG, ou imunoglobulina G, sempre que você consome esses itens. Assim, médicos e nutricionistas que prescrevem o exame poderiam recomendar a exclusão de alimentos do dia a dia para aliviar para as mais variadas mazelas.
O argumento, repetido aqui e ali, é de que a IgG entregaria o processo inflamatório por trás desses perrengues. Só que não faz sentido. E, para piorar, embora muitos serviços esclareçam que o tal teste não é indicado para casos suspeitos de alergias alimentares, por exemplo, as pessoas fazem uma “salada” na cabeça. Confundem tudo.
“O fato é que esses testes não têm indicação para intolerâncias ou para compreender reações adversas a alimentos, muito menos para alergias. A dosagem da IgG não tem papel algum no diagnóstico, nem serve para nortear qualquer tratamento”, assegura, taxativa, a alergista e pediatra Renata Rodrigues Cocco. E não se trata de uma opinião pessoal — embora conte a sua experiência de mais de duas décadas em alergias alimentares. Consensos nacionais e internacionais de sociedades médicas fazem o mesmo alerta.
Quando você come e nada acontece
Aí mesmo é que, por ironia, a IgG está nas alturas: quando você come e passa bem, obrigado. Ora, o sistema imunológico produz uma série de imunoglobulinas e, sem dúvida, a IgG é a que é encontrada em maior concentração no sangue. Ainda bem. “Ela está envolvida no combate a infecções em geral”, aponta a médica, que hoje é professora de Medicina na Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, em São Paulo.
Mas, no que diz respeito aos alimentos, IgG não está lá para comprar briga — muito pelo contrário. Ela aumenta quando você tem tolerância a algo que ingeriu. “Portanto, qualquer um que colher sangue para esse teste virá com IgG positiva, em maior ou menor grau”, afirma Renata Cocco.
A lógica é que essa molécula fique até mais elevada diante de um alimento que vive presente nas suas refeições, feito arroz e feijão. “E também sobe quando alguém está deixando de apresentar reação a algum alimento”, explica a alergista. Sim, os níveis maiores se traduzem a chamada tolerância oral. Esse termo, admito, favorece o mal-entendido. “O conceito, aqui, não tem a ver com intolerância alimentar, mas com proteção à crise alérgica. O IgG aumenta quando a alergia sai perdendo. E isso pode acontecer com maior frequência em crianças”, explica a especialista.
Sim, no público pediátrico, algumas alergias são efêmeras, porque têm a ver com uma falta de maturidade do sistema imunológico. “Elas podem passar aos 3 anos, aos 7, aos 10. O fato é que, muitas vezes, passam e, quando isso acontece, a IgG sobe”, explica a doutora. O que persiste é o desconhecimento — prefiro engolir essa versão — ou a cara de pau indigesta de quem solicita o teste de sensibilidade alimentar até para meninada que sofre de alergia alimentar.
Noutro dia, Renata Cocco atendeu um garotinho de 4 anos que quebrou o fêmur em uma singela brincadeira de pular corda. “Por causa de um teste desses, tiraram um monte de alimentos de sua dieta e não repuseram cálcio. Fiquei louca quando o vi: ele tinha desenvolvido um quadro de raquitismo”, relembra.
A professora frisa que, não dá para se basear no laudo do tal teste de sensibilidade alimentar para direcionar dietas restritivas. Isso, em qualquer idade, aumenta o risco de carências nutricionais importantes e suas consequências — que, como no exemplo do menino, podem ser perigosas. Sem contar que não há a menor necessidade necessidade, porque é o contrário do que muita gente presume: “Se você tem IgG, a probabilidade de não ser alérgico é bem maior do que a de ter uma alergia”, reforça a médica.
Na boca do povo
Quando terminou sua residência na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que foi sua “casa” por cerca de 20 anos, Renata Cocco encontrava no ambulatório de alergias muitos casos de asma, outros tantos de rinite, mais alguns de dermatites e só meia-dúzia de gatos pingados se queixando de reações a alimentos.
De família de origem italiana, para a qual a vida social acontecia em volta de uma mesa, ela — que confessa adorar comer — logo se sentiu tocada com os pacientes obrigados a restringir alimentos por causa de alergias. E mergulhou esse mundo durante o mestrado, que fez em parte no Mount Sinai, referência em saúde em Nova York, nos Estados Unidos. Depois, ao longo do doutorado, foi estudar frações proteínas de alimentos — capazes de disparar as reações intempestivas do sistema imune nas alergias — em Uppsala, na Suécia.
“Hoje, a prevalência de alergias alimentares explodiu”, constata. Os dados a seguir são americanos: de 2% a 5% das crianças nos Estados Unidos têm alguma alergia alimentar e o problema aparece entre 1% e 2% dos adultos.
Há várias hipóteses para a frequência maior. “É uma doença da vida moderna porque, com o saneamento básico, as vacinas e os antibióticos, a mortalidade infantil diminuiu”, diz a médica. “Em compensação, é como se o sistema imunológico passasse a trabalhar de outra forma. Declara guerra a proteínas encontradas nas mais diversas comidas e bebidas. “No passado, entre as crianças, o leite ocupava o topo do ranking entre as causadores de alergias alimentares. Hoje, as castanhas e o amendoim vêm ocupando esse lugar”, observa a professora.
E talvez, por terem se tornado mais comuns, as alergias alimentares caíram na boca do povo. Tem um lado ruim em toda essa popularidade. “Agora, qualquer mal-estar que a pessoa sente depois de colocar algo na boca é tachado de alergia alimentar”, nota a médica. E os testes que não resolvem nada, infelizmente, ganham espaço.
Fonte: uol