Sophia @princesinhamt
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A distopia mais eficaz para confrontar o avanço do progressismo

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Como já falado em textos anteriores, uma das intenções confessas desta coluna é mostrar bons lançamentos literários do universo editorial nacional. Falar de obras lançadas há algum tempo e que, imerecidamente, se tornaram célebres desconhecidas, livros que foram completamente ignorados pelo público e críticas nacionais é uma missão profissional que levo quase como missão de vida. Vamos lá, confesso que nessa seleção de riquezas, ser uma espécie de arqueólogo misturado a sommelier de bons livros, me agrada mais do que ser um expositor de novidades — ainda que isso também tenha seu inegável charme.

Um desses livros que sinceramente não consigo explicar o porquê de ter se tornado um “ilustre desconhecido” no país trata-se de O amor de olhos fechados, do filósofo existencialista francês, Michel Henry. Bem escrito, profundo em descrições, poético em suas análises estéticas e filosóficas, e com um enredo fascinante que joga com o caos anárquico, tempera tudo isso com romance — amoroso mesmo —, além de um bom suspense e o espanto do grotesco. Reafirmo aqui: é realmente incompreensível como uma obra como essa não tenha sido bestseller, se tornado clássico.

Narrando a história de uma cidade-Estado costeira fictícia chamada Aliahova, a voz do narrador, desde o primeiro instante, nos traz à compreensão de que se tratava de uma cidade em que, em tempos antigos, a alta cultura tinha prosperado como força vital, com uma liberdade de ideias e prosperidade mercantis únicas, da política à economia, do mercado público às catedrais, da universidade às praças, tudo respirava grandiosidade cultural e humana, fazendo-nos recordar naturalmente da antiga Veneza, Roma, Bizâncio. Todavia, não é essa a história que Henry irá explorar em seu romance, a da grandeza cultural de Aliahova desde a sua antiguidade, mas a da sua decadência social, moral e intelectual, e para isso ele nos apresentará dois personagens centrais.

Entre eles, Sahli: um professor dotado de um senso estético e filosóficos aguçados, homem capaz de encontrar nas atitudes cotidianas dos estudantes e dos acadêmicos da universidade de Aliahova o fedor da putrefação intelectual que infectaria a cidade como um todo, sendo apto, além disso, a vislumbrar a inevitável rendição cultural da cidade à revolução histérica e à iconoclastia. Michel Henry também nos apresenta Deborah: mulher que aquece em Sahli aquilo que lhe falta, o senso de ação, de enfrentamento, de da honra e de heroísmo —, além, é claro o tempero romântico que dá a Deborah um protagonismo parecido com o de Julia em 1984.

A obra, assim, é narrada com uma espécie de lirismo e angústia, eis — mostra o autor — o progresso da decadência no Ocidente, realizado através do motim revolucionário e do desvirtuamento do senso estético. E aqui está um dos pontos altos da obra, uma das únicas distopias que abordam a corrosão da estética clássica como um dos sintomas centrais da decadência humana. A abordagem filosófica e psicológica de Michel Henry traz ainda para a obra uma mistura de análise comportamental dos militantes fideístas e uma dissecação filosófica das retóricas dessas massas de manobra. Ao homem que perde o senso do belo ‒ mostra-nos O amor de olhos fechados —, inevitavelmente lhe faltará também o senso do que é bom, justo e, por último, do que é humano.

O progressismo, aqui, é apresentado corajosamente como putrefação e atraso, a revolução como método e máquina de desumanização, a corrupção estética como uma rebelião contra a ordem cósmica mais fundamental para a sociedade e para os indivíduos. Escrita em forma de romance, essa é, sem gastar adjetivos à toa, uma das mais geniais e agudas críticas à mentalidade revolucionária que li ‒ e, por isso mesmo, ao progressismo. É perceptível o movimento argumentativo do autor no desenrolar do livro. Michel Henry está em plena sala de aula, expondo-nos de forma brilhante os fundamentos, nervuras e consequências da mentalidade progressista, desenvolta através da insurreição histérica das universidades, em especial.

Michel Henry foi um dos mais destacados filósofos ‒ ainda que ignorado por suas conclusões antiprogressistas. Descendente, filosoficamente falando, de e influenciado profundamente por Søren Kierkegaard, foi um dos desenvolvedores do pensamento denominado “Fenomenologia da vida”; escreveu sobre o simbolismo e a tradição cristã, de filosofia política e outros romances mais; deixou cerca de onze obras escritas e cinco póstumas.

Sua vida explica um pouco de sua percepção estética exposta no romance, pois, após a morte de seu pai poucos dias depois de seu nascimento ‒ na Indochina, atual Vietnã ‒, ele retorna à França com sua mãe, uma excelente pianista educada ao estilo clássico. Ainda quando criança, morou longas temporadas com seu avô, que também era músico e diretor de um conservatório, além de um admirador assíduo das artes clássicas como um todo. Dessa maneira, cresceu envolto à erudição, alta cultura e contemplação estética. Voltou-se, é fato, para a vida intelectual como filósofo e à literária, chegou a afirmar que, para ele, filosofia e literatura se apresentavam como uma coisa só. Estava, dessa forma, muito bem fincado na educação clássica, e foi assim que analisou a decadência contemporânea de um ponto de observação privilegiado ‒ obviamente, também gestado por seu intelecto brilhante.

Henry foi professor na École Normale Supérieure, em Sorbonne, na Universidade Católica de Louvain, Universidade de Washington e Universidade de Tóquio. Foi ainda professor titular de filosofia na Universidade de Paul Valéry, em Montpellier.

A obra foi lançada em 2016 no Brasil pela editora É realizações, do visionário e corajoso editor Edson Manoel Filho, que buscou em Henry não só o que interessava aos vieses acadêmicos de momento das universidades brasileiras, universidades que cada vez mais parecem padecer do exato verme que ele denunciou em O amor de olhos fechados, mas também trouxe aquelas obras críticas e romances filosóficos profundos que poucas pessoas aqui no país conheciam. No espólio de edição da É realizações, ainda encontram-se os seguintes livros de Henry: A Barbárie, Encarnação, Uma filosofia da carne, Ver o Invisível, Sobre Kandinsky, Palavras de Cristo, O Jovem Oficial, O Cadáver Indiscreto, Eu Sou a Verdade, Por uma filosofia do cristianismo, Filosofia e Fenomenologia do Corpo, Ensaio sobre a ontologia biraniana, O Filho do Rei.

O amor de olhos fechados tem uma ótima tradução do caro colega Pedro Sette-Câmara, além de uma ótima revisão geral. Essa, aliás, já não é uma obra para ler “numa sentada só”, como as que anteriormente indiquei nesta coluna. Trata-se de um livro para ser digerido com calma, para se prestar atenção nas “firulas” descritivas do autor, pois, o que em um olhar descuidado poderá soar como enfeite prolixo, esconde antes um tratado de alta filosofia e análise psicológica que servirá para aqueles que entendem, minimamente, a importância da estabilidade moral, os que ainda têm algum senso estético e compreendem que uma certa estabilidade ética e social é condição de enraizamento humano.

“Um livro conservador demais” para os críticos. Ok, pode ser ‒ e não há demérito nisso ‒, mas é muito mais do que isso, é um livro genial para os que ainda são capazes “de amar de olhos fechados” aquelas heranças que não vimos nascer e que, de tão essenciais e boas, devemos cuidar para não deixá-las morrer. Um livro, por fim, para aqueles que querem deixar para seus netos mais do que escombros, antidepressivos e feiuras estruturais e artísticas, empilhadas contraditoriamente em de um progresso que nos faz regredir em todos os sentidos.

Fonte: revistaoeste

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