Sophia @princesinhamt
Ciência & Saúde

Pesquisador desenvolve 200 novos medicamentos e testa todos – uma história incrível!

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O MDMA foi sintetizado pela primeira vez em 1912. A farmacêutica Merck buscava uma substância para estimular a coagulação e estancar hemorragias, visando competir com a rival Bayer (1).

A 3,4-metilenodioximetanfetamina surgiu como uma molécula intermediária na síntese do coagulante. Como não era de interesse comercial, acabou patenteada e engavetada. Embora a Merck tenha realizado alguns testes em animais nas décadas seguintes, nada foi publicado sobre os efeitos da substância em humanos – até os anos 1960, quando um químico quarentão ouviu falar dela.

Na época, ele estudava o potencial psicoterapêutico de moléculas semelhantes, como o MDA. Curioso, Alexander Shulgin sintetizou e ingeriu o MDMA, descrevendo o efeito como “um estado de consciência alterado e facilmente controlável”. Ele o apresentou a colegas psiquiatras – e a notícia se espalhou.

No final dos anos 1970, algumas dezenas de profissionais dos EUA já estavam publicando artigos sobre os resultados de usar MDMA na psicoterapia (2). Paralelamente, a substância começava a ser vendida nas ruas e festas sob o nome “ecstasy” – em referência ao estado de euforia que ela provoca. A droga se popularizou nos anos 1980, e se tornou ilegal em 1985.

Shulgin acabou conhecido como “pai do ecstasy” – alcunha que ele odiava. Primeiro porque ele não descobriu a droga, e segundo porque não criou o nome “ecstasy”. Na verdade, ele acreditava que a fama do MDMA como droga de festa só contribuía para ofuscar o potencial terapêutico da substância.

Confia: de paternidade ele entende. Mais de 200 substâncias psicoativas nasceram no laboratório particular de Shulgin, anexo à sua casa. Ele testou todas em si mesmo, e descreveu os efeitos de suas diferentes dosagens – um feito arriscado sem precedentes (e, felizmente, sem sucessores também) na literatura científica.

Colagem, em fundo azul, com imagens de um cérebro e utensílios de laboratório.
(Caroline Aranha/Getty Images/Montagem sobre reprodução)

Esses experimentos geraram uma enorme quantidade de informações sobre o potencial terapêutico e os efeitos colaterais dessas moléculas em humanos. E deixaram um legado: o MDMA, por exemplo, já é aprovado na Austrália para o tratamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático.

A seguir, conheça a história do químico que produzia psicodélicos legalmente no quintal, foi consultor da agência de combate às drogas dos Estados Unidos, a DEA, e então publicou as receitas de todas as suas descobertas – um manifesto pela livre circulação do conhecimento que lhe rendeu uma visita desagradável das autoridades.

Colarinho branco

Shulgin entrou na farmacêutica Dow no final da década de 1950, após terminar um doutorado em bioquímica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Em pouco tempo, criou um dos produtos mais lucrativos da história da empresa: o Zectran, que foi o primeiro pesticida biodegradável do mundo. Graças a essa molécula, obteve o aval da Dow para pesquisar o que quisesse – fosse do interesse da empresa ou não.

Em 1960, Shulgin experimentou mescalina pela primeira vez. Trata-se de uma molécula psicodélica usada ritualisticamente por indígenas norte-americanos desde tempos pré-colombianos. “O mundo me maravilhou, eu o vi como quando eu era uma criança”, escreveu ele sobre a experiência.

Tanto a mescalina quanto o MDMA pertencem a uma classe de moléculas chamadas feniletilaminas, que têm centenas de variações registradas. “Haja criatividade. Você consegue colocar vários agrupamentos químicos para formar uma série de feniletilaminas”, diz Maurício Yonamine, professor de toxicologia da USP. “Se você coloca um bromo em tal posição vira uma coisa, se coloca um cloro vira outra.” No laboratório da Dow, Shulgin se dedicou a estudar essas variações.

Imagem, em fundo vermelho, da equação química da feniletilamina.
(Caroline Aranha/Superinteressante)

As feniletilaminas não saem só de laboratórios. Os neurotransmissores dopamina, adrenalina e noradrenalina, que ocorrem naturalmente no cérebro, pertencem a essa classe. Também existem feniletilaminas no chocolate e no vinho. Mas é claro que a adrenalina de pular de paraquedas é diferente do barato de comer um bombom ou de usar MDMA. A troca de átomos mexe com os efeitos.

Por muito tempo, Shulgin assinou os artigos como bioquímico da Dow. Mas suas feniletilaminas não tinham potencial terapêutico naquele momento, e ele começou a temer que a empresa o forçasse a interromper essa linha de pesquisa. Em 1966, decidiu sair por conta própria e abrir um laboratório particular em sua fazenda na cidade de
Lafayette, Califórnia.

Queridinho da DEA

O laboratório de Shulgin poderia muito bem fazer parte de Hogwarts. O local parecia mais uma sala de poções medieval, com vidros encardidos rotulados à mão, vasos de cactos no chão e teias de aranha no teto. Enquanto sintetizava compostos inéditos à ciência, ele ganhava dinheiro como consultor freelancer em laboratórios e hospitais.

Além das feniletilaminas, Shulgin também se interessou por moléculas chamadas triptaminas. É a classe a que pertencem os neurotransmissores serotonina e melatonina – e também os psicodélicos psilocibina (presente nos “cogumelos mágicos”) e o DMT (princípio ativo da ayahuasca).

Imagem, em fundo cinza, da equação química da triptamina.
(Caroline Aranha/Superinteressante)

Ao experimentar uma molécula nova, Shulgin começava com porções de 10 a 50 vezes menores do que a dose segura conhecida de algum composto parecido que ele já houvesse estudado. Se tivesse dúvidas, partia de quantidades menores ainda.

Caso sentisse efeitos perigosos, como taquicardia e aumento de pressão, não testava doses mais altas. Shulgin anotava tudo: o composto DiPT, por exemplo, produzia apenas efeitos auditivos, como mudança na tonalidade dos sons; já o 2C-B, uma de suas sínteses mais famosas, proporcionava o que ele descreveu como “pulsos de energia” e efeitos visuais de olhos fechados.

Ainda nos anos 1960, Shulgin reuniu um grupo de amigos que também se interessavam em experimentar as substâncias que surgiam no seu laboratório – justamente por serem inéditas, elas não eram ilegais. Além de anotar suas próprias experiências, o bioquímico passou a reunir os relatos desses colegas, boa parte deles psiquiatras e psicólogos.

A Lei de Substâncias Controladas dos Estados Unidos, que rege a legalidade das drogas por lá até hoje, surgiu em 1970. Por ser pesquisador, porém, Shulgin obteve uma permissão do Estado para continuar produzindo substâncias, mesmo as classificadas como “mais perigosas e com potencial de abuso”. Junto a isso, ele mantinha uma excelente relação com a recém-criada DEA, o órgão de controle de drogas do país.

Shulgin dava palestras de farmacologia aos agentes do órgão, explicando em quais receptores do cérebro as drogas atuam, quais efeitos elas provocam e as diferenças entre as substâncias. O bioquímico também fornecia amostras puras para análise forense, que podiam ser comparadas às drogas encontradas nas ruas. Ao longo dos anos, Shulgin acumulou diversos prêmios por sua contribuição à DEA (3).

Ele também atuava como especialista em processos legais envolvendo uso de substâncias. De vez em quando, Shulgin ia ao tribunal falar com juízes e júri sobre os efeitos de determinada droga – e como eles poderiam impactar (ou não) o caso em julgamento.

Colagem, em fundo azul, com imagens de moléculas, glóbulos vermelhos e remédios.
(Caroline Aranha/Getty Images/Montagem sobre reprodução)

O maior exemplo de sua parceria amistosa com o Estado talvez seja um livro de consulta que o bioquímico escreveu para auxiliar agentes, promotores, químicos e qualquer outro interessado em moléculas psicoativas, intitulado Substâncias controladas: um guia químico e legal para as leis de drogas federais. Ele faz um apanhado da história das leis antidrogas e das características de cada substância ilegal.

Tudo isso acontecia enquanto fazia test drive das novas substâncias que ele mesmo sintetizava. Sua maior aliada nessa tarefa foi Ann Gotlieb, uma terapeuta interessada na psicoterapia assistida por psicodélicos por quem ele se apaixonou em 1979.

A boa relação com a DEA só foi possível graças à amizade com Bob Seger, chefe do laboratório do órgão no oeste dos Estados Unidos. Seger esteve presente no casamento de Alexander com Ann Shulgin em 1981, celebrado na fazenda em que ficava o laboratório. Um ano depois, o próprio Seger se casou no mesmo local.

Nos anos 1980, o clima ideológico dos EUA se tornou mais conservador com a presidência do republicano Ronald Reagan – e o controle de drogas enrijeceu. O pesquisador tinha medo de que a DEA mudasse de ideia em relação a ele, e acabasse destruindo seu laboratório e anotações. Assim, o casal Shulgin resolveu compilar sua história e todo o seu conhecimento sobre síntese e efeitos de substâncias psicoativas em um livro, que veio a público em 1991.

“Livro de receitas”

A publicação de PiHKAL: a chemical love story (“PiHKAL: uma história de amor química”, em tradução livre – a obra não tem edição brasileira) foi o início do caos. O título é um acrônimo em inglês para “feniletilaminas que eu conheci e amei”.

A primeira parte do livro é autobiográfica. Alexander e Ann escrevem sobre seu relacionamento e sobre suas experiências com essa classe de moléculas. A segunda metade, por sua vez, é uma lista de 179 feniletilaminas que Shulgin sintetizou em laboratório. Ele explica como fabricá-las passo a passo, e descreve os efeitos que cada dose provoca, usando uma escala criada por ele próprio.

Infográfico, em fundo marrom, com a Escala Shulgin.
(Arte/Superinteressante)

Um leigo com acesso ao livro não faria ideia de como usar as informações contidas ali. Mas quem entende de química sabe. Aos olhos da DEA, o casal havia publicado um compilado de receitas de drogas psicoativas perfeito para potenciais Walter Whites  – que incluía o passo a passo da síntese do MDMA, ilegal desde 1985.

Demorou até que o livro fizesse barulho e chegasse às autoridades. Foi só em 1994 que os agentes da DEA chegaram à fazenda em que o casal morava com um mandado de busca, e reviraram o laboratório. A licença para produzir substâncias controladas foi confiscada, e Shulgin teve que pagar uma multa de US$ 25 mil (R$ 313 mil em valores atuais).

Em 1997, o casal dobra a aposta e publica TiHKAL: the continuation. O acrônimo do título significa o mesmo do primeiro, mas as moléculas da vez são as triptaminas. Além de relatar suas experiências com essas substâncias, eles falam sobre sua relação conturbada com os oficiais da DEA. Na segunda parte do livro, descrevem a síntese e os efeitos de outras 55 substâncias.

Hoje, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime reconhece mais de mil novas substâncias psicoativas (NSP) no mercado clandestino. A maioria são moléculas não tradicionais, em que os fabricantes trocam átomos aqui e ali para driblar a legislação de cada país sem cortar o barato dos clientes. Por isso, hoje, as leis incluem também a proibição dos chamados análogos às drogas mais conhecidas. Não adianta maquiá-las em laboratório mexendo em alguns ingredientes.

É fato que esses livros podem ter sido usados para a fabricação de substâncias ilegais. Porém, as moléculas inéditas presentes ali estão longe de ser protagonistas de problemas de saúde pública, como é o caso do crack e de opioides como a heroína.

“Não é como se ele tivesse feito o manual para sintetizar todos os derivados do fentanil [droga que mais mata por overdose nos EUA hoje]”, diz Luís Fernando Tófoli, psiquiatra da Unicamp responsável pelo Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos.

“A publicação de PiHKAL e TiHKAL não é um problema de saúde pública no Brasil e em nenhum lugar do mundo.” Atualmente, essa dupla de livros é entendida por especialistas principalmente como um manifesto pela livre divulgação dos resultados de pesquisas científicas.

Shulgin jamais comercializou o que saía do seu laboratório. Seu interesse era outro: explicar os caminhos de síntese que ele havia descoberto e registrar os efeitos dessas substâncias em humanos, especialmente com o objetivo de desenvolver terapias psiquiátricas e psicológicas mais eficazes.

Para ter aval médico, qualquer substância deve passar pelo escrutínio rigoroso de três fases de ensaios clínicos, que vão avaliar a eficácia e a segurança da molécula. Por exemplo: sabe-se que o MDMA, embora já esteja sendo empregado no tratamento de TEPT, pode ser letal em altas quantidades.

Depois de 88 anos de vida e mais de 4 mil trips, Alexander Shulgin morreu em junho de 2014. Quem o conheceu pessoalmente o descreve como uma máquina de trocadilhos, que mudava as letras de palavras da mesma forma que fazia com as moléculas.

Referências (1) artigo “The origin of MDMA (ecstasy) revisited: the true story reconstructed from the original documents”; (2) artigo “The early use of MDMA (‘Ecstasy’) in psychotherapy (1977–1985)”. (3) reportagem Dr. Ecstasy, da The New York Times Magazine.

Fontes documentário Dirty Pictures; livro PiHKAL: A Chemical Love Story; Alessandra Sussulini, professora do Departamento de Química Analítica na Unicamp.

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Fonte: abril

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