Via @consultor_juridico | Em 2006, o Congresso aprovou a Lei nº 11.343, chamada Lei das Drogas, a qual, em seu artigo 28, afastou a previsão de pena privativa de liberdade ao usuário de entorpecentes ilícitos, sem diferenciação de espécie, mantendo a cominação de pena de reclusão apenas para o traficante, em conduta tipificada no artigo 33.
Quase 18 anos depois, em junho de 2024, o STF editou o Tema 506 da Repercussão Geral (RE 635.659) para efetivamente descriminalizar o consumo pessoal de maconha (cannabis sativa). Contudo, no apertado julgamento por maioria simples (6 a 5), a solução da Suprema Corte acabou repleta de ressalvas. Vale delimitá-las para a melhor compreensão do julgado:
Em primeiro lugar, não houve a declaração da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006. O dispositivo, na verdade, passou a ter dupla natureza (penal ou administrativa), a depender da droga consumida pelo usuário. Em se tratando de maconha, afastaram-se as previsões criminais, como a prestação de serviços à comunidade (artigo 28, II) e as medidas coercitivas da admoestação verbal e multa (artigo 28, §6º), incidindo o agente nas sanções previamente existentes, agora em caráter administrativo, de advertência sobre os efeitos da droga (artigo 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28, III). Caso o consumo seja de qualquer outra substância ilícita, por outro lado, mantém-se a redação integral da lei e o caráter criminal da norma;
Em segundo lugar, embora o Tema fale em ilicitude extrapenal e sanções administrativas, há a expressa previsão de instauração de procedimento judicial de “de natureza não penal”, sem repercussões criminais. Ou seja, o novo tratamento do usuário de maconha permanecerá ocorrendo perante o Juizado Especial Criminal (artigo 48, §1º), em procedimento nominalmente não criminal;
Em terceiro lugar, apesar de o STF ter indicado a quantidade específica da droga para a definição do usuário — 40 (quarenta) gramas ou 6 (seis) plantas-fêmeas —, trata-se de presunção relativa e circunstância sujeita a futura legislação. Na prática, a quantidade não impedirá a prisão em flagrante se presentes outros elementos que “indiquem intuito de mercancia”;
Por fim, a definição da condição de usuário seguirá submetida à autoridade do Delegado de Polícia, que ainda poderá decretar a prisão do agente que carregue consigo até 40 (quarenta) gramas, exigindo-se apenas “justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal”.
Na prática, a mudança é tímida e tem mais efeito simbólico do que efetiva aplicabilidade. O consumo pessoal de maconha pode ter um reduzido estigma com a descriminalização, ainda que siga respondendo à autoridade policial e a procedimento judicial no Juizado Especial Criminal, mas o enquadramento do usuário nessa condição já não lhe previa consequências penais drásticas.
De fato, houve especial preocupação com a população carcerária, possivelmente integrada por verdadeiros usuários tratados como traficantes que jamais deveriam ter sido submetidos a uma prisão preventiva ou a uma injusta condenação. A solução adotada pela Suprema Corte, contudo, não parece ter fornecido grande segurança, mesmo que se trate de avanço.
Explica-se: a quantidade da droga, que muitas vezes era o parâmetro para a diferenciação entre uso e tráfico, não mais terá essa utilidade isolada. Se antes seria possível que uma abordagem policial fosse concluída com a prisão em flagrante de um jovem pobre que carregasse consigo até 40 gramas de maconha sob o argumento de que se trataria de quantidade incompatível com o consumo pessoal, agora há um parâmetro objetivo que deverá ser observado.
No entanto, nada impedirá que outras circunstâncias, inclusive de caráter subjetivo, sejam indicadas pela autoridade policial para justificar a categorização do indivíduo como traficante, mesmo que a quantidade observada seja inferior aos 40 gramas. E haverá sempre o risco de que um legítimo usuário que porte mais que 40 gramas seja automaticamente alçado à condição de traficante mesmo que não preencha os demais requisitos legais. Em outras palavras: as injustiças podem persistir.
Com efeito, se o objetivo central do julgamento era a proteção de indivíduos vulneráveis presos injustamente apenas em razão da quantidade de maconha apreendida, não parece se justificar a nomenclatura de descriminalização do consumo pessoal quando pouco mudará em relação àquele que já era considerado usuário — que já não era preso e sofria sanções bastante discretas.
Bastaria ao STF a fixação do critério objetivo, ainda que relativo e imperfeito, da quantidade de droga. Por outro lado, há que se aplaudir a exigência pelo Supremo de fundamentação complementar e pormenorizada por parte da autoridade policial quando diante da potencial privação da liberdade individual.
Guilherme Alonso
é membro do Dotti Advogados.
Fonte: @consultor_juridico