Um clássico das aulas de química é o conceito de quiralidade. Para quem dormiu na aula, vai o resumo: muitas moléculas têm duas versões espelhadas, chamadas de “destra” e “canhota” (em referência às nossas mãos e pés, que exibem a mesma propriedade).
Elas são representadas pelas letras S e R, oriundas das palavras latinas para destro e canhoto: rectus e sinistrus. Ao longo da Antiguidade e da Idade Média, havia preconceitos e superstições contra canhotos — motivo pelo qual a palavra “sinistro” chegou com conotação negativa no português contemporâneo.
Dá só uma olhada:
Embora pessoas canhotas evidentemente não tenham qualquer diferença em relação às destras, as moléculas têm. Vide o caso trágico da talidomida, que aparece em todos os livros-texto universitários de química.
Esse fármaco contra náusea era receitado a mulheres grávidas na Europa dos anos 1950. O problema é que sua forma espelhada (o nome técnico é enntiômero) causava problemas congênitos gravíssimos nos bebês, e os comprimidos continham tanto a forma S como a R. Resultado: 12 mil bebês nasceram com deficiências variadas.
A maior parte das moléculas que compõem seu corpo são quirais. E, assim como no caso da talidomida, as diferenças entre as formas R e S importam. O DNA, por exemplo, é destro. Já as proteínas são canhotas.
Até onde sabemos, isso é fruto do acaso – se o ancestral comum dos seres vivos atuais armazenasse informação em uma molécula canhota, todos nós seríamos assim (e sabemos que, em certas circunstâncias, bactérias são capazes de fabricar DNA invertido — vide este artigo).
Acontece que esse acaso se fixou. É um problema de padronização: se você comesse um bife com proteínas canhotas, seu corpo não conseguiria aproveitar os aminoácidos. As espécies precisam de compatibilidade química entre si para as cadeias alimentares funcionarem. É o que se chama de homoquiralidade (o prefixo grego homos significa “mesmo”).
Recentemente, alguns biólogos começaram a investigar a possibilidade de criar, em laboratório, biomoléculas ou até bactérias inteiras que funcionem ao contrário, com DNA canhoto e proteínas destras. Isso ainda não é possível com a tecnologia atual (sequer conseguimos sintetizar células com a quiralidade comum), mas trata-se de um plano factível para as próximas décadas.
Esse trabalho tem possíveis aplicações práticas. Por exemplo: se você precisa fazer um fármaco que resista à degradação dentro do paciente, construi-lo usando uma proteína destra é uma boa estratégia, porque nossos corpos não têm a infraestrutura bioquímica necessária para lidar com elas. É como tentar calçar uma luva de mão esquerda com a mão direita.
Isso significa, é claro, que uma bactéria do mundo invertido seria um desafio para o sistema imunológico dos seres vivos comuns. Já existem experimentos mostrando, por exemplo, que nossas células de defesa não conseguem cortar pedacinhos de proteínas (os peptídeos) invertidas para apresentá-las aos linfócitos, que então fabricariam anticorpos sob medida para combatê-las.
Por isso, um grupo de 32 cientistas de 9 países publicou recentemente na Science um manifesto que pede a proibição preventiva dessas pesquisas para evitar uma pandemia devastadora ou a invasão de ecossistemas por uma bactéria espelhada bem-sucedida.
“Em virtude de sua quiralidade invertida, as bactérias espelho podem escapar de muitas formas de predação e interferência microbiana”, escrevem os autores.
“Eles seriam intrinsecamente resistentes à infecção por bacteriófagos de quiralidade natural, podem ser resistentes ao consumo por muitos predadores e podem ser resistentes à maioria dos antibióticos produzidos por competidores microbianos.”
Em sua coluna no jornal O Globo, a microbiologista brasileira Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), explica que, embora seja justo apontar o risco dessas pesquisas, é importante não exagerá-lo – tanto pelo perigo de gerar pânico na opinião pública quanto pela possibilidade de interromper investigações que podem ter desfechos benéficos, como novos medicamentos.
“Supondo que o organismo espelhado seja construído, ele estaria em um laboratório de segurança máxima. O segundo passo para o desastre seria ele escapar. Considerando que isso também aconteça, a bactéria-espelho teria de sobreviver em um ambiente em que os nutrientes são inadequados, porque, do ponto de vista dela, tudo está invertido.”
Ou seja: por hora, não há qualquer motivo para temer. Essa cruza de Last of Us com Alice através do espelho ainda é um futuro realtivamente distante — e altamente improvável.
Fonte: abril