(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 23 de dezembro de 2023)
O artigo 1º. da Lei 9.455, em vigor há mais de 25 anos, diz o seguinte: “Constitui crime de tortura: submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou de grave ameaça, a intenso sofrimento físico e mental”. A pena pode ir a até 16 anos de prisão; é agravada se o crime for cometido por agente público e atingir maiores de 60 anos. Os fatos mostram que há, neste momento no Brasil, mais de mil pessoas que estão sob a autoridade do e são obrigadas a usar tornozeleira eletrônica, depois de receberem liberdade provisória nos processos sobre o quebra-quebra do dia 8 de janeiro em Brasília. Usam as tornozeleiras porque há a grave ameaça de voltarem à prisão se não usarem. A exigência do STF, enfim, submete os acusados a intenso sofrimento físico e moral. Com a proibição de se afastarem a mais de 300 metros do local onde estão confinados, não podem receber o tratamento médico que o seu estado de saúde exige. Não podem trabalhar para ganhar o próprio sustento, pois não encontram emprego a essa distância de casa; também não podem receber qualquer espécie de remuneração ou aposentadoria, pois as suas contas no banco estão bloqueadas.
Não se trata de punição legal pela prática de alguma infração. Os réus em liberdade provisória não foram condenados por nenhum crime até agora — muitos, aliás, foram soltos porque o Ministério Público Federal reconhece por escrito que não há provas suficientes contra eles, ou que sua participação nos tumultos foi irrelevante. Se são inocentes até prova em contrário, o castigo que estão recebendo é ilegal. Mesmo que estivessem condenados por “tentativa de golpe de Estado” e por “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” (as duas coisas ao mesmo tempo), a lei proíbe que sofram castigos que vão além da pena estabelecida em sentença. A pena, para as acusações feitas, é unicamente de prisão; não inclui bloqueio de contas, ou limitação de cuidados médicos. Os réus, além disso tudo, não tinham nenhuma possibilidade material de cometer o crime de “golpe de Estado” do qual são acusados. O uso da tornozeleira eletrônica, enfim, não é uma “medida cautelar” — para impedir que os suspeitos fujam do Brasil, ou sabotem o processo penal, ou cometam novos crimes. Todos eles são primários; não representam qualquer perigo para a segurança da sociedade, e não têm a mais remota possibilidade de derrubar o governo ou destruir a democracia. A determinação tem um único propósito: impor sofrimento aos réus.
Acredita-se que pessoas descritas como “fascistas” não têm direitos civis, ou de qualquer tipo. É a negação da democracia.
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Fonte: revistaoeste