Foi reenergizado nos últimos dias no Brasil um debate antigo, sempre muito polarizado e contaminado por questões de fundo religioso.
A Capivara Criminal se refere à polêmica sobre as regras legais para interrupção de gravidez, assunto inescapável, diante do do risco de o Brasil, dono de umas das regulamentações mais restritivas, afastar-se ainda mais do preconizado pelos países desenvolvidos, diminuindo a distância de nações fundamentalistas.
O gatilho do momento é o projeto de lei cujo resultado – em hipótese de aprovação e colocação em prática – faria o crime de aborto gerar pena equivalente à prevista para homicídio simples, de até 20 anos de reclusão.
Além disso, tornaria ilícito penal o procedimento feito com fetos “viáveis” de mais de 22 meses, mesmo aqueles frutos de estupro. Hoje não existe prazo definido em lei.
O que se têm é uma cartilha do Ministério da Saúde recomendando limite de 20 semanas ou que o procedimento seja feito quando o feto tiver menos de meio quilo. Neste ano, o CFM (Conselho Federal de Medicina) emitiu norma proibindo médicos de realizarem a chamada assistolia fetal depois de 22 semanas em casos de aborto após estupro.
A técnica cessa os batimentos do nascituro, permitindo o parto vaginal. Sem ela, é preciso fazer cesárea, com o bebê vivo, e muito mais riscos para a mãe.
Liminar do STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou a medida do CFM.
No projeto em trâmite na Câmara, eventual condenação por aborto como ilícito penal significaria – para a vítima maior de 18 anos que engravidou durante violência sexual – uma pena superior à do seu predador sexual.
Quem comete estupro tem punição máxima de 12 anos. A reprimenda só se equipara ao crime de homicídio se a vítima morrer. Daí, o limite chega a 30 anos de reclusão, o mesmo dos homicídios qualificados.
Convém repetir: só se a vítima perder a vida, a violência sexual dá ensejo à pena mais severa.
Entre estuprador e quem pratica aborto fora das previsões legais, há diferença sobre o foro onde o processo anda. Para a violência sexual, o juiz das varas criminais é o responsável por sentenciar o caso, depois de ouvir testemunhas e alegações da acusação e da defesa.
Quando se trata de aborto, a acusação é julgada no tribunal do júri. Sete jurados definem o futuro da mulher levada ao plenário e ao magistrado cabe aplicar a pena de acordo com a lei. É a mesma sistemática de um assassinato brutal. Instituto no qual os jurados representam a sociedade, o júri é altamente suscétivel à moral e ética individual.
Para as crianças e adolescentes, às quais não se aplica pena de prisão, o PL 1904/2024 obriga a carregar no ventre, o produto de um abuso traumático, capaz de deixar sequelas eternas, se não for feito o aborto legal até 22 semanas de gestação.
Mesmo se for uma menina de 10, 11 anos, cujo corpo nem sempre está preparado para tanta transformação física.
Caso Marielly
Cabe neste texto digressão ao ano de 2011, quando Campo Grande, durante dias, acompanhou a busca pela jovem Marielly Barbosa Rodrigues, de 19 anos, que estava desaparecida. Todo tipo de suspeita foi levantada, até a descoberta de que ela havia padecido vítima de aborto malsucedido, em Sidrolândia.
Tinha sido levada pelo cunhado, Hugleice da Silva, de quem possivelmente estava grávida, para tirar a criança, com o enfermeiro Jodimar Ximenes Gomes.
O procedimento deu errado e os dois homens abandonaram o corpo da jovem no meio de um canavial. Tombava, ali, mais uma vítima de aborto inseguro no Brasil.
Comparar ao resultado judicial para a dupla responsável pela morte de Marielly deixa claro o quão “esquisitas”, para dizer o mínimo, são as proposições do PL 1904/2024.
Hugleice e Jodimar foram condenados, em 2022, a penas inferiores às estipuladas pelo PL para quem faz aborto fora das poucas opções legais. Jodimar pegou 5 anos e 3 meses de prisão; Hugleice pouco mais de 4 anos. .
Feitas as contas, a vida de Marielly custou menos do que o previsto pela proposição em análise, de no mínimo 6 anos de reprimenda.
A propósito, como a acusação de ocultação de cadáver prescreveu, os dois homens já cumpriram as penas.
Caso Neide Mota
Abordar o tema desta coluna em Mato Grosso do Sul inevitavelmente passa por relembrar o escândalo do fechamento da clínica especializada em abortamentos comandada pela médica Neide Mota Machado, durante duas décadas. Era notório, mas só quando reportagem da TV Morena mostrou como tudo acontecia, houve ação dos agentes de segurança pública.
No lugar, foram achadas 15 mil fichas de clientes, em 2007. Desse total, a triagem feita na época reduziu a 10 mil o número de fichas analisadas judicialmente. Ao fim de tudo, 26 mulheres foram levadas a júri popular, por amostragem, além de quatro funcionários da médica.
Como o crime, na lei vigente, tem pena de até três anos, as mulheres submetidas ao procedimento clandestino fizeram acordo com o judiciário, para cumprir penas alternativas.
Não se livraram da exposição, quando o calhamaço de registros da clínica ficou público no sistema on-line do Judiciário estadual. Havia gente conhecida, gente filha ou esposa de personagens da política e do Judiciário e do empresariado. E algumas tinham buscado os serviços mais de um vez.
Neide Mota Machado perdeu o registro de médica, chegou a ficar presa e conseguiu a liberdade. Foi denunciada à Justiça, porém nunca sentou no banco dos réus.
Em 30 de novembro de 2009, o corpo dela foi encontrado dentro de um veículo, na chácara de uma amiga delegada onde estava vivendo. Terminou seus dias afastada dos círculos da classe alta onde era figura cativa, e de qual eram muitas de suas clientes na clínica especializada em aborto clandestino.
As investigações revelaram que o estabelecimento de Neide, denominado “Clínica de Planejamento Familiar”, mantinha padrões diferenciados de atendimento, conforme a condição financeira das atendidas.
Quanto mais barato o procedimento, mais arriscado era, pelo uso de técnicas menos seguras. No cálculo divulgado à época, Neide Mota Machado teria lucrado mais de R$ 9 milhões.
Quase duas décadas depois…
De lá para cá, houve muito debate, muita polêmica, e pouca evolução na forma como o Brasil trata a questão. Tampouco houve diminuição dos abortos clandestinos, em condições insalubres e sem qualquer fiscalização.
No Código Penal, só é permitido o aborto quando há risco de vida para a grávida e quando a gestação é fruto de estupro.
Em 2012, a custo de exaustiva polêmica fora e dentro do processo, decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), no julgamento da APDF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), trouxe inovação.
Do lado de fora do tribunal, deu-se forte manifestação dos religiosos, entre elas a católica CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), que chegou a pedir para ser parte da ação, sem êxito.
Com esse acórdão, passou a ser autorizada a “antecipação do parto com fins terapêuticos”, quando o bebê na barriga da mãe é anencéfalo, ou seja, não tem formação cerebral, inviabilizando a vida.
“O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal.”
Acórdão do STF na APDF 54, de 12 de abril de 2012
Decisões judiciais
Embora o entendimento do Supremo tenha se dado no caso específico de anencefalia diagnosticada em laudos, a apuração da Capivara Criminal revelou o uso do parâmetro para autorizar abortos legais a gestantes cujos bebês apresentam outros tipos de malformações, impeditivas da sobrevivência extra-uterina.
“A barriga da paciente continuará em desenvolvimento, ou seja, continuará crescendo. Será uma gestação como tantas outras vivenciadas por tantas outras mulheres, com uma única e substancial diferença: NÃO HAVERÁ BEBÊ sobrevivente ao parto, eis que o feto nascerá e, na sequência, morrerá, posto a existência de multi-deformações”, descreve advogado de uma grávida de 34 anos, em petição à Justiça de Campo Grande, pedindo autorização para a interrupção da gravidez.
Para esse neném em desenvolvimento, o diagnóstico médico era “holoprosencefalia alobar”, tipo de malformação no cérebro. De acordo com a descrição dos médicos, a criança não duraria um dia se o parto fosse levado a termo.
“A pressão psicológica e o sofrimento são agravados à medida que, desenvolvendo-se o feto e crescendo a barriga, as pessoas tendem a perguntar acerca do bebê, sexo, do seu nome, enxoval, quando vai nascer, chá de bebê, etc.”
Petição à Justiça de Campo Grande
“A angústia, carregada de crises de choro, em olhar para seu corpo e saber que não há solução para o bebê que vai nascer”, continua o texto.
Em despacho do dia 24 de abril de 2024, o juiz Aluizio Pereira dos Santos, da 2ª Vara do Tribunal do Júri, acatou a solicitação.
“Os laudos médicos acostados aos autos demonstram claramente que não há possibilidade de vida extra-uterina, mesmo que o feto apresente alguma sobrevida, ou seja, que não vá a óbito nos primeiros meses”, escreveu.
“Não há que olvidar, ainda, o abalo emocional e psicológico gerado à gestante, que terá que carregar um feto que, ao final, não terá condições de sobrevivência, o que somente lhe gerará sofrimento.”
Decisão judicial
Na análise do magistrado, cabia ao caso invoca o princípio da dignidade humana. “Trata-se em verdade de um metaprincípio, a espraiar-se por todo o ordenamento jurídico”, definiu.
Com a anuência da autoridade judicial, expediu-se alvará para o fim de autorizar a equipe médica a atuar no procedimento.
Essa mulher teve suporte jurídico a tempo de solução relativamente ágil para a situação. O teste positivo tinha 17 semanas.
Já é difícil
Não é assim para meninas e mulheres que se veem com um filho na barriga, em contexto de violência sexual. Embora a lei autorize a retirada da criança, o acesso a esse direito não é simples.
“As dificuldades na utilização desse direito são fundadas em vários motivos: um deles é a demora na confirmação da gestação e a notícia do crime – principalmente quando o fato envolve crianças, via de regra se descobre a gravidez antes da notícia do abuso. A criança só se dá conta de que foi abusada quando a gravidez é descoberta”.
Débora Maria Paulino, Coordenadora do Núcleo da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública de MS
A defensora prossegue citando o fato de, em muitas ocorrências do tipo, o abusador ser alguém muito próximo à família, como padrasto, tio, primo etc. “O tempo de gravidez acaba ficando avançado, o que dificulta a realização da interrupção da gestação”, comenta.
“Quando o caso chega para a Defensoria, a criança ou adolescente já está com mais de 22 semanas; em outros casos, segundo o que nos relatam as famílias, não recebem a orientação correta dos integrantes da rede de proteção, acerca da possibilidade de interrupção.”
Sem esclarecimento, a criança/adolescente acaba sendo acompanhada pela rede de saúde como uma gestante “normal”, informa a defensora.
Reflexões
- Em tempo 1: se o projeto de lei 1904/2024 virar realidade, o Brasil passará a ter pena para o aborto superior à de países notórios pelo descumprimento aos direitos das mulheres, como o Afeganistão e a Síria.
- Em tempo 2: como o país mais restritivo com relação aos direitos reprodutivos na América Latina, têm se verificado no Brasil espécie de turismo externo com fim muito específico: ter acesso ao procedimento de interrupção da gravidez. Os país mais procurado é a Argentina. É claro que só quem tem condições financeiras pode fazer isso.
- Em tempo 3: Segundo dados do Ministério da Saúde, de janeiro até o mês de maio de 2024, 89 meninas de até 14 anos foram mães em Mato Grosso do Sul. A coluna não identificou, com base nos bancos de dados consultados, quantas dessas meninas-mães foram vítimas de estupro.
E por fim, a provocação da Capivara Criminal: que Parlamento é esse que – para escalar a tensão da queda de braço com o Executivo, e dobrar a aposta com o STF – pouco se importa de cogitar medidas que, se postas em prática, tornam ainda mais complexa a vida de meninas e mulheres, notadamente as mais pobres? A resposta, aberta ao leitor, explica o uso do verbete hipocrisia no título desta edição.
Fonte: primeirapagina