Aves sentem cheiros. Essa ideia pode parecer óbvia, mas, para muita gente – inclusive biólogos e veterinários –, não é. Essa controvérsia começou em 1826, quando um naturalista e artista chamado John James Audubon realizou um experimento que entrou para a história e que pode nos ensinar muito sobre como a ciência é feita.
Audubon queria provar que aves se orientam exclusivamente por meio da visão, sem nunca usar o olfato. Para isso, ele escondeu uma carcaça de porco apodrecida debaixo de um arbusto – e observou que nenhum dos urubus-de-cabeça-vermelha que estavam por perto se interessaram pela armadilha.
Já quando ele colocou uma pele recheada de palha de um cervo que havia morrido recentemente, um ou outro urubu foi investigar. Mesmo que as aves tenham rapidamente perdido o interesse no animal empalhado, Audubon tomou essa comparação como um atestado infalível de sua ideia original.
Os apoiadores de sua teoria foram ainda mais longe em seus experimentos: um deles observou que, diante de um quadro mostrando uma ovelha ferida, os urubus tentavam bicar a obra. Outro constatou que, quando eram cegados, urubus mantidos em cativeiro paravam de se alimentar.
Todos os testes pareciam apontar em uma única direção: os urubus-de-cabeça-vermelha são incapazes de sentir cheiros, e dependem completamente da visão. Por extensão, concluíram que o mesmo deveria valer para todas as milhares de espécies de aves.
Uma pesquisa já não começa muito bem quando o objetivo é provar um ponto de vista, e não responder uma pergunta ou testar uma hipótese.
Entretanto, fica pior quando os pesquisadores ignoram aspectos essenciais dos seus experimentos – como o fato de que urubus-de-cabeça-vermelha preferem se alimentar de animais que tenham morrido recentemente, antes que apodreçam muito (o que explica o desinteresse pelo porco). Ou que algumas tintas à óleo da época continham substâncias com cheiros semelhantes aos exalados pela decomposição orgânica. Ou até que animais mutilados e em um cativeiro violento tendem a não ter muito apetite.
As conclusões que Audubon defendia se disseminaram como verdade e muita gente pensa assim até hoje – mesmo que, desde 1960, existam várias evidências mais embasadas do contrário.
As aves oceânicas, por exemplo, conseguem detectar até o cheiro de correntes marítimas com maior ou menor concentração de plâncton para se alimentarem. Os kiwis, aves da Nova Zelândia, têm narinas na ponta de seu bico longo e curvo, e enfiam-no na terra para farejar pequenos animais.
Segundo o ornitólogo e professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) Vitor Piacentini, há muitas razões para esse mal entendido perdurar.
O principal é que mais da metade das aves conhecidas e estudadas são da ordem Passeriforme, que são menos dependentes do olfato para a sobrevivência. Mesmo que não precisem do olfato para achar comida, os pássaros dessa ordem usam os cheiros para identificar parceiros para o acasalamento, por exemplo – mais ou menos como os humanos (rs).
É impossível, claro, generalizar uma afirmação sobre olfato a todas as aves. O professor cita alguns elementos importantes para diferenciar um olfato mais ou menos apurado: “o tamanho do bulbo olfativo, que é proporcionalmente ligado a quantidade de nervos ou ligações nervosas; a quantidade de células mitrais, que são utilizadas no reconhecimento do cheiro; e a própria anatomia da narina.”
O poder do nasal sensual de cada espécie varia conforme as necessidades impostas por seu habitat e estilo de vida. O urubu-de-cabeça-vermelha, por exemplo (aquele que foi estudado por Audubon) na verdade tem um dos olfatos mais excepcionais entre as aves. Presente em quase todos os biomas das Américas, essa espécie é capaz de encontrar carcaças frescas ou pequenas mesmo em ambientes de difícil visibilidade, como as florestas densas.
“São adaptações que o bicho desenvolveu para ter para conseguir se guiar, então ele tá voando em cima de uma floresta, e ele consegue, sem ver uma carcaça, sentir o cheiro. Ele vai, rodeia, até que ele pousa na árvore e daí ele consegue localizar as carcaças, mesmo as menos expostas, mesmo as escondidas debaixo das árvores, carcaças menores também.” explica Piacentini.
Embora o mal-entendido sobre o assunto já tenha dois séculos, isso tende a mudar: o número de artigos publicados sobre o tema dobrou a cada década desde 1992. Parece que aos poucos estamos aceitando que os pássaros – que já são os campeões de voo, canto e visão – também são bons de cafungar.
Fonte: abril