A TCL é uma fabricante de televisores chinesa que começou a se aventurar no mercado dos streamings em 2015 (não confundir com o TLC, um canal de TV a cabo). O TCLtv+ é gratuito e vem embutido nos televisores da marca. Não é pouca coisa: em 2022 e 2023, a empresa foi a segunda maior fabricante de televisores por participação de mercado, só atrás da Samsung.
Sem uma tradição com diretores e atores renomados, a TCL está liderando a produção de filmes feitos por inteligência artificial (IA). Pois é: no início do ano, a empresa anunciou o lançamento de seu primeiro filme de romance com IA generativa, o Next Stop Paris. O roteiro e a dublagem foram feitos por humanos, enquanto as imagens ficaram a cargo do robô.
O filme narra a história de uma jovem que foi deixada por seu noivo no altar e resolve ir, sozinha, curtir a lua de mel em Paris. A bordo de um trem, ela conhece um homem lindo e misterioso e a história de amor dos dois floresce conforme eles exploram juntos a cidade das luzes.
O trailer é bem o que você imaginaria: as imagens tem um estilo característico, com contornos borrados, rostos sem expressão, fisionomias que mudam ao longo do filme, personagens com movimentações irreais, símbolos sem sentido e erros de continuidade.
A recepção do trailer nas redes sociais foi tão negativa que o lançamento do filme completo, que havia sido anunciado para o meio do ano, ainda não se concretizou. Os produtores disseram ao site 404 Media que a divulgação do trailer foi precipitada e que ainda havia muito a ser feito.
A TCL, porém, não desistiu da empreitada. Na semana passada, a empresa lançou cinco curta-metragens oriundos de um programa acelerador de produções cinematográficas com IA. Os filmes estão disponíveis gratuitamente no YouTube e na plataforma da TCLtv+, e são um pouco melhores tecnicamente do que o Next Stop Paris.
Mesmo assim, a aparência dos personagens ainda muda de cena em cena. As vozes são desconectadas dos movimentos labiais, e por isso alguns diálogos são apresentados com a câmera apontando para a parte de trás da cabeça dos personagens.
A movimentação corporal continua meio surreal, e as cenas foram gravadas mais “de perto”, para evitar a inclusão de muitos elementos que poderiam atrapalhar a continuidade. De qualquer forma, é um avanço técnico impressionante em relação às imagens produzidas pelas IAs generativas há alguns anos, que mal conseguiam produzir coerentemente a imagem de uma mão com o número certo de dedos.
O filme abaixo, Sun Day, conta a história de uma garota que vive em um planeta em que só chove, e é sorteada para visitar o Sol. Mesmo com a melhora técnica, a personagem ainda ganha um sexto dedo depois de 1min50s de exibição; aos 4min11s, perde todos os dedos de uma só vez. Confira:
Os produtores da TCL minimizam os defeitos dos projetos, e afirmam que existem tantos erros de continuidade quanto em filmes tradicionais. A produção de conteúdo original barato é uma estratégia para encher a programação dos canais das televisões TCL e do streaming TCLtv+ e, assim, lucrar em cima da publicidade.
Segundo a 404 Media, na cerimônia de lançamento dos curtas, Catherine Zhang, vice-presidente de serviços de conteúdo e parcerias da TCL, explicou ao público que a estratégia de streaming da empresa é “oferecer uma experiência de assistir a filmes de forma compulsiva”, na qual o conteúdo é passivamente absorvido pelas pessoas que o assistem.
O filme The Slug (“A Lesma”, em tradução literal) narra a metamorfose de uma mulher em, bem, uma lesma. Talvez para evitar a dessincronia das dublagens com a animação, o filme não tem diálogos, apenas narrações em off. A personagem tem expressões faciais mais elaboradas em comparação com os curtas anteriores, mas a produção não consegue se livrar do aspecto perturbador das imagens. Assista se quiser experimentar a sensação de passar cinco minutos e meio dentro de um daqueles posts surreais que tomaram conta do Facebook, em que nada faz sentido e tudo é igualmente emocionante e feio.
No mesmo evento, Haohong Wang, gerente geral da TCL Research America, apresentou um slide que sugeria que os “originais premium gratuitos” gerados por IA seriam uma “nova era” do cinema. “Os dados nos disseram que nossos usuários não querem se esforçar tanto”, disse Zhang. “Metade deles nem sequer muda de canal.”
Talvez Wang tenha razão: é o início de uma nova era do cinema. Mais personalizável, de menor qualidade, sem a paixão típica das produções artísticas humanas. Os filmes enquanto entretenimento vazio, feitos só para vender publicidade nas cenas, nas plataformas e nos intervalos. Para os produtores, conforme a tecnologia generativa avançar, o negócio deve ficar cada vez mais lucrativo. Para os espectadores, não dá para ter tanta certeza.
Fonte: abril