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Clara Pandolfo: a pioneira da química e defensora da Amazônia

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O estado do Pará se prepara para receber, em novembro, a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30). A Amazônia será palco (e assunto) dos debates mais importantes sobre a crise do clima.

As discussões, claro, não são de hoje. Na verdade, há mais de 90 anos, uma paraense já antecipava assuntos que hoje mobilizam governos, empresas e sociedade civil. Seu nome é Clara Pandolfo.

Pioneira na química e na ciência amazônica, Clara defendeu o manejo florestal sustentável, o monitoramento do desmatamento por satélite e políticas de desenvolvimento que integrassem preservação ambiental e geração de renda para as comunidades locais.

 

Nascida em Belém, no dia 12 de junho de 1912, Clara foi a primeira mulher a se formar em química na região Norte e uma das cinco primeiras no Brasil. Filha do comerciante português Albano Augusto Martins e da paraense Judith Barreau do Amaral Martins, ela cresceu em uma família que valorizava a educação. 

“Assim que concluiu o Ensino Médio, ela acalentava o sonho de ser aviadora, seguindo os passos de Anésia Pinheiro Machado, primeira mulher a realizar um voo solo no Brasil, mas seu pai não tinha condições de mandá-la para o Sudeste, onde ficavam as escolas de aviação”, conta à Super Murilo Fiuza de Melo, neto da cientista e autor do livro Clara Pandolfo, uma cientista da Amazônia.

“E aí é que entra a figura de sua mãe, Judith, uma paraense de ideias avançadas, que lutou para que todos os filhos – cinco no total – fizessem uma faculdade.”

Influenciada pela mãe, Clara ingressou na antiga Escola de Chimica Industrial do Pará (essa era a grafia de “química”), então dirigida pelo naturalista francês Paul Le Cointe, que se tornou seu mentor intelectual. Em 1929, aos 17 anos, apresentou a monografia “Contribuição ao estudo químico das plantas amazônicas”, que antecipava seu interesse pelo uso sustentável dos recursos naturais da região.

Nos anos 1930, envolveu-se no movimento sufragista brasileiro. “Ela entrou no Núcleo Paraense pelo Progresso Feminino, representando a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino da Bertha Lutz. Graças à luta das sufragistas, o Congresso aprovou, em 1932, o direito das mulheres de eleger e de se candidatar a cargos políticos”, conta Melo.

Dona de casa? Nem pensar

Ainda jovem, Clara teve de enfrentar os preconceitos da sociedade ao escolher trabalhar fora. 

“Sua mãe lhe perguntou se ela queria trabalhar ou ser uma dona de casa, esposa e mãe dedicada, como era o caminho natural das mulheres da Belém da primeira metade do século 20. Ela respondeu que seguiria trabalhando – e ouve da mãe que deveria se acostumar com o preconceito e os ataques que sofreria dali para a frente”, relata Melo.

Após o estágio inicial com Le Cointe, Clara trabalhou por mais de 20 anos no Laboratório de Análises Clínicas do Estado do Pará. Era um trabalho repetitivo, mas ela não se deixou limitar. 

Fotografia da Clara, aos 20 anos, em seu primeiro emprego no Laboratório de Biologia do Estado do Pará, em 1934.
Clara, aos 20 anos, em seu primeiro emprego no Laboratório de Biologia do Estado do Pará, em 1934. (Acervo Clara Pandolfo/Divulgação)

“Clara conseguiu alçar voos, cargos de liderança, e se destacou. Entrou como técnica da SPVEA, que é a agência de desenvolvimento da Amazônia anterior à Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), e lá conseguiu virar diretora. Foi aí que começou a apresentar seus grandes projetos de desenvolvimento para a Amazônia”, diz Melo, lembrando ainda a luta de Pandolfo por igualdade salarial: “Quando ela recebeu o primeiro salário, viu que um colega com a mesma ocupação ganhava 30% a mais. Ela foi ao superintendente e conseguiu ser remunerada com o mesmo salário.”

Clara se casou em 1936 com Rocco Raphael Pandolfo, com quem viveu por 50 anos e teve três filhos. A vida familiar se somava às responsabilidades profissionais. 

“Ela acordava antes das cinco da manhã, lavava roupa, preparava o café e o almoço, deixava os filhos na escola, costurava e ainda pintava a casa, com tintas que produzia a partir de suas habilidades como química.”

Clara e a Amazônia

O trabalho científico de Clara, que desde cedo defendeu o manejo sustentável da Amazônia, continuou avançando. Nos anos 1970, ela propôs o uso de satélites para monitorar o desmatamento, quando a tecnologia ainda era recente. 

“Como diretora de Recursos Naturais da Sudam, ela se incomodava com o fato de a agência não ter condições de fiscalizar se os projetos agropecuários mantinham os 50% de florestas preservadas. Em 1972, minha avó soube que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) havia tido acesso a imagens do satélite ERTS e vislumbrou ali a saída para o controle do desmatamento”, diz Melo. 

A cientista formalizou convênio com o Inpe para testar o método, abrindo caminho para o monitoramento moderno da Amazônia.

Além do uso de tecnologia, Clara articulou conceitos de economia e ecologia antes mesmo do surgimento do termo “sustentabilidade” – que começou a ser delineado globalmente na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (UNCHE), realizada em Estocolmo em 1972, e cunhado pela norueguesa Gro Brundtland no Relatório “Nosso Futuro Comum” (1987).

“Ainda em 1978, ela publicou um estudo chamado ‘Floresta Amazônica, um enfoque econômico e ecológico’, defendendo florestas de rendimento e manejo de baixo impacto, capacitação das comunidades locais e criação de unidades de conservação. Foi muito criticada, chamada pejorativamente de ‘a dona da floresta’, mas suas ideias foram parar parcialmente na Lei de Gestão de Florestas Públicas de 2006.”

A cientista também deixou marcas na educação. Foi a última diretora da Escola de Química Superior do Pará antes de sua incorporação pela Universidade Federal do Pará (UFPA), implantando o Laboratório de Análise Espectral com equipamentos de ponta, adquiridos com apoio da SPVEA em 1963. 

Sua dedicação à formação de profissionais amazônidas refletia seu compromisso com o desenvolvimento local: “Ela defendia que os amazônidas deveriam se apropriar da sua região. Não era uma questão de bairrismo, mas de desenvolvimento”, afirma Melo.

Clara faleceu em 2009, aos 97 anos. Hoje, seu exemplo inspira novas gerações. “Às vésperas da primeira COP na Amazônia, em Belém, as ideias defendidas por ela, ainda nos anos 1970, mostram que o caminho para o desenvolvimento sustentável está aberto, mas é preciso pavimentá-lo para seguir adiante.” 

“É possível ter uma Amazônia mais equânime socialmente, onde o modo de vida de sua população tão heterogênea – sejam ribeirinhos, indígenas ou moradores das periferias urbanas da região – possa ser compreendido, respeitado e que todos tenham a chance de se desenvolver. E para isso não precisamos cortar uma árvore a mais.”

Fonte: abril

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