OO cafĂ©, segundo dados do IBGE, Ă© o alimento mais popular do Brasil: 78,1% das pessoas tĂȘm o hĂĄbito de consumi-lo (superando atĂ© o arroz, com 76,1%, e o feijĂŁo, com 60%). Mais de 1 bilhĂŁo de pessoas, no mundo, tomam cafĂ© todos os dias. Amamos essa bebida pelo cheiro e pelo gosto, mas tambĂ©m pela sensação que ela produz: vocĂȘ fica mais alerta e disposto, sem se cansar, por vĂĄrias horas apĂłs tomar uma xĂcara.
A explicação estĂĄ na cafeĂna, a substĂąncia ativa presente no cafĂ©. Ela penetra no cĂ©rebro e se conecta aos receptores de adenosina, impedindo a ação desse neurotransmissor inibitĂłrio â e nos deixando ligadĂ”es. Mas parte desse efeito, na verdade, nĂŁo Ă© bem o que parece ser. Â
Isso foi demonstrado num estudo (1) publicado em junho por cientistas de sete universidades e instituiçÔes de pesquisa de Portugal e da Espanha. Eles reuniram um grupo de 47 voluntĂĄrios, que passaram por exames de ressonĂąncia magnĂ©tica do cĂ©rebro antes e depois de tomar cafĂ© â ou 100 ml de ĂĄgua quente misturada com cafeĂna.
Os cientistas constataram que tanto o cafĂ© quanto a ĂĄgua cafeinada reduziam a atividade da ârede de modo padrĂŁoâ, um conjunto de regiĂ”es cerebrais que Ă© acionado quando estamos descansando, sem pensar em nada. Normal; Ă© a ação estimulante da cafeĂna.
Mas tambĂ©m houve uma descoberta surpreendente. O cafĂ© aumentava a atividade do giro occipital mĂ©dio, ĂĄrea ligada ao processamento visual, e da rede executiva central, envolvida na atenção, na memĂłria e no raciocĂnio. SĂł que a ĂĄgua â que continha 85 mg de cafeĂna, a mesma quantidade do cafezinho servido â nĂŁo provocava esses efeitos.
âIsso aponta para uma sensação imaginĂĄria (âŠ) que nĂŁo parece depender dos efeitos neuroquĂmicos da cafeĂnaâ, escrevem os autores. Ou seja: boa parte do que sentimos apĂłs tomar cafĂ© nĂŁo Ă© causado pela bebida em si, mas pela expectativa que temos dela. Efeito placebo.

Ele faz parte da natureza humana, e tambĂ©m estĂĄ na raiz da medicina moderna. Para que um medicamento seja considerado eficaz, ele deve demonstrar que Ă© superior ao placebo â ou seja, os pacientes que o tomaram devem melhorar mais do que aqueles que engoliram comprimidos falsos.
SĂŁo os estudos do tipo âduplo-cegoâ, em que os voluntĂĄrios nĂŁo sabem se estĂŁo recebendo remĂ©dio ou placebo, e os mĂ©dicos tambĂ©m nĂŁo (daĂ o âduploâ do nome). Isso sĂł Ă© revelado ao tĂ©rmino da experiĂȘncia, para nĂŁo comprometer os resultados. Mas o efeito placebo Ă© tĂŁo poderoso que, mesmo com todo esse cuidado, ele acaba influindo.
Em 2021, cientistas dinamarqueses analisaram 186 estudos, com 15.765 pacientes, que haviam medido a eficåcia de remédios e tratamentos contra diversas doenças (2). Todos obedeceram ao esquema duplo-cego.
Os pesquisadores compararam vĂĄrios estudos diferentes sobre as mesmas doenças, e com isso conseguiram calcular a influĂȘncia de elementos externos, nĂŁo farmacolĂłgicos, sobre as tentativas de tratar cada uma. Resultado: 54% da eficĂĄcia dos medicamentos podia ser atribuĂda a âfatores contextuaisâ, relacionados Ă s expectativas do paciente. Efeito placebo.
E a intensidade disso variava. Quando os estudos reuniam voluntĂĄrios mais jovens, ou mais mulheres do que homens, o placebo ficava mais forte. Por outro lado, quando o estudo testava o tratamento de uma doença crĂŽnica, o efeito era mais fraco â talvez porque os pacientes, que jĂĄ sofriam com aquele problema hĂĄ um bom tempo, acreditassem menos na cura.
JĂĄ quando os voluntĂĄrios nĂŁo eram informados de que o estudo era duplo-cego, o efeito placebo era especialmente intenso: como ninguĂ©m sabia que podia estar recebendo pĂlulas falsas, todos tinham maior esperança.
A medicina convive com o efeito placebo, e se utiliza dele, hĂĄ sĂ©culos. Mas sĂł recentemente começou a enxergar como ele funciona. E chegou a uma conclusĂŁo surpreendente: o placebo nĂŁo Ă© meramente psicolĂłgico. Ele desencadeia processos fisiolĂłgicos que realmente alteram o corpo â e talvez tambĂ©m possam influir, de forma concreta, em doenças.
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A origem do efeito placebo
A expressĂŁo âplaceboâ vem do latim placere, e significa âagradarâ. âĂ um efeito psicolĂłgico ou fisiolĂłgico benĂ©fico, de uma intervenção mĂ©dica que carece de atividade especĂfica para a condição a ser tratadaâ, define a neurologista Karen Muñana, que Ă© pesquisadora da Universidade Estadual da Carolina do Norte e autora de estudos sobre o efeito placebo.
O primeiro a investigĂĄ-lo de forma cientĂfica foi o mĂ©dico britĂąnico John Haygarth, que em 1799 resolveu fazer uma experiĂȘncia. Estava na moda utilizar ponteiras de metal, carĂssimas, que supostamente seriam capazes de tirar as doenças do corpo. Eram os âextratores Perkinsâ, recomendados por mĂ©dicos sĂ©rios da Ă©poca.
Haygarth nĂŁo acreditava naquilo, e teve uma sacada: construiu ponteiras idĂȘnticas Ă s Perkins, sĂł que feitas de madeira, e começou a testar. O resultado foi que ambas âfuncionaramâ da mesma forma, com os pacientes relatando a mesma melhora. Haygarth escreveu um livro sobre o caso â que classificou com a expressĂŁo âefeito placeboâ.
DĂ©cadas mais tarde, o mĂ©dico americano Austin Flint deu o prĂłximo passo. Ele teve a seguinte ideia: e se um grupo de pacientes tomasse um remĂ©dio falso, placebo, enquanto outro recebesse um medicamento tradicional? Em 1863, Flint fez o teste, comparando um tratamento da Ă©poca para reumatismo (uma solução de Ăłpio, aplicada diretamente sobre as articulaçÔes) com o que chamou de âremĂ©dio placeboicoâ â ele usou tintura de quĂĄssia, uma planta, âmuito largamente diluĂdaâ.
O resultado(3), publicado no American Journal of the Medical Sciences, foi que o remédio e o placebo tinham o mesmo efeito. Logo, o tratamento era ineficaz. A descoberta foi um dos pontos altos da carreira de Flint, que se tornaria presidente da Associação Médica Americana. Mas ele não acertou na mosca.
Isso porque Flint usou dados de experimentos diferentes, realizados em dois momentos distintos â o que pode distorcer as coisas, e nĂŁo permite que os resultados sejam diretamente comparados.
Foi sĂł bem depois, em 1944, que o placebo finalmente se tornaria a base dos estudos clĂnicos na forma atual â e traria a medicina para a era moderna. Naquele ano, o Conselho BritĂąnico de Pesquisa MĂ©dica realizou o primeiro âteste cego randomizadoâ, que mais tarde ficaria conhecido como duplo-cego.
Ele aconteceu na FinlĂąndia, para testar um novo antibiĂłtico chamado patulina, que seria capaz de combater resfriados. Dois grupos receberam o medicamento; outros dois, placebo. AlĂ©m disso, a distribuição dos voluntĂĄrios (quem iria tomar o quĂȘ) foi aleatĂłria â daĂ o ârandomizadoâ do nome.
O trabalho nĂŁo identificou nenhum benefĂcio visĂvel da patulina, que acabou sendo descartada. Na Ă©poca, o trabalho foi publicado em um jornal mĂ©dico finlandĂȘs de baixo alcance, e nĂŁo repercutiu muito.
O placebo sĂł chamou mesmo a atenção em 1948, quando um estudo feito pelo Medical Research Council, do governo inglĂȘs, usou pĂlulas falsas para avaliar a eficĂĄcia da estreptomicina, um antibiĂłtico, contra a tuberculose. O remĂ©dio passou no teste â e o estudo sacramentou o poder do placebo como instrumento cientĂfico.
O mĂ©todo traz consigo um dilema Ă©tico: ao fornecer pĂlulas falsas para metade dos voluntĂĄrios, os cientistas estĂŁo deixando de tratĂĄ-los. Por isso, hĂĄ regras para o uso de placebo em estudos clĂnicos. Elas foram sintetizadas na Declaração de Helsinki, publicada em 1964 pela Associação MĂ©dica Mundial, e aperfeiçoadas em 2002.
O placebo sĂł pode ser empregado se os pacientes que o receberem nĂŁo ficarem sujeitos a qualquer risco adicional de danos graves, ou irreversĂveis, como resultado da falta de tratamento.
De lĂĄ para cĂĄ, ele se tornou parte indispensĂĄvel das pesquisas mĂ©dicas. Foi usado em estudos sobre diversas doenças â e demonstrou eficĂĄcia contra coisas tĂŁo diferentes quanto acne, asma, resfriado, alergia, Ășlcera, ansiedade e dores de cabeça.
Geralmente utilizam-se comprimidos de açĂșcar ou injeçÔes de soro fisiolĂłgico. Mas qualquer procedimento mĂ©dico de mentirinha, que simule uma intervenção real, tambĂ©m pode ser considerado placebo. Existe atĂ© cirurgia placebo.

Em 2002, cientistas da Baylor College of Medicine, em Houston, publicaram um estudo investigando a eficĂĄcia dessa prĂĄtica para tratar a osteoartrite do joelho. Submeter alguĂ©m a uma falsa cirurgia pode parecer loucura ou curandeirismo, mas Ă© ciĂȘncia: o trabalho (4) foi publicado no New England Journal of Medicine, um dos periĂłdicos cientĂficos mais respeitados do mundo.
O estudo reuniu 165 pacientes com osteoartrite, dos quais 60 passaram por uma simulação de cirurgia (os demais foram submetidos a artroscopia ou lavagem articular, duas tĂ©cnicas tradicionais). Na operação placebo, os pacientes receberam trĂȘs incisĂ”es na pele, no mesmo tamanho que seria feito em uma cirurgia real.
âUma solução salina foi borrifada para simular os sons da lavagem [articular]â, relata o estudo. Os pacientes foram mantidos na mesa de cirurgia pelo mesmo tempo que seria necessĂĄrio na cirurgia de verdade, e o pĂłs-operatĂłrio tambĂ©m foi idĂȘntico ao real.
âOs pacientes passaram a noite apĂłs o procedimento no hospital, e foram atendidos por enfermeiras que desconheciam a atribuição do grupo [uso da cirurgia placebo].â A falsa operação se mostrou tĂŁo eficaz quanto as cirurgias tradicionais: dois anos apĂłs o procedimento, os pacientes relatavam a mesma melhora.
Um fenĂŽmeno similar, mas ainda mais impressionante, aconteceu com o americano Mike Pauletich. Em 2004, quando estava com 42 anos, ele começou a sofrer os primeiros sintomas de Parkinson. Passou a ter dificuldade para escovar os dentes e lançar bolas com a mesma agilidade â ele era o tĂ©cnico de um time de beisebol infantil no qual seu filho jogava.
Foi ao mĂ©dico e ouviu um prognĂłstico aterrorizante: em dez anos, ele estaria numa cadeira de rodas, sem conseguir nem se alimentar sozinho. Sua saĂșde continuou se deteriorando atĂ© que, em 2011, Pauletich ficou sabendo de uma empresa chamada Ceregene, que estava desenvolvendo um novo e radical tratamento contra o Parkinson: injetar no cĂ©rebro um vĂrus geneticamente modificado para carregar neuturina, uma substĂąncia essencial para os neurĂŽnios que produzem dopamina (cuja falta causa o Parkinson).
Ainda nĂŁo tinha dado certo â a empresa vinha tentando hĂĄ cinco anos, sem sucesso â, mas a Ceregene estava preparando uma nova tentativa.
EntĂŁo Pauletich se submeteu a uma cirurgia no cĂ©rebro â falsa. Ele nĂŁo sabia, mas estava no grupo de controle, placebo. Passou por todos os preparativos para o procedimento e chegou a receber uma incisĂŁo, minĂșscula, no crĂąnio.
O procedimento foi realizado por mĂ©dicos da Universidade Stanford. Durante dois anos, os resultados foram monitorados, nos dois grupos. Em 2013, veio a notĂcia: o tratamento da Ceregene novamente havia fracassado. SĂł que Pauletich estava muito melhor.
Ele, que em 2011 jĂĄ tinha dificuldade para falar devido ao avanço do Parkinson, agora havia recuperado boa parte da agilidade nos movimentos e nas expressĂ”es faciais. Foi melhorando cada vez mais: começou a fazer exercĂcios, ganhou força fĂsica e correu um triatlo. Estava curado.
âUma piada comum entre os cientistas Ă© que o maior avanço na medicina do Parkinson, na Ășltima dĂ©cada, foi a cirurgia simuladaâ, conta o jornalista americano Erik Vance no livro Suggestible You (âVocĂȘ sugestionĂĄvelâ, nĂŁo lançado no Brasil), que relata esse caso. Outros pacientes de Parkinson receberam a falsa cirurgia, no teste da Ceregene. NĂŁo melhoraram como Pauletich.
âMilagresâ como esse Ă parte, o uso de placebo Ă© essencial para a validação de novos tratamentos. Ă muito difĂcil imaginar a medicina moderna sem ele. Ao mesmo tempo, sĂł recentemente a ciĂȘncia começou a desvendar o mais importante: como o efeito placebo age no organismo, afinal?
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Como o placebo funciona
O efeito placebo vem da crença no tratamento. Mas, ao mesmo tempo, a coisa nĂŁo Ă© tĂŁo simples â porque o placebo pode funcionar mesmo se for descoberto, e a pessoa souber que nĂŁo estĂĄ sendo tratada de verdade. Isso foi demonstrado pela primeira vez em 2022, por uma experiĂȘncia da Universidade de Basileia, na SuĂça.
Primeiro os cientistas pediram que os voluntĂĄrios, 112 ao todo, escrevessem um texto relatando uma situação na qual haviam feito algo ruim. O objetivo era induzir sentimentos de ansiedade e vergonha. Depois as pessoas foram divididas em trĂȘs grupos. O primeiro nĂŁo recebeu nada. O segundo tomou um falso calmante. O terceiro tambĂ©m â sĂł que foi informado disso, e sabia que estava recebendo placebo.
Em seguida, os pesquisadores aplicaram testes padronizados para medir o grau de ansiedade dos voluntĂĄrios (o resultado foi comparado ao de outro teste, feito imediatamente antes do estudo). Como esperado, o placebo funcionou, reduziu a ansiedade. E o placebo declarado tambĂ©m: quem sabia que estava tomando um remĂ©dio fake tambĂ©m se acalmou â a pĂlula fez 50% do efeito do placebo normal (5).

Isso mostra que as causas do efeito placebo podem ser mais complexas do que parecem. Uma possibilidade, levantada em artigos recentes, Ă© que ele surja de associaçÔes subconscientes entre a experiĂȘncia de ser tratado e a recuperação da saĂșde.
âTrata-se de um efeito contextual, ou seja, uma resposta espontĂąnea que Ă© impulsionada por muitos fatores, incluindo as credenciais, a integridade e a empatia do profissional de saĂșdeâ, afirma Robin Christensen, mĂ©dico do Hospital da Universidade de Copenhague (Dinamarca) e autor de estudos sobre placebo.
Ou seja: quanto mais a pessoa acredita que vai melhorar, por uma sĂ©rie de razĂ”es, mais ela tem chance de conseguir. âA expectativa de obter um tratamento eficaz estĂĄ relacionada Ă autossugestĂŁoâ, diz Christensen.
Outros vĂŁo alĂ©m, e consideram o placebo um fenĂŽmeno psicossocial, ou seja, coletivo e dependente de fatores culturais. âO efeito placebo Ă© a resposta psicolĂłgica a todo o ritual do ato terapĂȘuticoâ, resume o mĂ©dico Fabrizio Benedetti, pesquisador da Universidade de Turim e especialista no tema.
Ă por isso, por exemplo, que hĂĄ estudos mostrando que pĂlulas coloridas funcionam melhor que as brancas, e medicamentos mais caros ou considerados mais modernos tendem a ser reportados como mais eficientes (6). Porque o efeito placebo nĂŁo Ă© apenas a expectativa pessoal de se curar; tambĂ©m depende de outras coisas, como a crença no progresso cientĂfico ou a ideia de que coisas boas custam caro.
O efeito placebo Ă© tĂŁo poderoso que funciona atĂ© em animais. âObservamos uma resposta positiva em cĂŁes, com a diminuição da frequĂȘncia de convulsĂ”esâ, diz a neurologista Karen Muñana, da Universidade Estadual da Carolina do Norte.
Ela chegou a essa conclusĂŁo analisando cĂŁes que sofriam de epilepsia e foram submetidos a um dos seguintes tratamentos (7): implante no cĂ©rebro, modificaçÔes na dieta ou um novo remĂ©dio antiepilĂ©tico. Em cada um dos trĂȘs testes, houve um âgrupo de controleâ, formado por cĂŁes que tambĂ©m tinham epilepsia, mas receberam placebo.
O falso tratamento teve eficĂĄcia de 26% a 46%.
Segundo Muñana, isso tambĂ©m pode estar relacionado a outros fatores, como a melhora natural da epilepsia (que Ă s vezes acontece) ou a um maior cuidado dos tutores com os cĂŁes que estavam sendo tratados â ainda que com placebo. Cientistas da Universidade de Wisconsin, que tambĂ©m publicaram um estudo sobre o placebo em cĂŁes (8), fazem a mesma ressalva.
Em ratos, o efeito placebo Ă© mais claro. Nos anos 1990, cientistas americanos mostraram que era possĂvel associar um determinado cheiro Ă morfina, e depois conseguir o mesmo efeito desse analgĂ©sico simplesmente expondo os camundongos Ă quele odor (9).
Em 2005, um grupo de cientistas alemĂŁes bolou uma experiĂȘncia (10) para tentar identificar o mecanismo cerebral envolvido no efeito placebo. Eles injetaram ciclosporina, um medicamento imunossupressor, em ratos â e condicionaram os animais a associar aquilo a um lĂquido doce, que eles podiam beber logo apĂłs a injeção.
Deu certo: mais tarde, sĂł o lĂquido (sem a ciclosporina) passou a ter o mesmo efeito imunossupressor do remĂ©dio. Efeito placebo puro. E, mais do que isso, subconsciente (os ratos nĂŁo tinham como saber que a ciclosporina desliga o sistema imunolĂłgico).
AĂ os cientistas danificaram propositalmente a amĂgdala, o hipotĂĄlamo ou o cĂłrtex insular de outros ratos, que entĂŁo foram submetidos ao mesmo processo de condicionamento. E isso impediu o surgimento do efeito placebo â indicando que essas trĂȘs regiĂ”es sĂŁo essenciais para a formação dele.
Estudos em humanos tambĂ©m encontraram indĂcios neurolĂłgicos do fenĂŽmeno. Em 2002, cientistas da Universidade da CalifĂłrnia (Los Angeles) estudaram pacientes que sofriam de depressĂŁo, uma doença cujo tratamento Ă© especialmente sujeito ao efeito placebo â 25% a 60% dos pacientes, dependendo do teste, melhoram apĂłs receber comprimidos falsos (11).
Os pesquisadores queriam entender as razÔes disso. Reuniram 51 voluntårios, e deram antidepressivos para alguns deles ao longo de oito semanas (os demais tomaram placebo). Todos foram submetidos a exames de eletroencefalograma antes e depois do tratamento (12).
Como esperado, o placebo funcionou: 43,7% das pessoas que haviam sido tratadas com ele melhoraram da depressão (o que foi medido usando testes padronizados). Nas outras, não houve efeito. Aà veio a parte mais interessante. Os cientistas compararam os cérebros desses dois subgrupos: de quem tinha respondido, e quem não tinha respondido, ao placebo.
Nas pessoas em que ele fizera efeito, havia maior atividade de certas regiĂ”es cerebrais [veja no infogrĂĄfico abaixo]. E elas nĂŁo eram as mesmas regiĂ”es estimuladas pelos antidepressivos. O estudo mostrou, pela primeira vez, que o placebo provoca uma ação real no cĂ©rebro humano â e ela Ă© diferente da gerada por remĂ©dios de verdade.
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Trabalhos mais recentes foram confirmando e aprofundando essas descobertas. Em 2016, um grupo de pesquisadores da Universidade Northwestern resolveu investigar os mecanismos cerebrais relacionados ao placebo em pacientes com osteoartrite no joelho â sim, a mesma doença que inspirou âcirurgias placeboâ.
O trabalho (13) registrou que, entre os voluntĂĄrios que ingeriram placebo, 47% se sentiram melhor. Normal. O interessante foi: exames de ressonĂąncia magnĂ©tica mostraram que essas pessoas tinham cĂ©rebros anatomicamente diferentes, com maior quantidade de conexĂ”es em trĂȘs ĂĄreas [veja no infogrĂĄfico acima].
Em 2008, cientistas suecos encontraram o primeiro indĂcio de que a propensĂŁo pessoal ao efeito placebo tem base genĂ©tica (14). Cento e oito voluntĂĄrios que sofriam de fobia social tiveram o DNA analisado e fizeram tomografia do cĂ©rebro. Uns foram tratados com antidepressivos, outros com pĂlulas de açĂșcar.
Os cientistas descobriram que as pessoas que tomaram placebo e responderam a ele tinham mutaçÔes no gene TPH2 e na regiĂŁo genĂ©tica 5-HTTLPR â relacionadas Ă produção e eliminação de serotonina no cĂ©rebro.
De lĂĄ para cĂĄ foram identificados 11 genes, ligados Ă serotonina, Ă dopamina e aos receptores opioides e endocanabinoides do cĂ©rebro, que influenciam a resposta ao placebo (15). Provavelmente hĂĄ outros, relacionados a diversas doenças. Um estudo da Universidade Harvard apontou que, em pessoas que tĂȘm sĂndrome do intestino irritĂĄvel, o placebo funciona melhor se o paciente tiver certa mutação no gene COMT, ligado ao processamento da dopamina (16).
Ă por isso que o placebo funciona em parte das pessoas, mas nĂŁo em todas. Ele Ă© genĂ©tico. E fisiolĂłgico tambĂ©m: altera os nĂveis de 74 proteĂnas do sangue, que atuam sobre diversos ĂłrgĂŁos.
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Essa foi a conclusão de um estudo bastante engenhoso (17), realizado em 2020 por um grupo de sete universidades e instituiçÔes alemãs. Noventa participantes foram colocados, um de cada vez, numa cabine com grandes listras verticais, que se deslocavam na horizontal [veja no infogråfico acima].
Isso provoca nĂĄuseas porque confunde o cĂ©rebro. A imagem que chega pelos olhos sugere que o corpo estĂĄ em movimento; mas os sinais vindos do sistema vestibular, no ouvido interno, apontam que o corpo estĂĄ parado. Essa discrepĂąncia provoca tontura e enjoo â Ă© por causa dela que os capacetes de realidade virtual podem causar esses sintomas.
No segundo dia da experiĂȘncia, antes de encarar novamente a âcabine do vĂŽmitoâ, metade dos voluntĂĄrios recebeu um falso tratamento: um gadget que liberava descargas elĂ©tricas de baixa intensidade no pulso. Os cientistas disseram que aquilo iria ajudar a evitar a nĂĄusea. Era mentira: o aparelhinho nem estava ligado.
Todos os participantes tiveram amostras de sangue colhidas antes e depois da experiĂȘncia. Nas pessoas submetidas ao gadget placebo, 74 proteĂnas estavam com nĂveis mais altos ou mais baixos. E a coisa ia bem alĂ©m do sistema digestivo, envolvido diretamente na nĂĄusea: tambĂ©m havia alteraçÔes em proteĂnas ligadas ao sistema imunolĂłgico e atĂ© ao comportamento social [veja no infogrĂĄfico].
O placebo não age apenas sobre a mente. Também pode influenciar, de forma concreta, o corpo.
âĂ um sistema neurobiolĂłgico de autorregulaçãoâ, acredita o biĂłlogo Ted Kaptchuk, diretor do programa de estudos sobre placebo da Universidade Harvard. âO cĂ©rebro estĂĄ sempre amplificando ou diminuindo sensaçÔes, percepçÔes e sintomas. E o contexto da cura o estimula a reduzir os sintomasâ, diz.
Acreditar na cura Ă© tĂŁo importante quanto a prĂłpria cura â especialmente em situaçÔes muito graves ou doenças incurĂĄveis. Em 1957, num caso (18) que se tornaria cĂ©lebre, o psicĂłlogo Bruno Klopfer, da Universidade da CalifĂłrnia (Los Angeles), acompanhou um paciente identificado apenas como âSr. Wrightâ. Ele estava morrendo de cĂąncer nos nĂłdulos linfĂĄticos, e jĂĄ esgotara as opçÔes de tratamento disponĂveis na Ă©poca.
Com uma exceção: uma nova droga antitumoral, chamada Krebiozen. TrĂȘs dias apĂłs receber a primeira injeção, o Sr. Wright estava irreconhecĂvel. Ele, que antes mal conseguia respirar, agora perambulava pelo quarto contando piadas. Exames indicaram que seus tumores haviam diminuĂdo muito. Dez dias depois, ele teve alta do hospital.
Mas, nos meses seguintes, o Sr. Wright começou a ficar preocupado depois de ler artigos, na imprensa, dizendo que o Krebiozen havia fracassado em testes clĂnicos. Ele tornou a piorar e voltou ao hospital. Onde os mĂ©dicos, num gesto de compaixĂŁo e ousadia, resolveram enganĂĄ-lo: disseram ao Sr. Wright que a farmacĂȘutica havia desenvolvido uma nova versĂŁo do remĂ©dio, que seria testada nele. Mentira. A injeção nĂŁo continha remĂ©dio nenhum, nem mesmo o tal Krebiozen.
O Sr. Wright novamente melhorou, atĂ© mais do que na primeira vez, e teve alta. Viveu saudĂĄvel por vĂĄrios meses atĂ© que, novamente, se deparou com notĂcias sobre o malogro do remĂ©dio (que de fato era ineficaz).
Desta vez, a fĂ© do Sr. Wright nĂŁo resistiu â e ele teve uma piora fulminante, morrendo poucos dias depois. Sobreviveria mais tempo se continuasse acreditando no remĂ©dio? NĂŁo dĂĄ para saber. Talvez nĂŁo. Mas Ă© fato que, sem o efeito placebo, o Sr. Wright jamais teria se levantado da cama e tido alta do hospital pela primeira vez. Sucumbiria logo de cara.
Conforme a ciĂȘncia começa a decifrar o enigma do placebo, duas coisas vĂŁo ficando mais claras. O poder, Ă s vezes surpreendente, da esperança.
E a importùncia de permanecer humilde, com os olhos bem abertos, ante os mistérios do corpo humano.
***
O efeito nocebo
Ele Ă© o oposto do placebo â mas igualmente poderoso.
Se vocĂȘ achar que uma coisa vai fazer mal, pode fazer mesmo. HĂĄ estudos mostrando que o efeito nocebo (termo cunhado em 1961 pelo mĂ©dico americano Walter Kennedy) Ă© capaz de desencadear nĂĄuseas, dor de estĂŽmago, dor de cabeça e coceiras pelo corpo â ainda que o remĂ©dio ou tratamento nĂŁo tenha, biologicamente, esse poder.
âO nocebo se deve Ă ansiedade antecipatĂłria. Por exemplo, se disserem que a sua dor irĂĄ piorar nos prĂłximos minutos, a sua ansiedade aumentarĂĄ e vocĂȘ perceberĂĄ mais dorâ, diz Fabrizio Benedetti, pesquisador da Universidade de Turim e autor de estudos a respeito. Num deles, os pacientes eram informados de que a injeção que iriam receber seria dolorida. Era mentira. Mas a injeção doĂa por causa disso (A). No ano passado, um estudo (B) da Harvard Medical School mostrou que o nocebo tambĂ©m afeta as vacinas da Covid: 35% das pessoas que receberam placebo (durante os testes clĂnicos das vacinas) relataram efeitos colaterais.
Fontes A. Conscious Expectation and Unconscious Conditioning in Analgesic, Motor, and Hormonal Placebo/Nocebo Responses. F Benedetti e outros, 2003. B. Frequency of Adverse Events in the Placebo Arms of COVID-19 Vaccine Trials. JW Haas, 2022.
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Fontes (1) Coffee consumption decreases the connectivity of the posterior Default Mode Network (DMN) at rest. M Picó-Perez e outros, 2023. (2) Placebo response and effect in randomized clinical trials: meta-research with focus on contextual effects. SH Hafliðadóttir e outros, 2021. (3) A contribution toward the natural history of articular rheumatism; consisting of a report of thirteen cases treated solely with palliative measures. A Flint, 1863. (4) A Controlled Trial of Arthroscopic Surgery for Osteoarthritis of the Knee. J Moseley e outros, 2002.
(5) Deceptive and open-label placebo effects in experimentally induced guilt. D Sezer e outros, 2022. (6) Commercial features of placebo and therapeutic efficacy. RL Waber e outros, 2008. (7) Placebo effect in canine epilepsy trials. KR Munana e outros, 2010. (8) Effect of analgesic therapy on clinical outcome measures in a randomized controlled trial using client-owned dogs with hip osteoarthritis. S Malek e outros, 2012. (9) Olfactory cues and morphine-induced conditioned analgesia in rats. JM Valone e outros, 1998. (10) Neural substrates for behaviorally conditioned immunosuppression in the rat. G Pacheco-Lopéz e outros, 2005.
(11) Placebos, drug effects, and study design: a clinicianâs guide. FM Quitkin, 1999. (12) Changes in Brain Function of Depressed Subjects During Treatment With Placebo. A Leuchter e outros, 2002. (13) Brain Connectivity Predicts Placebo Response across Chronic Pain Clinical Trials. P TĂ©treault, 2016. (14) A Link between Serotonin-Related Gene Polymorphisms, Amygdala Activity, and Placebo-Induced Relief from Social Anxiety. T Furmark e outros, 2008. (15) Genetics and the placebo effect: the placebome. KT Hall e outros, 2015.
(16) Catechol-O-Methyltransferase val158met Polymorphism Predicts Placebo Effect in Irritable Bowel Syndrome. Kathryn T. Hall e outros, 2012. (17) Molecular classification of the placebo effect in nausea. Karin Meissner e outros, 2020. (18) Psychological variables in human cancer. B Klopfer, 1957.
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Fonte: abril