Nos últimos dias, partidos e governadores da esquerda nacional — aqueles mesmos que, em passado não tão remoto, costumavam ver no Supremo Tribunal Federal um entrave elitista à “vontade popular” — . Essa reverência, digna de clero em romaria, foi celebrada com a solenidade de um sacramento (ou, diria um observador mais malicioso, com a concupiscência de um bacanal). E, como já virou regra na política brasileira, quando a esquerda recorre a fórmulas de afeto institucional, convém sempre verificar onde termina a liturgia e onde começa a conspiração.
A cena teria causado perplexidade se não fosse velha conhecida de quem estudou dois parágrafos de Gramsci. O comunista italiano, cujo nome virou senha de admissão nos círculos lulopetistas, ensinava que a conquista do poder exige mais do que tanques ou votos: requer a captura das instituições por dentro, de modo que o Estado — ou, como dizia ele, o “Estado ampliado” — passe a funcionar como correia de transmissão da hegemonia ideológica do grupo dominante. Com a imprensa domesticada, as universidades regimentadas e os sindicatos comprados, restava o último bastião: o Judiciário. A , instância derradeira de contenção do arbítrio (abaixo apenas do Juízo Final), precisava, ela também, ser submetida à pedagogia revolucionária.
O resultado está à vista. O hoje, não se contenta em interpretar criativamente a Constituição: reescreve-a em tempo real, sob medida para os interesses de ocasião do consórcio que, sob o nome fantasia de “democracia”, administra a simbiose entre partido, imprensa e tribunal. A esquerda, que durante anos bradava contra o “entulho autoritário”, descobriu agora as delícias da censura quando a caneta é sua. E diante do primeiro ruído de crítica institucional, desfila aos pés dos ministros com uma devoção canina. Eis aí a Nova República em seu esplendor, tal como concebida, nos anos 1980, pela intelectualidade gramsciana tucanopetista.

Por óbvio, a solidariedade à Corte nada tem de genuína. É, antes, uma saudação ao novo comitê central do projeto hegemônico — um gesto que reconhece, sem dizer, que a esquerda já não confia no eleitorado, nem nas urnas, nem tampouco no Congresso que ela mesma esvaziou. O único poder digno de reverência é aquele que não presta contas a ninguém, o que decide sozinho, sem apelação, e fá-lo ainda em nome da “normalidade institucional”.
Resta que, se o Supremo virou o diretório informal do lulopetismo — e, mais geralmente, daquilo que chamava de “socialismo do século 21” —, é apenas porque foi longamente educado para sê-lo. E, se a esquerda o trata com tamanho zelo, não é por apreço à lei, mas por saber, com a clareza dos cínicos, que nenhum outro poder lhe garante com tanto empenho o privilégio de transgredir sem punição e punir sem transgressão.
Fonte: revistaoeste