Julien Gracq, pseudônimo de Louis Poirier, publicou Le Rivage des Syrtes (O Litoral de Sirtes) em 1951. A obra rapidamente se consolidou como um dos marcos da literatura francesa do , recebendo o Prêmio Goncourt — que o autor, num gesto de firmeza e certa soberba intelectual, recusou. Trata-se de um romance realmente denso, alegórico e de forte carga simbólica, onde política, história e psicologia se entrelaçam para criar uma meditação inquietante sobre o imobilismo, a decadência e o poder destrutivo da espera. Se pudéssemos resumir a crítica do texto, trata-se de um ataque à inércia social ante o inimigo, ante os avanços da história, ante a realidade que se ressignifica.
O romance acompanha Aldo, um jovem aristocrata de uma nobre família em decadência, que aceita um cargo de observador naval na cidade fictícia de Orsenna, uma república decadente à beira-mar. Orsenna vive há séculos em estado de armistício não declarado com o país inimigo, Farghestan, situado do outro lado do mar, além do enigmático litoral das Sirtes — um território inexplorado e proibido segundo as leis militares e costumes que se construíram pelo medo estafante. Aldo é designado para servir numa fortaleza isolada chamada Morhange, espécie de posto avançado à beira do desconhecido e do inimigo imemorial, onde reina a inação, os rituais burocráticos e a falsa vigilância.
À medida que Aldo se entedia com a rotina paralisante e cerimonial da fortaleza, ele começa a desejar uma ruptura. Cabe salientar que o autor utiliza do simbolismo carregado para explicar as inquietações do protagonista, o que pode deixar muitos cansados, mas que, paradoxalmente, transforma as descrições de Aldo, dos costumes e dos nós do senso comum, um dos mergulhos mais profundos que experimentei na literatura até hoje. O que para muitos resenhistas e leitores é um mero vômito de palavras, a mim soou mais como profundidade e talento — apesar de reconhecer sim o excesso prolixo do autor, o que abordarei mais adiante.

A apatia em Morhange logo se transforma num impulso latente e inquietante de provocar uma crise, aquela mesma crise que Hegel chamou de “antítese” para a evolução do Espírito. Sua inquietação é o sintoma de um mal maior e mais abissal: a constatação de que o desejo de destruição se mostrava, naquele momento, a única via de transformação viável. Assim, o protagonista passa a agir de maneira ambígua, flertando com a provocação militar, a espionagem e a transgressão, consciente de que isso pode romper o frágil equilíbrio secular que mantém a paz podre entre os dois mundos, mas que a paz nem sempre é sinônimo de quietude e satisfação de espírito.
O Litoral de Sirtes é uma fábula política e existencial. A paisagem marítima, misteriosa e nebulosa, funciona como metáfora da espera e do desconhecido. O mar é o espaço do possível, do caos latente, enquanto Orsenna representa o mundo velho, saturado de tradição e formalismo, paralisado pelo medo de agir. A fronteira entre os dois mundos — o litoral das Sirtes — é também a fronteira entre a ordem e o colapso, entre a vigília e o delírio. O mar que separa os países é, ao mesmo tempo, sinônimo de paz e segurança, mas também de medo e alerta; o caos sobrevive, para o autor, numa espécie de matrimônio estranho com a calmaria existencial.
Aldo é desenhado para ser um protagonista proustiano e kafkiano: introspectivo, passivo, mas lentamente corroído pelo desejo de ultrapassar os limites impostos. Sua trajetória reflete a tensão entre o instinto vital e o conformismo. Há um constante jogo de silêncios, de elipses, de gestos que não se concretizam — até que a própria linguagem parece conspirar para adiar os acontecimentos, num suspense que nunca explode totalmente em ação, mas que carrega o peso de uma tragédia iminente.
A obra pode ser lida como uma alegoria da entre guerras, vivendo sob o peso da memória, da decadência e da ameaça constante de destruição. E se quisermos elevar seu poder simbólico, veremos que ele casa quase que perfeitamente nas tensões vividas entre liberalismo Ocidental e comunismo Oriental durante a Guerra Fria. A paz que reina em Orsenna, por fim, é ilusória: é uma suspensão do tempo histórico, sustentada por tradições vazias e um medo irracional de encarar o presente caótico e sem linhas claramente definidas. Gracq, que também era historiador, insere nessa atmosfera a crítica à complacência das elites, ao medo da ruptura e à ilusão de que a história pode ser detida indefinidamente por meio do parasitismo de costumes.
O estilo de Gracq é, por assim dizer, singular: opulento, barroco, carregado de imagens sensoriais e metáforas. Ele não busca a clareza em sua escrita, mas uma forma literária densa e ritmada, que exige do leitor atenção e paciência. Confesso que não é o estilo de literatura que mais me agrada; excesso de símbolos e reflexões não quer dizer, de forma alguma, empolamento linguístico, ora, de Senhor dos Anéis a Fausto, podemos notar isso com muita clareza. Por vezes a sua escrita é mais próxima da poesia do que da narrativa tradicional. Essa linguagem luxuriante reforça, é claro, o caráter simbólico do texto.
O Litoral de Sirtes é, assim, uma obra-prima da literatura francesa do século 20, que combina densidade filosófica, riqueza estética e crítica política em um romance de atmosfera tensa. Longe de ser um livro fácil ou direto, ele convida à releitura, à interpretação simbólica e à reflexão profunda sobre os ciclos da história, o papel do indivíduo e o peso da inação. É também uma advertência: há momentos em que não agir, ou esperar indefinidamente, é tão destrutivo quanto iniciar uma guerra. Não daria a ele minhas raras cinco estrelas, pois a linguagem é excessivamente cansativa, num nível desnecessário; a sensação de que se poderia ter dito tudo que se queria dizer, sem perder conteúdo e pujança literária, em trechos mais enxutos e diretos, é uma espécie de retrogosto um tanto azedo que acompanha toda a leitura da obra. Porém, eu não seria injusto ao ponto de diminuir a colcha de filosofia profunda e bem construída que o autor teceu com verdadeiro esmero somente porque ele é prolixo, tal pecado é comum demais nos franceses para eu condená-lo por isso. No Brasil o livro foi relançado pela Editora Carambaia em 2022, com um trabalho editorial impecável, e tradução de Júlio Castañon Guimarães. Também é possível encontrar em sebos a edição de 1986 da obra, com tradução de Vera de Azambuja Harvey, da extinta Editora Guanabara. A inquietação silenciosa que atravessa o livro ecoa os dilemas do nosso tempo, isso é inegável, — a paralisia diante do medo de romper ordens políticas falidas, a nostalgia por formas ultrapassadas de estabilidade, misturada a supostos avanços sociais que parece mais um suicídio coletivo em ritmo de carnaval. Como Orsenna, vivemos à beira de nossos próprios “litorais das Sirtes”, olhando com temor e desejo para o desconhecido que se aproxima, sem saber ao certo se devemos resguardar nossos fortes ou nadar a braçadas para o colo do inimigo.

Fonte: revistaoeste