Este é o quarto texto da série “A vida secreta das palavras”, que está na edição de outubro de 2024 da Super. Leia aqui a terceira parte, e fique de olho nos próximos capítulos.
Em sua única e longa obra – intitulada Histórias, e terminada há 2,5 mil anos – o grego Heródoto conta uma das peripécias do faraó Psamético I, que comandou o Egito entre 664 a.C. e 610 a.C.
O tirano levava jeito para cientista: queria descobrir qual foi o primeiro de todos os povos conhecidos. Deu dois irmãos gêmeos recém-nascidos a um pastor, e pediu ao homem que levasse os bebês a uma ilha deserta. Lá, as crianças deveriam crescer isoladas.
A ideia era simples: os gêmeos, quando atingissem determinada idade, começariam a conversar. Sem falantes de copta (a língua dos hieróglifos) por perto, eles seriam obrigados a escolher alguma língua para fazer isso. Na hipótese do faraó, essa seria a língua que vem instalada de fábrica no ser humano.
A história é obviamente apócrifa, mas a pergunta de Psamético é excelente. Afinal, a aquisição de linguagem é um fenômeno com ares mágicos.
Todas as crianças humanas aprendem a falar suas línguas nativas exatamente na mesma época da vida – as variações entre indivíduos são da ordem de apenas algumas semanas ou meses. Se uma criança for exposta a duas línguas diferentes, ela aprenderá as duas sem confundi-las entre si.
Embora o maternês – a “vozinha de bebê” – comprovadamente agrade os pequenos e ajude na comunicação com eles, ela não é universal: existem culturas em que os adultos não têm o hábito de se dirigir diretamente às crianças com qualquer voz que seja. Mesmo assim, elas aprendem a falar perfeitamente, sem qualquer prejuízo.
Muitas línguas sintéticas com declinações complexas são comuns em países de renda baixa, com acesso precário à educação. Porém, nenhuma criança comete erros gramaticais (estamos falando de erros gramaticais de verdade, que impedem a comunicação – não erros de norma culta, como dizer “a gente somos”).
De fato, na Nicarágua da década de 1970, um grupo de crianças surdas que não havia sido alfabetizada inventou a própria língua de sinais com as mãos. Em suma: o instinto da fala está entranhado em nós.
Por essas e outras, a maioria dos linguistas contemporâneos concorda que a linguagem é um artefato biológico – um software que vem instalado de fábrica no nosso cérebro e evoluiu por seleção natural, como o canto dos pássaros ou das baleias. O paizão dessa hipótese, ao longo do século 20, foi o pesquisador americano Noam Chomsky.
Parece estranho falar em “pequenas modificações” diante de línguas analíticas e sintéticas, línguas com dezenas de gêneros e declinações, línguas com uma multidão de verbos irregulares. Mas essa variedade é ilusória. As línguas têm muito mais semelhanças do que diferenças.
Todas elas possuem nomes e verbos, sujeitos e predicados, pronomes e advérbios etc. Quando há variações, elas ocorrem dentro de um leque limitado de possibilidades. 41% das línguas, por exemplo, adotam a ordem sujeito-verbo-objeto (SVO), como o português. Menos de 1%, porém, põe o objeto no começo e o verbo no final (OSV), como faz o mestre Yoda. “Interessante, isto é”, rs.
Esses são os pilares de um campo de estudo chamado linguística gerativa. Ela prevê que nossos cérebros vêm equipados com uma Gramática Universal (GU), um chassis biológico para a fala.
A GU consiste em Princípios, que são os universais da linguagem humana, e Parâmetros, que são como interruptores: o bebê pode ou não ativá-los conforme aprende as particularidades de sua língua materna.
Essa semelhança biológica, que perpassa toda a variedade cultural humana, é uma das evidências mais elegantes de que, no fundo, somos todos iguais.
Fonte: abril