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Proibição de Celular na Escola: Vale a Pena?

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Helena* tinha só 9 meses de idade quando Steve Jobs anunciou, em suas palavras, “um produto que mudaria tudo”. Até então, chamávamos de smartphones celulares que ainda tinham uma tela horizontal, um teclado QWERTY grande e acesso limitado à internet. Eles eram majoritariamente usados por executivos – o Blackberry, Moto Q e Nokia E62 são os maiores exemplos dessa safra. Em junho de 2007, cinco meses após o anúncio de Jobs, o iPhone chegou às lojas da Apple.

Ele foi o primeiro aparelho bem-sucedido com tela touchscreen. Em 2008 surgiu a App Store, que possibilitou que outros desenvolvedores (e empresas) criassem e distribuíssem aplicativos para o iPhone. De 2010 em diante, smartphones com um único telão preto se popularizaram por meio de opções mais acessíveis, com o sistema operacional Android. O resto é história.

Hoje, Helena tem 18 anos de idade. A jovem recém-chegada à maioridade faz parte da primeira geração que cresceu com um computador no bolso. Com 11 anos, ela começou a levar o smart-
phone para a escola, mas só podia usá-lo nos intervalos – caso contrário, o aparelho era confiscado e só podia ser retirado pelos pais. Aos 13, a fiscalização ficou mais difícil. Os alunos teclavam no vão debaixo das carteiras ou escondiam o aparelho no estojo. Quando Helena fez 14 anos, veio a pandemia. “Foi aí que tudo desandou”, diz ela.

A adolescente, assim como boa parte dos 33 milhões de estudantes de ensino fundamental e médio do Brasil, passou a assistir às aulas online, com o celular na mão. Se acostumou a tirar dúvidas no Google, a comentar as aulas com amigos no WhatsApp e, às vezes, a dar uma olhada no Instagram e no TikTok.

Quando as aulas voltaram a ser presenciais, ainda com máscaras e distanciamento social rígido, o celular era a única maneira de se comunicar com os colegas que estavam na mesma sala.

“Todo mundo usava o celular em todos os momentos da aula, porque não podíamos conversar com as pessoas. No início não podiam nem distribuir atividades em papel, então a gente fazia no celular”, diz Helena. Desde então, mexer no aparelho brevemente durante a aula, principalmente para responder mensagens, virou rotina. Durante o ensino médio, ela assistia às aulas com o celular na mesa.

É consenso que a pandemia contribuiu para a consolidação dos smartphones nas escolas. Embora os celulares sejam oficialmente proibidos em muitas delas, isso raramente ocorre na prática. A lei número 15.100, sancionada no início deste ano, é uma tentativa de voltar à época em que a regra era cumprida com mais afinco: ela restringe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis durante as aulas e o recreio. Eles só são autorizados para fins pedagógicos, de acessibilidade ou saúde.

Ilustração, em estilo psicodélico, de duas crianças usando celular. Ao fundo diversas referências de redes sociais.
A pandemia normalizou o uso do celular durante as aulas online. Com a volta ao presencial, os aparelhos continuaram sendo usados nas escolas. (Matheus Santa Cruz/Superinteressante)

O principal argumento utilizado na redação do projeto vem do Pisa, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, que avalia 81 países. Segundo o relatório de 2022, alunos que usam o celular para lazer por até 1 hora por dia obtiveram 49 pontos a mais em matemática em comparação àqueles que ficam de 5 a 7 horas diariamente.

Além disso, 80% dos estudantes brasileiros relatam que se distraem com o celular durante a aula, em comparação a 21% dos japoneses e 32% dos sul-coreanos. O Japão, diga-se de passagem, está entre os cinco melhores países em todas as disciplinas, enquanto o Brasil fica abaixo da 50ª posição no ranking geral.

Não precisa ser nenhum Piaget para concluir que os celulares podem atrapalhar o rendimento escolar de crianças e adolescentes. Mas não é só isso: educadores e neurocientistas estão preocupados com o desenvolvimento cognitivo e a saúde mental da geração que cresceu com os smartphones.

Atenção miúda

Há uma confusão comum sobre a função da dopamina. Às vezes ela é chamada de molécula do prazer, mas ela tem mais a ver com expectativa de prazer – com o desejo e a motivação. Se você come uma batatinha, seu cérebro libera dopamina para fazer você pegar a próxima e sentir o sabor de novo.

Essa é a lógica dos caça-níqueis – e das bets online. O jogador ganha as primeiras apostas, mas raramente saca o dinheiro e sai feliz. Isso porque a dopamina nos ensina a regular as expectativas sobre algo. Por meio dela, o cérebro aprende: “se eu ganhei essa, posso ganhar a próxima também”. Em um jogo que é programado para dar uma ligeira vantagem à casa de apostas, fica fácil ir à falência.

O curioso é que recompensas variáveis (às vezes ganhar, às vezes perder) elevam mais os níveis de dopamina do que a certeza de recompensa. Elas fazem a pessoa querer ver o que vem a seguir – os feeds infinitos presentes em todas as redes sociais usam esse curto-circuito biológico para manter os usuários no aplicativo. “Essa probabilidade de sempre vir algo novo, a falta de previsibilidade, é o que libera dopamina e gera ânsia por mais”, diz Virgínia Chaves, educadora e neurocientista pela UFRJ.

Não é só uma analogia. Os aplicativos de redes sociais foram de fato construídos com a neurociência dos caça-níqueis em mente. Documentos internos vazados em 2021 (1) mostram que o Facebook tinha consciência do caráter viciante da rede e utilizou essas técnicas para engajar usuários. Um trecho de texto intitulado “Fundamentos da Adolescência”, presente no documento vazado, explica como usar a imaturidade do cérebro jovem a favor dos interesses da big tech.

O córtex pré-frontal é uma região do cérebro que ainda está se desenvolvendo durante a infância e a adolescência. Essa é uma área que surgiu recentemente em nossa história evolutiva, e está relacionada às nossas capacidades mais complexas e intrinsecamente humanas, como tomar decisões, planejar a longo prazo e regular racionalmente as emoções. Tudo aquilo que pode ser influenciado pelo celular.

“Essas habilidades cognitivas amadurecem em torno dos 24 e 25 anos”, diz Sabine Pompeia, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que estuda neurociência e comportamento em adolescentes. “O jovem é muito mais propenso a ficar dependente desse tipo de situação e não conseguir se desvencilhar do que um adulto […] É como se você deixasse uma criança o tempo todo com brigadeiros na frente dela.”

Ilustração, em estilo psicodélico, de crianças pulando corda e uma mão segurando um celular multicolorido em primeiro plano.
Os smartphones e as redes sociais usam estratégias de caça-níqueis para manter os usuários engajados – o que afeta especialmente
as crianças. (Matheus Santa Cruz/Superinteressante)

A habilidade de não comer vinte docinhos de uma vez ou não checar o celular durante a aula é chamada tecnicamente de “inibição de comportamento”. O poder de dizer “não” a um impulso dopaminérgico se desenvolve aos trancos e barrancos ao longo da infância e da adolescência. No futuro, isso ajudará o indivíduo a recusar substâncias que causam dependência, como álcool e nicotina.

Fica difícil desenvolver o autocontrole, porém, quando a “substância” em questão apita no bolso, gerando pequenas descargas de dopamina ao longo do dia. A notificação pode ser uma mensagem do crush, um meme em que sua amiga marcou você ou só uma promoção da Uber. A imprevisibilidade chama o comportamento.

“É impossível você estar com o celular em cima da mesa, ver uma notificação do WhatsApp e não responder durante a aula”, diz Helena sobre sua experiência no ensino médio. “Eu percebi isso e desativei as notificações, mas mesmo assim eu ficava curiosa e entrava para ver se tinha alguma coisa nova.”

De fato: um estudo feito pela Universidade do Texas mostra que a mera presença do celular já é suficiente para desconcentrar e prejudicar a capacidade cognitiva (2). No experimento, três grupos de participantes realizaram uma tarefa que exigia foco e concentração. O celular de todos eles ficou no modo silencioso.

A diferença era se o aparelho estava no bolso, na escrivaninha ou em outro cômodo. Conclusão: os usuários que não tinham o celular por perto executaram melhor o trabalho. Em segundo lugar ficaram aqueles que deixaram o celular no bolso, e em último os que mantiveram o aparelho no campo de visão.

Jovens nunca foram chafarizes de concentração: sempre foi difícil fazê-los prestar atenção no conteúdo escolar, e isso é normal. “A atenção flui naturalmente do externo [a aula, por exemplo] pro interno [outros pensamentos]”, diz Grace Schenatto, professora da UFMG que estuda as bases neurobiológicas do aprendizado e da memória. “Você não consegue manter a atenção de um estudante por mais de alguns minutos.”

O celular, naturalmente, se aproveita dessas flutuações no nosso fluxo de atenção. Os adolescentes recebem, em média, 240 notificações por dia – sendo um quarto delas durante o período escolar (3). Além dos segundos que os estudantes gastam olhando a tela, seus cérebros ainda levam mais alguns milissegundos para voltar a focar na aula (4). Isso dificulta o aprendizado e a formação de memórias.

Tabela, em fundo rosa, com as habilidades aprendidas na escola que sofrem interferência negativa do celular.
(Arte/Superinteressante)

A boa notícia é que a atenção é uma habilidade cognitiva exercitável. Quanto mais você se esforça para prestar atenção em algo, mais consegue sustentá-la por longos períodos. A má notícia é que as novas formas de lazer dos jovens não contribuem para isso. Alguns estudos começam a relacionar o vício em vídeos curtos, como TikToks e Reels do Instagram, ao menor controle da atenção, além de maior procrastinação em tarefas acadêmicas e a propensão ao tédio (5).

“Quanto mais conteúdo rápido os jovens consumirem, menos preparados eles vão estar para assistir a uma aula longa”, diz a neurocientista Virgínia Chaves. “Uma aula não vai dar a dose de dopamina do TikTok, porque não é assim que a vida funciona.”

Pensando nesse impacto de longo prazo, a lei federal que proíbe os celulares nas escolas não se limita às salas de aula. A regra passa a valer nos recreios também – um intervalo em que os smartphones antes eram considerados aceitáveis. Faz sentido restringir o uso até nesses momentos?

Geração iPad

“O conteúdo escolar, na minha opinião, é o que menos importa.” A frase da professora Schenatto parece absurda, mas não é. Afinal, toda informação que é apresentada nas aulas está disponível online. A maior função da escola é desenvolver o que a internet é incapaz de ensinar – que vale tanto para os momentos dentro da sala de aula quanto para o recreio.

Uma delas é a habilidade motora em crianças pequenas. Na escola, elas aprendem a controlar movimentos finos (escrever no caderno, por exemplo) e mais bruscos (como chutar uma bola). A atividade física na infância também fortalece os ossos e reduz o risco de fratura no futuro (6). Em suma: é importante brincar usando o corpo, o que geralmente rola durante o recreio.

Não só brincar, mas também correr riscos físicos, que envolvem o perigo real de se machucar. Ao longo dos últimos 20 anos, estudos (7) mostraram que as brincadeiras arriscadas são importantes para o desenvolvimento da coordenação, do equilíbrio, tolerância de incertezas e confiança. As crianças precisam aprender quando os riscos valem a pena – e quando é melhor deixar quieto.

Hoje, brincar na rua é raridade, então cabe à escola proporcionar esse ambiente. Há uma percepção geral de aumento da violência urbana em comparação ao século passado – não necessariamente verdadeira –, que leva alguns pais a confiar no celular como uma forma de supervisionar e proteger os filhos. É uma preocupação válida, mas que não deve impedir os jovens de correr qualquer risco.

Ilustração, em estilo psicodélico, de uma criança sentada usando celular.
Alguns pais confiam nos celulares como uma forma de proteger os filhos. Correr alguns riscos, no entanto, é importante para o desenvolvimento. (Matheus Santa Cruz/Superinteressante)

Também é na escola que aprendemos a identificar expressões faciais e a ajustar nosso comportamento para viver em sociedade sem passar vergonha. A maior parte do que chamamos de “noção” precisa ser aprendida ao longo da vida.

“Eu preciso saber se eu tô arrasando quando falo alguma coisa ou se as pessoas estão desinteressadas naquilo”, diz Sabine Pompeia. “Durante a aula, você só tem o feedback do professor, então essas interações são muito mais importantes durante o recreio.” Interações ao vivo, em tempo real, e não por postagens em redes sociais.

O quanto exatamente o uso de smartphones está prejudicando essas habilidades básicas? É difícil responder. Para bater o martelo, seria necessário acompanhar o desenvolvimento de várias crianças distribuídas aleatoriamente em dois grupos: com e sem acesso a smartphones. Esse seria um experimento científico padrão-ouro.

Mas é virtualmente impossível realizar um experimento nesses moldes. Vivemos uma situação peculiar, em que não existe um grupo-controle, porque todo mundo tem acesso a um dispositivo portátil. Não seria útil considerar famílias que não têm um ­smartphone por falta de dinheiro – nesse caso, há outros fatores socioeconômicos que afetam o desenvolvimento cognitivo. Também não adianta estudar famílias ricas que optam por criar os filhos sem telas: elas são exceção em seu contexto socioeconômico.

No Brasil, sabemos que o padrão é ter um celular. Há mais brasileiros com smartphones do que com acesso a saneamento básico: são 258 milhões de aparelhos em uso, uma média de 1,2 por pessoa.

Nos Estados Unidos, crianças nascidas a partir de 2010 ficaram conhecidas como “geração iPad”, devido ao uso disseminado desses aparelhos desde a primeira infância. Embora o termo não seja aplicável ao Brasil (os tablets são bem menos comuns por aqui), poderíamos substituí-lo por “geração Android”. Afinal, oferecer o celular aos bebês é uma estratégia manjada para fazê-los parar de chorar em casa ou em público.

Um estudo conduzido em países latinoamericanos encontrou uma correlação entre o uso não supervisionado de telas por crianças de 1 a 4 anos e um atraso no desenvolvimento de habilidades de linguagem. Por outro lado, o uso de telas junto com os pais foi associado positivamente à linguagem, assim como a leitura conjunta (8). Ou seja: não é apenas o tempo de tela que importa, mas também como esse tempo é utilizado.

Outro efeito mensurável é o aumento de casos de miopia devido à falta de exercício do globo ocular durante a infância. A criança precisa de oportunidades de olhar objetos distantes – o que envolve passar tempo longe das telas, em ambientes abertos e com horizonte visível. Um programa de prevenção conduzido em Taiwan ao longo de 5 anos mostrou que 120 minutos ao ar livre por dia na escola reduzem a incidência de miopia em crianças em até 50% (9).

A nova epidemia

A adolescência e a pré-adolescência são momentos sensíveis para a saúde mental. As mudanças no corpo, a inserção em grupos sociais e a formação de identidade criam uma tempestade perfeita no cérebro – que, como mencionado antes, ainda está em formação. Isso faz parte do crescimento.

Mas algo aconteceu na década de 2010. Nos EUA, cada vez mais adolescentes entre 12 e 17 anos passaram a relatar episódios depressivos maiores (ou seja, graves) em pesquisas. Entre 2010 e 2021, houve um aumento de 145% do problema entre meninas e de 161% entre meninos.

O Brasil segue a tendência. Segundo um levantamento realizado pela Folha (10), o atendimento de crianças e adolescentes por transtorno de ansiedade no SUS superou o de adultos em 2022 e 2023. Também houve um aumento nos casos de suicídio entre jovens de 10 a 14 anos: entre 2000 e 2021, a alta foi de 221% entre meninas e de 170% entre meninos.

O psicólogo americano Jonathan Heidt, autor do livro A geração ansiosa, é um dos principais defensores da ideia de que o uso disseminado de smartphones é responsável pela crise de saúde mental entre jovens. Ele defende que a substituição da “infância baseada no brincar” pela “infância baseada no celular” está causando danos psicológicos em massa.

Segundo Heidt, os smartphones não afetam meninas e meninos da mesma forma. Pré-adolescentes e adolescentes do sexo feminino são mais suscetíveis aos danos causados pelo uso intensivo de redes sociais. Já eles sofrem mais os potenciais efeitos negativos dos jogos online.

Ilustração, em estilo psicodélico, de uma adolescente se maquiando diante de um celular.
(Matheus Santa Cruz/Superinteressante)

Uma pesquisa realizada no Reino Unido acompanhou diversos aspectos da vida de 18 mil pessoas nascidas por volta do ano 2000. Para os meninos, usar redes sociais por até duas horas por dia não pareceu ter impacto nos níveis de depressão clinicamente significativa. Essa relação só começa a crescer ligeiramente a partir das duas horas de uso. Meninos com três a cinco horas de uso diário apresentaram risco 21% maior de sintomas depressivos (11).

Com as meninas foi diferente. A relação diretamente proporcional entre depressão e o tempo nas redes sociais está presente desde a hora zero. Meninas que passam mais de cinco horas por dia nas redes têm 50% mais chances de apresentar sintomas depressivos em comparação às que navegam por até três horas – e três vezes mais em comparação àquelas que não têm redes sociais.

Segundo o questionário aplicado no estudo, o maior tempo nas redes sociais está relacionado a assédio online, baixa autoestima e insatisfação com o próprio corpo. O motivo para isso já é conhecido: as redes expõem as meninas a fotos de corpos e estilos de vida irreais.

Um outro estudo expôs 144 adolescentes mulheres a fotos reais ou manipuladas no Instagram. Num resultado não muito surpreendente, o grupo que teve acesso às fotos alteradas relatou menor satisfação com o próprio corpo (12).

Existem menos dados sobre o que está acontecendo com os meninos. Heidt argumenta que os jogos online e o acesso facilitado à pornografia podem afastar alguns garotos de experiências reais que são necessárias para o desenvolvimento pessoal e social. A internet como um todo (e não só os smartphones) se torna um refúgio para os meninos que têm mais dificuldade em lidar com responsabilidades e relações.

Uma análise de estudos internacionais mostrou que o chamado “transtorno de jogos online” (internet gaming disorder) é cinco vezes mais prevalente em meninos do que em meninas (13). Para ser considerado um transtorno, o comportamento deve apresentar um prejuízo significativo em diferentes áreas da vida – na escola, no sono, com a família e em outras relações, por exemplo.

Situações como essas podem ser fatores por trás do aumento da solidão relatada por ambos os gêneros no Brasil. No início do século, 91,4% das crianças brasileiras diziam fazer amigos com facilidade. Em 2022, esse número caiu para 69,6%. Já a porcentagem de crianças que diziam se sentir sós na escola saltou de 8,5% nos anos 2000 para 26,6% em 2022.

Diferentes estudos mostram uma correlação entre o maior tempo de tela e sintomas de ansiedade e depressão, assim como menor autocontrole e maior distraibilidade (14). Parece uma associação óbvia, mas alguns autores pontuam que o debate não está encerrado (15). A questão é um problema do ovo e da galinha: as horas no celular estão causando esses sintomas, ou pessoas que já sofrem com eles passam mais horas no celular? Ainda não há consenso científico.

É provável que mais de um motivo esteja por trás da crise de saúde mental em jovens – preocupação com mudanças climáticas, instabilidade econômica, sequelas da pandemia… a lista é longa. Também é possível que a nova geração esteja mais consciente dos seus sentimentos, ou que os casos de autolesão sejam mais notificados.

Mas a psiquiatra Anne Brito, especialista em infância e adolescência, acredita que, independentemente desses fatores, o celular tem um papel central na epidemia de saúde mental. “Nós já temos uma bagagem de estudos suficiente para entender que existem malefícios trazidos por essa tecnologia.” Essa é uma visão compartilhada entre os especialistas ouvidos pela Super.

“Um problema parecido foi o que aconteceu com a associação entre tabagismo e câncer. No início os estudos não traçavam uma relação causal entre os dois, mas era óbvio. Existiam os mecanismos para isso”, diz Sabine Pompeia. “A gente pode usar esse paralelo com o celular. Sabemos que faz mal para um adolescente não socializar ao vivo e ficar com a atenção fragmentada.”

Um outro problema é que o uso de smart- phones pode estar prejudicando o próprio diagnóstico de doenças e transtornos mentais. “Em alguns casos a gente pode se perguntar se a pessoa tem Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH) ou se ela teve o desenvolvimento alterado pelo uso de smartphones”, diz Brito, que atende crianças e adolescentes no consultório. “Se a gente fala de uma criança que cresceu com o uso de telas, invariavelmente vai haver comprometimento de atenção.”

Ilustração, em estilo psicodélico, de uma cmenina usando celular. Ao fundo diversas referências de redes sociais.
Meninas que passam mais de 5 horas por dia nas redes têm 50% mais chances de ter sintomas depressivos em comparação às que têm 3 horas de uso. (Matheus Santa Cruz/Superinteressante)

Tirar ou não tirar, eis a questão

A solução, então, seria proibir o uso de smart-phones para crianças e adolescentes? Qualquer pai sabe que essa tarefa beira o impossível. Além das estratégias que as big techs usam para reter a atenção das pessoas, a presença massiva dos jovens na internet faz com que ela seja um ambiente de socialização importante, com suas próprias regras a serem aprendidas.

“Uma das coisas mais difíceis de aprender é a socialização, entender o limite das pessoas e como lidar com o outro”, diz Pompeia. “Essa geração tem que aprender a socializar em dois ambientes diferentes, porque as regras sociais em pessoa são diferentes das regras sociais nas redes.”

E não adianta sonhar com um futuro sem celulares ou socialização online. A maioria das pessoas concorda que os smartphones trouxeram benefícios e facilidades para a vida (16), então não devemos nos livrar deles tão cedo. Para serem adultos funcionais no futuro, os adolescentes de hoje deverão aprender a socializar tanto online quanto em pessoa. “É bom que pelo menos isso esteja separado: em casa ela pode aprender a se relacionar online, mas na escola ela pode aprender em pessoa”, diz a pesquisadora.

Mas tudo tem a hora certa. A Associação Americana de Pediatria recomenda que bebês de até dois anos não tenham acesso a telas. Crianças de dois a cinco anos podem assistir até uma hora de conteúdo apropriado para essa faixa etária por dia. A partir daí, a maneira como eles usam a tela importa mais: uma hora vendo vídeos curtos sem supervisão no TikTok é bem diferente de uma hora jogando games criativos ou assistindo a um filme com os pais.

A maioria dos estudos aponta problemas claros no uso em excesso (é evidente que ter acesso ilimitado ao celular na primeira infância ou passar cinco horas nas redes sociais diariamente faz mal). Mas nem todos os jovens usam o aparelho dessa forma. Não há problema em conversar com amigos que estão longe ou descobrir novos interesses pelo celular. Basta equilibrá-lo com outras formas de lazer e atividade.

Para Helena, a vestibulanda do início do texto, o uso consciente só veio com a maturidade.  “Teve uma época que eu fiquei viciada, passava horas e horas no celular. Foi tão gradual que eu não vi o quanto estava me afetando”, diz ela. “Percebendo o quanto fazia mal, eu comecei a deixar o celular em outro cômodo, desligar ou deixar longe de mim para diminuir minha dificuldade nos estudos.”

O celular só passou a ajudar quando o vestibular foi se aproximando. “No primeiro e segundo ano do ensino médio eu só usava redes sociais […] Conforme avancei para o terceiro e o cursinho, o celular foi imprescindível para tirar dúvidas rápidas e pesquisar conceitos. Mas demorou um bom tempo para passar a barreira de atrapalhar e começar a ajudar.” Deu certo: em 2025, Helena começa seu primeiro ano no curso de medicina.

Infográfico, em fundo verde, sobre a utilização de celulares em sala de aula em diversos países do mundo.
(Arte/Superinteressante)

Para quem ainda não sentiu o vestibular batendo à porta, pode ser fácil cair no uso problemático – e aí entra a restrição dos pais. Da mesma forma que uma criança não pode comer o que quer o tempo todo, ela também não deve ter acesso ao dispositivo o tempo todo.

Um exemplo é na hora de dormir: crianças e adolescentes são mais sensíveis à produção de melatonina, um hormônio que regula nosso relógio biológico. A exposição à luz, seja do Sol ou da tela do celular, inibe a produção desse hormônio, avisando que devemos ficar acordados. Usar o smartphone na cama, então, piora a qualidade do sono. Um estudo feito na Suíça pediu que adolescentes parassem de usar o celular às 21h, antes de dormir. Após a intervenção, os participantes relataram maior estado de vigília no dia seguinte.

A escola, naturalmente, também não é o espaço ideal para o celular. A lei que passa a valer em 2025 pode ser o caminho para uma mudança coletiva, mas a implementação e a  fiscalização da regra devem variar de acordo com o colégio. O impacto que isso terá no aprendizado, no desenvolvimento e na socialização dos jovens são cenas dos próximos capítulos.

A restrição não será novidade para alguns estudantes. A cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, proíbe celulares nas escolas desde agosto de 2023. No geral, diretores de escolas que implementaram a proibição antes da lei de 2025 relatam resultados positivos (17), como menos interrupções nas aulas e mais conversas no recreio. Essa percepção poderá ser confirmada ou refutada por estudos futuros que avaliem o impacto da intervenção nos alunos.

Um estudo conduzido no Reino Unido (18), por exemplo, comparou escolas mais e menos permissivas em relação aos celulares – mas não encontrou diferenças significativas no bem-estar dos alunos ou no uso problemático de smartphones. A pesquisa, no entanto, foi feita em um país com condições socioeconômicas bastante distintas das nossas. Seus resultados poderão ser observados aqui ou não.

A questão é que há muito a ganhar e pouco a perder com a restrição dos celulares nas escolas. Curiosamente, alguns dos principais críticos à lei são os próprios pais, que se preocupam em manter contato e cuidar constantemente dos filhos. A esse grupo, vale lembrar que permitir a independência de crianças e adolescentes também é importante para seu crescimento – e não deixa de ser uma forma de cuidado.

Referências: (1) The Facebook Files; (2) artigo “Brain Drain: The Mere Presence of One’s Own Smartphone Reduces Available Cognitive Capacity”; (3) artigo “Constant Companion: A Week in the Life of a Young Person’s Smartphone Use”; (4) artigo “Costs of a predictable switch between simple cognitive tasks”; (5) artigo “The effect of short-form video addiction on undergraduates’ academic procrastination: a moderated mediation model” e artigo “Viewing personalized video clips recommended by TikTok activates default mode network and ventral tegmental area”; (6) artigo “A 4-Year Exercise Program in Children Increases Bone Mass Without Increasing Fracture Risk”; (7) texto ​​“Why kids need to take more risks: science reveals the benefits of wild, free play”; (8) artigo “Use of screens, books and adults’ interactions on toddler’s language and motor skills: A cross-cultural study among 19 Latin American countries from different SES”; (9) artigo “Increased Time Outdoors Is Followed by Reversal of the Long-Term Trend to Reduced Visual Acuity in Taiwan Primary School Students”; (10) reportagem “Registros de ansiedade entre crianças e jovens superam os de adultos pela 1ª vez no Brasil”; (11) artigo “Social Media Use and Adolescent Mental Health: Findings From the UK Millennium Cohort Study”; (12) artigo “Picture Perfect: The Direct Effect of Manipulated Instagram Photos on Body Image in Adolescent Girls”; (13) artigo “Internet gaming disorder in children and adolescents: a systematic review”; (14) artigo “Associations between screen time and lower psychological well-being among children and adolescents: Evidence from a population-based study”; (15) texto “The great rewiring: is social media really behind an epidemic of teenage mental illness?”; (16) “Majorities say mobile phones are good for society, even amid concerns about their impact on children”; (17) reportagem “Saiba como redes de ensino que proíbem celulares aplicam as regras”; (18) artigo “School phone policies and their association with mental wellbeing, phone use, and social media use (SMART Schools): a cross-sectional observational study

*O nome foi alterado à pedido da entrevistada

A geração ansiosa: Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais

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Fonte: abril

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