Depois de uma tramitação apressada, motivada pela comoção nacional decorrente de um vídeo do influenciador Felca, a impressão que fica ao ler o texto final do “PL da Adultização”, aprovado pelo Senado em votação final simbólica na quarta-feira e enviado para a sanção presidencial, é a de que o resultado poderia ter sido muito pior, mas que ainda há lacunas sérias deixadas para regulamentação posterior. As intenções podem ser nobres, o projeto pode ter contemplado situações que não existiam quando da aprovação de leis anteriores sobre a internet ou sobre a proteção de crianças e adolescentes, mas os meios encontrados ainda podem dar margem a interferências políticas no funcionamento da internet.
O que havia de interessante no projeto foi mantido, com novas obrigações a provedores, redes sociais e outros produtos on-line usados por crianças e adolescentes para que adotem medidas de prevenção a possíveis situações de violação de direitos. Ainda que a grande preocupação seja com os casos de exploração sexual e exposição a conteúdos inadequados para menores, como a pornografia, o PL da Adultização acertava ao tratar também de plataformas como jogos on-line, que têm mecanismos potencialmente viciantes, como certos tipos de recompensas. De forma inédita, o texto impõe transparência às redes sociais na moderação de conteúdo, obrigando-as a informar usuários que tenham publicações removidas a respeito, explicitando a postagem apagada, o motivo da moderação e oferecendo uma chance de contestar a decisão. Além disso, o PL afirma claramente que é obrigação dos pais e responsáveis estar atentos ao que as crianças e adolescentes fazem na internet.
Não foi por falta de leis que os crimes contra crianças e adolescentes na internet se expandiram, mas pela ineficácia de órgãos investigativos, pela leniência de magistrados, e pelo descuido de pais e responsáveis desinteressados
A grande dúvida a respeito da aplicação do PL da Adultização, no entanto, permanece: o texto não excluiu a criação de mais uma estrutura burocrática, chamada no texto de “autoridade administrativa”, que “ficará responsável por fiscalizar o cumprimento desta lei em todo o território nacional e poderá editar normas complementares para regulamentar os seus dispositivos”. Como ela funcionará? Quem indicará seus membros? Por que os órgãos já existentes não são capazes de realizar esse trabalho? Para essas perguntas não há respostas. Chegou-se a divulgar que os integrantes precisariam passar por sabatina no Senado, mas o texto aprovado não traz nada desse teor. Em outras palavras, persiste o risco da criação de um colegiado sujeito a interferências políticas, o que é ainda mais arriscado com um governo tão propenso a impor a censura nas redes sociais.
Felizmente, na versão final essa nova “autoridade nacional” perdeu dois de seus superpoderes. Em versões anteriores do PL, ela poderia decidir, administrativamente, pela suspensão temporária de um provedor ou até mesmo pela proibição de suas atividades. O texto que aguarda sanção deixou ao novo órgão a possibilidade de aplicar advertências e multas, com as duas punições mais graves reservadas exclusivamente ao Judiciário – uma melhoria que só não é tranquilizadora porque o pendor do atual Judiciário também é altamente favorável à censura. No estágio final da tramitação, outra ameaça à liberdade de expressão foi bastante mitigada, com as denúncias de conteúdos potencialmente violadores de direitos sendo reservadas apenas à vítima, a seus representantes, ao Ministério Público e a entidades representativas de defesa dos direitos de crianças e de adolescentes; além disso, os provedores devem criar formas de identificar e punir o uso abusivo das ferramentas de denúncia – se tudo isso haverá de funcionar como deve, é algo que só a prática haverá de mostrar.
À parte os pontos positivos e negativos do PL da Adultização, fato é que as redes que exploram a imagem de crianças e adolescentes na internet nunca se deixaram intimidar pelo Código Penal ou pelo ECA; não foi por falta de leis que esse tipo de crime se expandiu, mas pela ineficácia de órgãos investigativos e pela leniência de magistrados (como ocorre, aliás, como todo crime), bem como pelo descuido de pais e responsáveis totalmente desinteressados pelo que os filhos fazem na internet. Se isso não mudar, acreditar que o mero fato de haver uma nova lei protegerá as crianças e adolescentes nos ambientes on-line é ilusão pura.
Fonte: gazetadopovo