Apesar de o Brasil ter deixado o Mapa da Fome da ONU em julho de 2025, Mato Grosso ainda apresenta índices preocupantes. Com 3,9% da população em situação de subalimentação, o estado ultrapassa o limite de 2,5% estabelecido pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), o que teria impedido a conquista nacional se dependesse apenas do estado, que é considerado um dos maiores produtores do país.
A informação foi trazida pela professora coordenadora do curso de Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Patrícia Nogueira, durante palestra na tarde desta sexta-feira (19) no evento Cibus Veritas – Comida de Verdade para Todos, Agricultura Familiar contra a Fome, promovido pelo Ministério Público de Mato Grosso.
“Mato Grosso é um estado de grande riqueza e foi um dos que mais cresceu economicamente no último ano. Ainda assim, registra um índice de insegurança alimentar grave de 3,9%, superior à média nacional. Se dependesse apenas do estado, o Brasil não teria saído do Mapa da Fome, já que o limite estabelecido pela FAO é de 2,5% da população em situação de subalimentação”, destacou a palestrante.
Patrícia Nogueira e a também nutricionista e professora doutora em Saúde Coletiva pela UFMT, Márcia Montanari Corrêa, dividiram o painel e abordaram o tema “Segurança e soberania alimentar e nutricional a partir da perspectiva dos modelos de produção, distribuição e acesso aos alimentos”.
As expositoras defenderam o quanto é importante olhar para esse processo de produção, distribuição e acesso aos alimentos que chegam à mesa da população, uma vez que o tema está diretamente relacionado com a saúde. Abordaram os reflexos da contaminação por agrotóxicos, fizeram relação entre a produção, questões ambientais e mudanças climáticas, lembraram que todos os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável estão ligados à alimentação, defenderam a agroecologia e que consumir, comprar e comer são atos políticos.
“O modelo de produção, a maneira como a gente produz o alimento, tem a ver também com o modelo de industrialização: monoculturas para produzir ultraprocessados. Nós temos uma variedade imensa de produtos alimentares que o ser humano consegue produzir, mas concentramos a nossa produção e industrialização de alimentos em poucos itens alimentares, que são o milho, a cana-de-açúcar, a soja e o trigo. Então, o modelo de produção de alimentos está pautado também no modelo de consumo”, alertou Márcia Montanari Corrêa.
Ela reforçou que cerca de 70% da área agriculturável de Mato Grosso é destinada à produção de commodities agrícolas, chegando a 98% em municípios como Sapezal, Campo Novo do Parecis, Campos de Júlio, Sorriso e Sinop. Segundo Márcia Montanari, a terra, a água e os recursos naturais de Mato Grosso são usados para produzir bens que abastecem mercados distantes, seja no Brasil ou no exterior. Muitos desses produtos não retornam diretamente como alimento para a população local. Enquanto isso, itens básicos como arroz, feijão e hortaliças, que vão à mesa do mato-grossense, muitas vezes vêm de outros estados.
“Temos recordes anuais na produção de commodities como soja, milho e algodão. No entanto, isso não é suficiente para eliminar a fome no país. Por isso, o discurso de que o Brasil alimenta o mundo precisa ser relativizado. É necessário olhar com mais critério para esse modelo de produção e distribuição”, defendeu a doutora em Saúde Coletiva. Ela chamou atenção para o paradoxo de um país onde há pessoas morrendo de fome e, ao mesmo tempo, enfrentando obesidade. A reflexão reforça a importância de garantir uma alimentação adequada e de repensar o atual modelo de produção e distribuição de alimentos.
A coordenadora do curso de Nutrição da UFMT abordou a distribuição das despesas com alimentação por faixas de renda e destacou que os maiores índices de insegurança alimentar estão concentrados entre populações rurais, com menor renda familiar, desempregados, mulheres, pessoas pretas e pardas. “Então a fome tem classe, gênero e raça”, atestou, ao defender que a solução para o problema deve ser intersetorial e envolver também a educação.
Ao abordar o contexto nutricional brasileiro, Patrícia Nogueira também discorreu sobre o paradoxo entre fome e obesidade, evidenciando o impacto do alto consumo de produtos ultraprocessados no perfil alimentar da população. Segundo ela, esse padrão resulta em uma dieta desequilibrada, com excesso de gorduras e baixo valor nutricional. A pesquisadora apresentou estudos que relacionam o consumo de alimentos com aditivos e conservantes com doenças e a saúde mental. Ela apontou ainda que esse consumo é favorecido pelo fácil acesso, pela forte influência da publicidade televisiva e pelo crescente afastamento das habilidades culinárias entre os brasileiros.
“A gente só vai garantir a soberania alimentar e nutricional quando o país tiver condições de oferecer alimentos para toda a população, e isso é uma decisão política, social e econômica. Pensar um sistema alimentar contra-hegemônico é fundamental para garantir a sobrevivência das futuras gerações”, finalizou.
Fonte: cenariomt