O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) usou seu discurso na abertura da 80ª Assembleia Geral da ONU, na manhã desta terça-feira (23), em Nova York, para reforçar a sua imagem de rival de Donald Trump no plano internacional. Sem mencionar diretamente o líder americano, marcou diferenças nas áreas geopolítica, comercial e ambiental, em meio à escalada das tensões entre Brasil e Estados Unidos. Mas foi surpreendido pela fala que o sucedeu, justamente a do presidente americano.
Após o encontro brevíssimo que Lula e Trump tiveram nos bastidores da tribuna, o líder americano disse ter “gostado” de Lula e acenou para a aproximação, voltada para negociar o relaxamento do tarifaço de 50% imposto pela Casa Branca a uma série de produtos importados do Brasil. Este foi o primeiro encontro dos dois presidentes desde a volta de Trump ao poder neste ano e pode ter aberto a chance para outro, na próxima semana.
Para observadores, esse posicionamento de Trump ajuda não apenas a quebrar o impasse diante da negativa de Lula em procurar conversar diretamente, mas sobretudo pode esvaziar a retórica construída pelo presidente brasileiro desde o fim de julho, de confronto com um inimigo externo apoiado por seus adversários de direita na política nacional. Essa abordagem se tornou, inclusive, a base para a campanha do presidente pela reeleição em 2026, expressa até nos novos slogans e atos oficiais do seu governo.
O jurista André Marsiglia afirmou que Lula terá agora que lidar com a possível falta de um suposto inimigo externo, ponto sempre presente em seus discursos. “Resta ver como Lula se comportará, pois sua estratégia tem sido enfrentar Trump e utilizar esse enfrentamento como plataforma eleitoral para 2026”, publicou Marsiglia em uma rede social.
Logo após Trump anunciar em julho que pretendia elevar a taxa de comércio com o Brasil para 50%, membros da oposição já começaram a denunciar a estratégia de Lula de desviar o foco dos problemas brasileiros colocando Trump no centro da agenda política.
O presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, deputado Filipe Barros (PL-PR), disse na época não ter dúvidas de que Lula queria que o Brasil fosse taxado “justamente para arranjar um culpado externo pelo seu próprio desastre econômico. No melhor estilo venezuelano, tenta justificar o fracasso da economia colocando a culpa no imperialismo americano”, disse.
A primeira oscilação positiva de Lula nas pesquisas eleitorais no ano de 2025 ocorreu logo depois de Trump anunciar a aplicação das tarifas. Um dos institutos que mostrou a mudança na tendência foi o PoderData, que registrou alta de 39% para 42% na aprovação do governo em pesquisa realizada entre 26 e 28 de julho com 2.500 pessoas em 182 municípios.
Levantamento da semana passada da Genial/Quaest mostrou que Lula lidera em todos os cenários simulados de primeiro e segundo turno para a disputa presidencial de 2026. A pesquisa foi feita com 2.004 pessoas entre 12 e 14 de setembro, com margem de erro de dois pontos percentuais e nível de confiança de 95%.
A melhora nas pesquisas deixou Lula à vontade com a situação. Ele chegou a recusar uma proposta pública de Trump para conversarem por telefone, argumentando que a conversa demandaria muita preparação diplomática prévia. Agora, com o anúncio de Trump na ONU diminui a probabilidade de Lula se esquivar de uma negociação para resolver o tarifaço.
Lula busca o confronto na tribuna da ONU antes de ser desarmado por Trump
Numa série de recados diretos a Trump, Lula afirmou em seu discurso, logo nas primeiras frases e de forma explícita que o Brasil não aceitará intervenções externas, puxando a imagem do agressor internacional que vem tentando associar a Trump. Conforme a tradição, desde 1955 o Brasil foi o primeiro país a discursar, seguido pelos Estados Unidos.
Na 10ª vez que Lula assumiu o púlpito da ONU para abrir debates de chefes de Estado, ele fez questão de defender o multilateralismo, a soberania nacional e o princípio da não intervenção, tecendo um rosário de oposições a Trump, que usou a maior parte de seu discurso para atacar as Nações Unidas e o discurso de combate à mudança climática. No pano de fundo, estava a escalada de tensões da pior crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos das últimas décadas.
Na segunda-feira (16), a Casa Branca anunciou a extensão das sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito da Lei Magnitsky, alcançando sua esposa Viviane Barci e o Instituto Lex, que concentra patrimônio da família. No rastro da decisão, o governo Trump também revogou vistos de seis pessoas ligadas a Moraes e do advogado-geral da União (AGU), Jorge Messias.
No rastro de novas sanções contra Moraes, Lula faz retórica anti-Trump
Em seu discurso, Lula adotou posições contrárias às de Trump em todos os temas, com exceção para a esperança de paz negociada para a guerra da Ucrânia trazida após recente reunião entre o presidente dos Estados Unidos e o ditador da Rússia. Lula começou atacando ameaças ao multilateralismo, perda da autoridade da ONU e intervenções externas, “que enfraquecem a democracia” e normalizam “arbitrariedades contra a soberania”.
Neste ponto, Lula criticou “forças antidemocráticas contra instituições” situadas dentro e fora do país, dando como exemplo “milicias digitais”, em referência a um processo judicial contra Bolsonaro. Ele afirmou que o Brasil sofre uma série de ataques “sem precedentes contra sua democracia” desde o fim do período militar por meio de medidas unilaterais sem justificativa contra o Judiciário com colaboração de “falsos patriotas”.
Lula frisou que a Justiça brasileira deu aviso a “candidatos a autocratas” e “àqueles que os apoiam” ao condenar um ex-presidente da República por tentar dar golpe de Estado, após um julgamento que considera transparente e justo. Neste ponto, ele deu o mais duro recado a Trump, dizendo com base em recorrente retórica interna, que não aceita tutela e que “a democracia e a soberania do país são inegociáveis”.
Lula condena genocídio em Gaza e investida militar contra a Venezuela
No restante de sua fala, Lula alfinetou Trump em vários pontos em que são radicalmente divergentes, como o combate à imigração ilegal, a regulação das grandes plataformas digitais e a classificação de carteis de drogas como organizações terroristas, citando o uso de força militar pelos EUA contra criminosos da Venezuela. Sobre a guerra em Gaza, denunciou o que considera um “genocídio dos palestinos” por Israel e disse reconhecer o Estado da Palestina.
Já Trump disse que o reconhecimento da Palestina neste momento por países como Reino Unido, Austrália, Canadá e Portugal é uma recompensa aos atos terroristas do Hamas contra Israel em outubro de 2023.
Nas questões econômicas e ambientais, Lula voltou a enfrentar Trump. Em tom alarmista, disse que a crise climática e as responsabilidades que ela impõe, sobretudo a países ricos, serão evidenciadas na reunião de cúpula da ONU em Belém, em novembro. Por fim, propôs relançar o sistema multilateral de comércio para conter “medidas unilaterais” que desorganizam cadeias produtivas, elevam preços e minam a confiança.
Já Trump desdenhou do discurso de transição para energias renováveis afirmando que a energia eólica é “patética” e a geração de energia precisa dar lucro e não prejuízos.
Discurso de Trump contraria posições de Lula, mas encerra com afago em Lula
Em seu longo discurso, logo após o de Lula, Trump fez fortes críticas à gestão do seu antecessor, Joe Biden, a quem creditou calamidade econômica e fraqueza geopolítica dos EUA que estariam agora sendo corrigidas. Ele listou realizações em apenas sete meses de mandato, como atração recorde de investimentos externos, acordos comerciais e encerramento de conflitos bélicos, alguns após mais de três décadas.
Em diferentes momentos, Trump fez duras críticas à inoperância da ONU diante dos desafios atuais do mundo, com foco principal nas tensões na Europa e no Oriente Médio, crises migratórias e “a falácia da agenda verde”. Para ele, a reindustrialização dos EUA, convertido em “melhor lugar para os negócios”, incluindo maior controle sobre suas fronteiras, fomentará a prosperidade de todos os demais países.
Na maior parte de seu discurso, o presidente americano condenou as invasões de imigrantes nos EUA e Europa, que estão “destruindo os países” invadidos. Neste sentido, chamou a ONU de parte do problema ao financiar a acolhida de imigrantes e asilos ilegítimos.
Presidente americano condiciona melhora nas relações à disposição de Lula negociar
No encerramento da fala, ao exaltar um comércio robusto e justo dos EUA com todas as nações, Trump ressaltou que as tarifas que elevou serviram para revidar barreiras “desleais e corruptas” que o seu país enfrentou de todos, se aproveitando de gestões passadas. Neste ponto citou o Brasil, mas agregando que as tarifas impostas também são uma reposta a interferências nos direitos de cidadãos americanos. Ele não citou, desta vez, o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), seu aliado.
Com tom firme que logo depois seria quebrado por rápido comentário pessoal, Trump condenou a corrupção judicial no Brasil, que atinge também os seus críticos nos EUA. Ao dizer ter abraçado Lula nos bastidores e conversado por alguns segundos, disse ter a impressão de ser um “homem bom” e percebido uma “excelente química” entre ambos, sendo para ele essencial gostar daqueles com quem negocia, torcendo por um encontro na próxima semana, se for do interesse. Trump reconheceu porém que não gosta de Lula e Lula não gosta dele.
“As coisas com o Brasil não estão indo bem. No passado, Brasil usava tarifas injustas contra nós. Estamos sendo recíprocos agora. Continuaremos bem se trabalharem conosco. Sem nós, falharão”, avisou, dando os termos após o afago.
Para especialistas, jogada de Trump revela seu estilo de negociar com oponentes
O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o jornalista Paulo Figueiredo, que há meses cooperam com a Casa Branca na denúncia do ativismo judicial no Brasil, elogiaram o aceno de Trump a Lula. Eles viram na fala do presidente americano e nos seus gestos uma jogada calculada para expor contradições de Lula, podendo enfraquecer críticas ou suavizar tensões, usando a diplomacia para remodelar relações bilaterais.
Prova do mal-estar alimentado pelo Palácio do Planalto foi a exclusão dos EUA da segunda edição do evento “Em Defesa da Democracia e Contra o Extremismo”, articulado pelo Brasil e aliados e marcado para quarta-feira (24), em Nova York.
Para Natália Fingermann, professora de Relações Internacionais da ESPM, a opinião pública americana já acompanhava de perto o processo contra Jair Bolsonaro por tentativa de golpe, em razão de seus paralelos com o fim do primeiro governo Trump.
“No plano internacional, havia expectativa de condenação de Bolsonaro, com a percepção de que o episódio serviria de referência para questionar a resposta da Justiça dos EUA ao contexto de suposta insurreição na gestão Trump”, observa.
A especialista ressalta que as conexões entre a direita brasileira e a americana reforçam a possibilidade de alguma forma de intervenção dos EUA na política nacional, inclusive no processo eleitoral de 2026. “Prova dessa conivência foi a imensa bandeira americana estendida no ato da Avenida Paulista no Sete de Setembro, quando o principal símbolo de outro país marcou presença na maior data cívica do Brasil”, sublinha.
Já Daniel Afonso Silva, professor de Política Externa da USP, avalia que a energia despendida pela Casa Branca até agora com o caso brasileiro ainda é secundária diante das diversas frentes de contencioso bilaterais abertas pela atual administração Trump. Mas alerta que o ineditismo do embate e seus potenciais desdobramentos não devem ser subestimados. Exemplo disso, segundo ele, é a forma intensa como Trump trata a “caça às bruxas” contra Bolsonaro, termo usado pelo próprio ex-presidente para definir o cerco policial e judicial que enfrenta.
Na visão de Silva, Trump se pronuncia sobre o Brasil em linha com outras situações internacionais, como forma de reafirmar o peso dos EUA na cena global e buscar a reabilitação da influência americana anterior à crise financeira de 2008. Do lado brasileiro, ele teme que, desde a prisão de Lula em 2018, tenha se naturalizado o processo de criminalização de ex-presidentes, em meio a um contexto marcado por crises sucessivas: a recessão no segundo governo Dilma e, depois, a pandemia no governo Bolsonaro.
Fonte: gazetadopovo