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Famílias descobrem paradeiro de parentes desaparecidos após anos de angústia

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Projeto ‘Lembre de Mim’ e Banco de Perfis Genéticos do Núcleo de Identificação Humana são ferramentas para identificação de corpos

O poster com uma foto de família estendido na varanda da casa de dona Hilda da Silva Lima, no bairro Pedra 90, em Cuiabá, expõe a quem passa pela rua uma imagem que à primeira vista parece ser um retrato de lembranças felizes. Só quem conversa com a idosa, de 88 anos, sabe que aquela fotografia tem duas ausências que lhe rasgam o peito. A de um filho, que ela sempre soube que morreu, e uma filha, que sumiu sem deixar pistas, apenas um rastro de incertezas e um fio de esperança que teima em não se romper.
 
Hilda da Silva Lima fala com entusiasmo sobre a possibilidade de chegar aos 100 anos de vida. Ao mesmo tempo, lida com uma dor considerada antinatural, afinal, teve que enterrar a filha Maria Auxiliadora da Silva, após dez anos em um limbo de notícias, contato e afeto.
Maria era a filha “mais dengosa” dos seis que Hilda colocou no mundo e deixou de dar notícias em janeiro de 2015, quando combinou com o marido de pegar os R$ 50 que tinha no bolso para arrumar os cabelos e, mais tarde, dançar num baile de idosos na região do bairro Cidade Verde, onde moravam. A volta para casa nunca aconteceu, restando questionamentos e busca por respostas até mesmo no “sobrenatural”.
2025 word1Hilda recebeu a equipe do em sua casa no fim da tarde de uma terça-feira comum, quando o combinado era contar como foi a descoberta de que sua filha não estava mais na lista de desaparecidos, mas naquela de corpos identificados através de um trabalho minucioso, aliando empenho humano e tecnologia de ponta, dos servidores da Perícia Oficial e Identificação Técnica (Politec-MT).
A aposentada conta que, nestes dez anos de completo vazio de informações, sonhava frequentemente que sua filha chegava em casa, algumas vezes com uma criança no colo. Dôra – apelido dado a Maria Auxiliadora – também desapareceu das suas fantasias quando a família recebeu em mãos algo que parece incontestável: a certidão de óbito.
Apesar da confirmação técnica e do documento oficial, o coração da mãe que “perdeu seu mundo” com o falecimento da filha é relutante. Como não viu com os próprios olhos o corpo de Maria, mantém a crença de que a mais dengosa dos filhos pode bater em sua porta chorando por algum motivo banal ou reclamando do frio que parecia sentir mais do que qualquer outra pessoa.
A descrença sobre a morte também é presente em outros familiares, menos em Norma Ribeiro Moraes Costa, 69, irmã de Maria Auxiliadora. A dona de casa, assim como São Tomé, precisou ver para crer. Ela e seu irmão foram os responsáveis pela busca da certidão de óbito na Diretoria Metropolitana de Medicina Legal (DMML), através do projeto “Lembre de Mim”.
Após contato do projeto no início de 2025, os dois foram até a DMML e só acreditaram que de fato o corpo encontrado no laboratório de uma faculdade particular em Várzea Grande era de Maria Auxiliadora, quando a coordenadora do projeto, Simone Delgado, mostrou fotos do rosto e de parte das mãos.
As dúvidas sobre a identificação feita pelas digitais caíram por terra, quando os olhos de Norma observaram os detalhes da arcada dentária e dos dedos de Dôra. Não dava mais para negar.
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“Quase ninguém acredita que é ela. O corpo foi identificado através da impressão digital. Eles não queriam deixar que víssemos o corpo, por conta do estado que ele estava. Todo mundo da família queria ir ver, mas não tinha como ver. Meu e irmão e eu fomos lá e eu disse que só aceitava a certidão de óbito se tivesse alguma coisa que a identificasse. Disse que fotos de algumas partes serviriam”, conta Norma.
“Hora que ela colocou a foto no computador… minha irmã não tinha os dentes da parte de cima da boca (arcada superior). E tinha um dente maior na parte inferior. A hora que mostraram as fotos eu não tive dúvidas. Nem meu irmão. Tenho certeza que é ela”, completa.
Independentemente da dificuldade em acreditar nos fatos, Hilda expressa toda a dor em perder uma filha. “É horrível para uma mãe. Depois que foi descoberto, parece que piorou. Tinha a esperança de encontrá-la. De assim como ela costumava fazer, chegar aqui à noite pedindo um dinheiro rápido, para comprar ‘a coisa’ [drogas]. Depois sumiu da gente. Última vez que falei com ela, ela me ligou e disse: ‘mãe, eu te amo!’. Eu questionei: ‘será que ama mesmo?’”, questiona Hilda, que durante os anos de desinformação chegou a visitar pontos conhecidos pela concentração de usuários de droga, como o Beco do Candeeiro, em busca da filha.
“Dessa data para cá, minha vida… tive seis filhos… hoje são quatro, já que dois faleceram… de um tempo para cá, desde que isso foi descoberto, as coisas desabaram. Não tenho mais aquela resistência que tinha, fiquei muito abalada. Não ando legal, só Deus mesmo para… Sempre sonhava com ela chegando, com criança no braço. Depois não sonhei mais. Sempre pedia para Deus cuidar dela, caso ela estivesse no céu ou na terra, que me desse um sinal”, conta Hilda, em lamento emocionado.
O corpo de Dôra foi um dos 52 identificados pela Politec-MT por meio do projeto “Lembre de Mim”, criado com o objetivo de revisar casos de pessoas falecidas e enterradas sem identificação. Por ser um caso emblemático, o nome de Maria Auxiliadora será homenageado na sala criada para o futuro acolhimento de famílias que forem receber a confirmação da identificação do corpo de consanguíneos desaparecidos.
2025 word1A papiloscopista Simone Delgado, que coordena o projeto, detalha que Maria Auxiliadora deu entrada no Instituto Médico Legal (IML) em 2015. Como o corpo não foi identificado na época e não se tratava de morte violenta, foi doado para uma instituição de ensino superior de Várzea Grande, conforme disposição legal.
Após dez anos, as impressões digitais de Dôra foram processadas no sistema da Politec-MT, que indicou forte correspondência com a biometria do registro civil de Maria, confirmada pelo papiloscopista da equipe após exame de confronto necropapiloscópico realizado em março de 2025.

O projeto “Lembre de Mim” é formado por onze servidores e utiliza o Sistema Automatizado de Identificação Biométrica (Abis) desenvolvido pela empresa Griaule, que fornece a tecnologia de reconhecimento facial, biométrico e serviços na emissão de documentos e pesquisa papiloscópica.
Simone detalha que a ferramenta possibilita o cruzamento das impressões biométricas do cadáver com a base de dados da própria Politec-MT, assim como da Polícia Federal e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O projeto envolve quatro etapas: o levantamento de todos os casos de pessoas desaparecidas não identificadas; a catalogação; digitalização do acervo civil do estado; e o processamento dessas impressões digitais no sistema Abis local, que tem os registros de identificação civil.
Em complemento a essas etapas, a equipe realiza busca em laudos do IML, requisições, prontuários hospitalares de evidências que possam auxiliar nas buscas pela identificação.
“O primeiro passo foi o desenvolvimento de procedimentos operacionais padrões. O segundo foi fazer o levantamento desses casos antigos. Um desafio, porque são casos que não estão sistematizados no sistema da Politec-MT e estão disponíveis apenas em versões físicas, arquivados, e alguns registros em livros antigos”, explica Simone ao .
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A papiloscopista afirma que a proposta é revisar 400 casos de pessoas falecidas não identificadas. O número, porém, é apenas uma estimativa, por conta da ausência de sistematização das informações regionais. “Não tem como precisar esses números. Mas, diante da nossa experiência aqui atuando já há mais de 24 anos, a gente estima que são 400 corpos não identificados que foi possível coletar impressão digital, sem contar os casos da antropologia forense, por exemplo. Porque a maioria, geralmente, chega como ossada, já quando não tem como coletar (digitais). E aí nós fazemos o levantamento, catalogamos esses casos, digitalizamos as fichas papiloscópicas com as impressões digitais. Uma vez digitalizado, nós processamos um sistema automatizado de impressões digitais”, detalha.
“Se não encontramos um perfil compatível, correspondente de impressão digital para que a gente possa fazer análise – uma vez que o sistema ajuda, mas quem dá a palavra final, quem faz análise e metodologia científica para confirmar aquela identidade é o papiloscopista -, nós compartilhamos essas impressões digitais com outros estados que também possuem o Abis. Atualmente são 21 estados com essa tecnologia”, completa.
Para fortalecer as ações do grupo, a Politec-MT fechou um contrato com a Griaule para digitalizar prontuários civis, ampliando a base biométrica e aumentando a chance de identificação das pessoas falecidas que ainda permanecem sem identidade.
Com a adoção do sistema de identificação biométrico digitalizado, 52 pessoas tiveram suas identidades descobertas de 127 casos analisados, com óbitos registrados de 2009 a 2025. Do total de cadáveres identificados, 46 foram por meio do Aibs e seis por busca ativa (inteligência forense).
Dentro do projeto, 24 famílias foram localizadas e receberam informações sobre seus familiares desaparecidos, além de documentos oficiais, como certidão de óbito. “Conseguimos localizar essas famílias, comunicá-las acerca do óbito, prestar um atendimento humanizado na ocasião da emissão da declaração de óbito e prestar todas as informações necessárias para que elas possam restituir os corpos, normalmente enterrados em cemitérios públicos, como não reclamados”.
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A busca ativa desses familiares também faz parte dos trabalhos do grupo. Além dos caminhos oficiais, aqueles disponíveis pela Segurança Pública, a Politec-MT utiliza as redes sociais para divulgar a identidade dos corpos identificados e, quem sabe, encontrar os familiares que aguardam informações dos consanguíneos.
“Se não temos sucesso nessa busca ativa, nós encaminhamos para a publicação no Instagram da Politec-MT dados biográficos e imagem da foto do registro civil dessas pessoas. São dados organizados que facilitam o acesso do familiar que tem pessoa desaparecida para fazer aquela busca. O Instagram, as redes sociais, inclusive a mídia local, têm apoiado bastante com a replicação das imagens. Nós já conseguimos localizar, por meio dessa metodologia de divulgação, três familiares”, relata Simone.

Um dos casos solucionados pelo “Lembre de Mim” é o de Sebastião Augustinho, que tomou rumo desconhecido da família em 2019, quando tinha 64 anos, e foi encontrado apenas em fevereiro de 2025, após post no perfil oficial da Politec-MT no Instagram, com o nome completo e foto.
A irmã, a cuidadora de idosos Benedita Silveira, 67 anos, conta que, numa noite de Carnaval, a filha dela comentou sobre o desaparecimento e resolveu procurar nos canais de comunicação da Politec-MT alguma informação que pudesse ajudar na procura do tio, desaparecido há seis anos. Para surpresa de ambas, ao rolar o feed do perfil do órgão no Instagram, encontraram a foto de Sebastião.
Benedita conta que Sebastião era seu segundo irmão e chegou a formar uma família com dois filhos. A separação da esposa, no entanto, o desestabilizou, e ele então passou a beber e se mudou para Tangará da Serra (239 Km de Cuiabá), onde pouco falava sobre sua rotina. Os raros contatos aconteciam quando ele voltava para Cuiabá, ao encontrar com as irmãs.
“Quando ele separou, ele perdeu tudo. Acho que deve ter dado alguma depressão, alguma coisa. Ele aparecia de vez em quando, ficava dois, três, quatro anos sem aparecer. Depois aparecia rapidinho, ia embora. Cada vez que ele vinha, ele vinha mais decaído”, lamenta.
Em 2019, no entanto, Sebastião fugiu da casa da irmã de Benedita, sem dar qualquer informação para onde estava indo. A cuidadora conta que na época a família procurou por informações que só chegaram quando ela vivia o luto pela perda da irmã que, até então, dividia a angústia causada pela falta de notícias do familiar.
“Essa última vez que ele veio, a minha irmã tentou fazer com que ele ficasse com ela, uma vez que ela era sozinha também. Aí quando ela acordou de manhã, ele tinha pulado o muro e ido embora. E foi justo, eu acho, nessa data que ele fugiu da casa dela, é que aconteceu o acidente, né? O atropelamento. Porque depois disso a gente nunca mais teve notícia dele”, detalha.
Eufórica com a descoberta, Benedita rememora que ligou ainda naquela noite para a Politec-MT. No dia posterior, foi pessoalmente ao DMML, acompanhada do sobrinho. “Foi uma confirmação, mas uma confirmação doída. Ainda mais da forma que foi, porque a gente perdeu o pai também assim. Meu pai também faleceu atropelado. Mas o mais triste foi na hora da identificação, porque ele estava numa situação de pessoa em situação de rua mesmo. A única coisa que encontraram com ele foi umas ‘etiquetinhas’ de roupa e um controle de ar-condicionado branquinho, pequenininho. Isso era o único pertence que tinha com ele. E ele que sempre foi uma pessoa muito elegante, que sempre gostou de se arrumar bem. Sabia conversar, tudo. Tinha vários amigos. Aí… foi bem difícil”, descreve.
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Com o trabalho do projeto “Lembre de Mim”, Benedita e o sobrinhos conseguiram resolver questões burocráticas, com a emissão da certidão de óbito, como a liberação para que o corpo de Sebastião – que após ser atropelado em uma avenida de Várzea Grande chegou a ser enterrado em cemitério público, sem identificação -, pudesse ser sepultado no mesmo lugar que seus familiares já falecidos.
Apesar de ter recebido a equipe da reportagem com sorriso largo e bom papo, durante a conversa, Benedita confessou passar por um período de sofrimento, com perdas consecutivas. “Fizemos o sepultamento dele onde está o pai e a mãe. Está meu pai, minha mãe, minha irmã, meu cunhado. A gente deu um sepultamento digno a ele. Vou ser sincera para você, sou uma pessoa assim que eu não soube demonstrar muito, mas eu tive que viajar agora nesses dias, ficar um mês fora, porque em quatro meses eu perdi minha irmã, fiquei sabendo da morte dele e perdi o neto que nasceu prematuro extremo. Então veio tudo junto, né? Não é fácil. Fiquei sozinha, a gente era só os três. E agora não tem pai, não tem mãe, não tem irmão, só os filhos. Não está sendo fácil, não”, desabafa, com os olhos cheios d’água e voz já embargada.
“A minha irmã foi mais fácil a gente compreender, pois ela estava sofrendo uma doença. Então é egoísmo você querer uma pessoa acamada ali no sofrimento. Ele não, morreu sozinho. Não tinha ninguém ali na hora, que é deserto o lugar onde ele foi atropelado. E foi sepultado assim, né? Como estranho, não tinha ninguém da família. Nada”, lamenta. Conforme informações do projeto, Sebastião  foi atropelado no KM 469 da BR-364, em Várzea Grande, no dia 16 de janeiro de 2020.
Em meio a dor, Benedita não esquece de agradecer e reconhecer o trabalho desenvolvido pelo projeto coordenado por Simone. Mesmo com a perda do irmão, a identificação realizada pelos servidores da Politec colocou fim à incerteza.
“Hoje a gente tem certeza de que ele não está mais com a gente, está sepultado. E não fica mais aquela dúvida, aquela preocupação, aquelas perguntas. Onde será que está? Será que está vivo? Muitas vezes minha irmã e eu nos perguntávamos: ‘será que ele já almoçou? Será que ele está dormindo?’. Nessa parte, na situação que ele se encontrava, é uma paz, porque aí a gente sabe que coisas piores não vão mais acontecer. Só que a gente nunca imaginava que ele terminaria da forma que ele terminou”, declara.
Por fim, a cuidadora fala sobre a lembrança que levará do irmão, que teve um fim de vida distante do que qualquer familiar espera. “Quando a gente se encontrava, ele era muito contador de história. Era apaixonado pelo bigode dele, porque ninguém fazia ele tirar aquele bigode. Ele parecia muito com o meu pai, inclusive tem o mesmo nome. Nos momentos que estivemos juntos, ele não era assim, de brigar com a gente, não era o irmão brigão. Era carinhoso. Infelizmente, ele preferiu os amigos à família e foi o que fez ele chegar nessa situação. Ficou sozinho e se foi sozinho”.
A sensação ‘esquisita’ citada por Benedita é compartilhada por outras pessoas que vivenciaram a espera por um desfecho para a localização de um ente querido. Um caso emblemático no país foi o da advogada Eunice Paiva, que aguardou 25 anos pela certidão de óbito do marido Rubens – vítima da ditadura militar.
Em fevereiro de 1996, Eunice declarou que receber a certidão de óbito lhe causou uma “sensação esquisita”, mas também um “alívio”, já que por não terem o documento ela e seus filhos ficaram na dúvida se Rubens estava morto ou não, considerando essa incerteza a forma “mais violenta da tortura” impostas às famílias de desaparecidos políticos. A história da família foi retratada no filme “Ainda Estou Aqui”, ganhador do Oscar de “Melhor Filme Internacional” em 2025.

Simone Delgado faz um relato emocionante sobre como é atuar na coordenação do projeto “Lembre de Mim”. Ela conta, com lágrimas nos olhos, sobre o sentimento na lida com a dor de familiares ao receberem a notícia de que aquele parente buscado há tempos foi identificado sem vida. Pontua, no entanto, que a resolução dos casos também traz a sensação de dever cumprido.
“Algo que me marcou bastante foi o relato de uma mãe, quando a gente foi comunicar o óbito do filho, da forma mais humanizada possível. Ela relatou que, até receber a minha ligação, ela tinha esperança de encontrar o filho com vida. Então, é algo que, para a equipe, não é fácil. Você ter que informar o óbito de um ente querido, aquele familiar que tem aquela esperança de encontrar o filho. Mas, de outro modo, é muito gratificante. Nós já identificamos corpos que estavam executados há mais de 10 anos. É muito tempo de angústia desses familiares sem resposta. Então, de certa forma, a gente causa esse impacto, garante direito para esses familiares de encerrarem esse ciclo de incerteza, de dor, de viverem o luto”, diz, emocionada.
“Se fala muito em perda ambígua, que a pessoa não sabe se o ente querido faleceu, se está vivo. Então, fica naquela incerteza. Infelizmente, nem todos os desaparecimentos acabam com o encontro da pessoa com vida. Mas é essencial que a família tenha essa resposta por parte do Estado”, pontua.
Neste sentido, o psicólogo Raul Tibaldi, especialista em perdas e lutos, reforça o sentimento compartilhado por Simone e avalia que a identificação pode ser um fator terapêutico importante na adaptação ao luto dessas famílias. “As repercussões emocionais de uma perda cujo desfecho é desconhecido geralmente estão relacionadas a uma espécie de ‘congelamento’ entre esperança e dúvida. É basicamente por isso que chamamos esse tipo de luto de ambíguo. Para muitas pessoas, pode ser difícil assimilar a realidade da perda sem ver um corpo, por exemplo”.

Integrando do projeto, o técnico em necropsia Walter Ferrari, 57 anos, faz alerta sobre a subnotificação de casos: dos 52 corpos identificados pelo grupo, apenas nove tinham registro oficial de desaparecido – os demais, as famílias não chegaram a procurar a Polícia Judiciária Civil (PJC-MT) para comunicar a falta de paradeiro dos parentes.
Na avaliação do servidor, a questão envolve a falta de informação. “Esse é o maior obstáculo que o familiar tem. A falta de informação de como agir, de como proceder em tal situação. Mato Grosso, ele é um estado onde tem muitos que migraram. Muitas pessoas, muitas famílias de outras regiões. E nós temos muitos migrantes, de pessoas que se apartaram dos seus familiares, dos seus laços familiares. E essas pessoas são um grande índice de pessoas não identificadas. Muitas vezes porque não possuíam documento ou por um motivo ou outro não queriam ser encontradas. E acabam falecendo de uma morte de causa externa ou morte natural mesmo. E acaba vindo para o IML. Forma-se mais um índice de pessoas desaparecidas, é um número, uma estatística. E esse projeto, ele vem resgatar a dignidade da história desse ser humano junto à sociedade e junto à sua família”, argumenta.

O Banco de Perfis Genéticos de Mato Grosso é uma das principais ferramentas disponíveis à sociedade para auxiliar na busca por pessoas desaparecidas. De acordo com a presidente do Núcleo de Identificação Humana da Politec-MT, Késia Melo, 40 anos, apenas em 2025, 28 corpos foram identificados através do confronto de informações contidas na base de dados.
O banco é alimentado com informações do DNA de corpos encontrados e que, por algum motivo como impossibilidade da coleta de digitais ou análise da arcada dentária, não puderam ser identificados. Para a descoberta da identidade e origem, porém, é indispensável os dados genéticos dos familiares destes desaparecidos.
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“Quando as outras vias de identificação, como a necropapiloscopia (técnica de identificação de cadáveres utilizando impressões digitais) ou a odontologia, não conseguiram identificar a identidade, nós temos a identificação feita pelo DNA (…) quando a gente fala que é um caso fechado, é um caso em que a gente sabe, teoricamente, quem é a vítima, e aí nós entramos em contato com o familiar para doar a sua amostra. Na sequência, nós processamos tanto a amostra de referência – doada pelo familiar -, quanto a amostra da vítima”, explica ao .
“No entanto, nós sabemos a realidade do nosso estado, em que recentemente, por exemplo, houve a descoberta de três cemitérios clandestinos – em Lucas do Rio Verde, Rondonópolis e Várzea Grande. Então, são corpos que já estão esqueletizados, você não tem como aferir ali quem pode ser, para entrar em contato com a família e identificar por vínculo genético. Então, esses corpos são encaminhados para a medicina legal, onde é feito todo um trabalho, na antropologia forense também, para conseguir extrair o DNA. O perfil genético dessa ossada vai para o banco de perfis genéticos e para dar uma resposta é preciso ter a outra ponta, que é o quê? As informações dos familiares”, completa Késia, que ainda ressalta a importância da doação de material genético por parte de quem procura um desaparecido.
Atualmente, o banco estadual soma 392 perfis genéticos de corpos não identificados – sendo que 234 perfis foram inseridos somente em 2025. Além disso, 475 perfis genéticos de familiares que buscam um ente desaparecido completam a base – 349 perfis cadastrados neste ano.
O crescimento do banco de dados mato-grossense é fruto do empenho de servidores da Politec-MT, que entre outras ações, reforçam anualmente a campanha nacional coordenada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, para a ampliação do acervo.
“A inclusão desses familiares começou fortemente a partir de 2021, quando se iniciou uma campanha nacional de coleta de DNA de familiares de pessoas desaparecidas. Antes, em 2019, nós tivemos a divulgação de uma lei federal, a 13.812, que regulamentou a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, em que trata sobre essa campanha que deve ocorrer todo ano para fomentar que esses familiares busquem as unidades periciais do país para doar seu DNA”, explica a servidora, de forma entusiasmada.
Mesmo fora do período da campanha nacional, a coleta de DNA é realizada de forma contínua e gratuita em Mato Grosso, sendo necessário registrar o boletim de ocorrência do desaparecimento e procurar uma delegacia da Polícia Civil para ser formalmente encaminhado à unidade da Politec mais próxima.
Késia ressalta que o cruzamento de informações é realizado em todo o país, a partir do Banco Nacional de Perfis Genéticos e alimentado por uma rede integrada (RIBPG), o que aumenta as chances de buscas e de identificação de pessoas desaparecidas, falecidas ou vivas com identidade desconhecida.
“Desses 28 corpos identificados, 11 são referentes aos cemitérios clandestinos. Entre esses 11, nós temos 2 entre estados. O que isso quer dizer? São familiares que doaram seu material genético no estado Maranhão e deu um confronto positivo com um resto mortal não identificado aqui”, detalha a servidora.
Os bons resultados são fruto da criação do núcleo coordenado por Késia, a qual ocorreu em 2024. No total, são oito servidores, entre eles peritos oficiais que atuam em local de crime, peritos oficiais que atuam em laboratório do DNA, além de peritos que atuam na área de áudio/vídeo, odontolegistas e papiloscopistas. “E aí vai entrar um técnico em necropsia, que atua ali na área de antropologia forense, justamente para dar mais envergadura no núcleo, porque a gente trabalha muito com a questão de corpos que já estão em avançado estado não só de putrefação, mas já esqueletizado”, detalha Késia.

Comprometida com a causa, Késia fala em “devolver a dignidade” às famílias de pessoas desaparecidas, ao analisar o trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Identificação Humana. Entre os casos solucionados neste ano, ela relembra o de um corpo encontrado em 2014 e só identificado agora.
“Nenhuma família gostaria de receber a notícia de que o parente está morto. Mas o que a gente escuta também é que fechou um ciclo. Soube o que aconteceu. Pelo menos em partes vai saber o que aconteceu. Talvez não vai saber tudo, mas sabe que já não está mais aqui. Pode cada um, dentro da sua fé, se tiver, da sua religião, poder prestar as homenagens. E para fins burocráticos também, pois passa a ter acesso a toda uma documentação, como Certidão de Óbito. É devolver dignidade também”, relata.

Temos nos empenhado para dar o recado de que nenhuma família vai ficar para trás

“Temos nos empenhado para dar o recado de que nenhuma família vai ficar para trás. O que eu vejo tendo contato com as famílias que vivem essa situação, o sentimento que elas têm, é que não foi só o familiar que desapareceu. É como se essas famílias também deixassem de existir para a Segurança Pública (…) a gente sabe que existe uma questão atrelada à violência, à questão social, mas para a família essa pessoa que está desaparecida é um ser único. Nada vai substitui-la. Então, quando a gente ao menos dá a resposta, por mais que seja uma resposta dolorida, essa família se sente acolhida. No sentido: ‘não fui deixada para trás, vocês estão trabalhando por nós ainda. Vocês não esqueceram da gente’. Então, é esse recado que eu recebo cada vez que eu acabo tendo contato e isso é muito gratificante”, assegura.

Paulo Roberto Leite Alves tinha 27 anos quando saiu da casa da mãe, em Sinop (481 Km de Cuiabá), para comprar pizza e nunca mais foi visto vivo pela família. Era noite do dia 13 de outubro de 2024, quando a genitora se desesperou, procurou a Polícia Judiciária Civil e aguardou por informações do filho.
2025 word1A técnica administrativa educacional, Andréia das Silva Fernandes, 36 anos, conta que o corpo do cunhado foi encontrado em dezembro do ano passado, mas apenas identificado em agosto recente, após ser informada sobre a campanha de doação de material genético por parte das famílias de desaparecidos e levar o sogro até a unidade da Politec-MT em Sorriso (398 Km de Cuiabá), onde o DNA foi coletado. O cruzamento de dados dentro do banco de perfis genéticos pôs fim a meses de espera.
“A gente sente um alívio, pois sabemos que esta angústia acabou. Conseguimos trazer para Nova Ubiratã (429 Km de Cuiabá) – onde moramos com meu sogro – e enterrá-lo. A família agora sabe o que aconteceu, diferente de muitas outras que não tiveram parentes identificados. Agora é trabalhar o processo de aceitação. Minha sogra ficou muito mal no começo, mas está melhorando. É um alívio saber que acabou”, disse ao Olhar Direto. 

Késia pondera que a atuação do grupo não se resume a identificar desaparecidos que perderam a vida, mas também vivos que romperam contato com a família e não têm identificação. “São pessoas vivas que vivem em situações de vulnerabilidade, que estão em albergues ou que dão entrada em pronto-socorro e não sabem quem são. A gente até tem um fluxo já nessa situação. Então, assim, o hospital pronto-socorro entra em contato com a Polícia Judiciária Civil, que entra em contato conosco para a gente coletar essa amostra, porque essa pessoa não se lembra, não sabe quem é. Nós sabemos de idosos às vezes com Alzheimer que acaba se perdendo, por exemplo. Então, existe a esperança também dessa família encontrar o seu familiar vivo. A gente não pode esquecer: o banco não se trata só de encontrá-lo morto, não é isso. A gente está buscando todas as formas de resposta que a gente pode dar para essas famílias”.
“Então, o sentimento é de esperança, de poder realmente contribuir para o acolhimento dessas famílias. Nós tratamos de tanta violência do nosso órgão. A perícia é realmente acionada em situações que nenhuma pessoa gostaria de passar. Ninguém gostaria. A gente brinca: ninguém quer saber dos nossos serviços, mas na hora que precisa é bom saber que nós estamos lá, porque nós somos a voz da justiça, nós somos a voz da verdade. Contribuir para essa devolução de dignidade também, não só para a pessoa que, por exemplo, pode já ter morrido, mas para essas famílias. É muito gratificante”, assevera.
Ainda sobre a equipe do núcleo, Késia destaca um diferencial: a preocupação real em dar respostas às famílias. Conforme a servidora, é preciso analisar os casos com humanidade, não como mera demanda policial. “Por trás daquele documento, nós temos uma família, nós temos uma mãe, um pai, um filho que está procurando seu ente. Então, nos colocar no lugar dessas pessoas tem feito muita diferença”.
Por fim, a especialista pontua o trabalho integrado com demais áreas da Politec-MT, assim como outros órgãos, a exemplo da PJC-MT. “Isso é muito importante, a qualidade em que se coleta essas amostras, a qualidade com que esses familiares são atendidos e as suas amostras são coletadas, a qualidade e o respeito que essas famílias são atendidas na Medicina Legal, isso também faz a diferença. Colocar o cidadão em primeiro lugar, acima de qualquer vaidade, fez total diferença. Porque essas informações integradas vão fazer com que a gente consiga dar ainda mais respostas para as famílias e para a sociedade, no final das contas”, finaliza.

2025 word1O Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) possui um núcleo específico para apurar casos de desaparecimentos na Região Metropolitana de Cuiabá (Capital, Várzea Grande, Nossa Senhora do Livramento e Acorizal). Em 2025, já foram 759 registros de pessoas desaparecidas dentro da área de atuação do grupo, sendo que 668 foram encontradas (88%). Deste total, 641 desaparecidos foram achados com vida (95,9%).
Já em todo o estado, a PJC-MT registrou o desaparecimento de 1.757 pessoas, com 969 já encontradas (55,15%).
De acordo com o titular da DHPP, delegado Caio Alburquerque, normalmente os procurados são homens na faixa etária de 18 a 59 anos que desapareceram de forma voluntária.
“Às vezes são questões familiares, questões entre casais, questões de relacionamento. Então, nós conseguimos identificar um motivo pelo qual aquela pessoa veio a desaparecer. Por óbvio, nós temos infelizmente aí um índice menor, bem menor, mas preocupante do chamado desaparecimento forçado. É o desaparecimento criminoso, quando desapareceram com a pessoa. A pessoa foi sequestrada e a pessoa sumiu. Muitas vezes, a grande maioria dos casos, a pessoa descamba por um homicídio, que aí já entra o envolvimento das facções criminosas. Mesmo assim, essas investigações seguem com o homicídio como se tivesse corpo. Segue normalmente a investigação”, detalha ao .
 

O titular reforça que o comunicado de desaparecimento deve ser feito o quanto antes, reforçando que não há necessidade de se esperar as 24 horas de prazo, que se massificou no senso comum. “O Núcleo de Pessoas Desaparecidas é uma frente muito importante também, que funciona aqui no primeiro andar da delegacia. Nós temos aqui, até depois com a mudança do prédio para a avenida Miguel Sutil, ficou ainda mais prático. A pessoa tem um familiar, um amigo, um conhecido desaparecido: a orientação é, de imediato, vir fazer o boletim de ocorrência aqui na central, que fica no térreo da DHPP. A pessoa faz o boletim de ocorrência, noticia todas as informações que tiver. Imediatamente esse boletim de ocorrência é encaminhado aqui para o pavimento superior do mesmo prédio da DHPP. De maneira que aquela pessoa que está vindo aqui restaurar o BO, ele não precisa ir em outro local para prestar as declarações, para fazer o cartaz. Ele somente se dirige a um outro setor aqui no mesmo prédio, onde vai ser tomada as declarações, vai ser feito o cartaz, com a devida autorização do familiar e segue as providências. A orientação que a gente faz nesse contexto é: não espere nem um minuto além do necessário”.
Albuquerque destaca ainda a importância do trabalho coletivo com outros órgãos como a Politec-MT. “Nós tivemos aquela campanha de coleta de DNA por familiares. Então, todos aqueles familiares que têm pessoas desaparecidas a nível nacional, eles tiveram uma campanha para impulsionar essa Ida do familiar aos pontos de coleta. Feita essa coleta e fica no banco. E quando o desaparecido é localizado, é feita também a coleta do material, para se identificar mesmo a questão do parentesco. E o que mais interessa fazer é o reencontro dessas pessoas”, pontua.

 

Fonte: Olhar Direto

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