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Ciência & Saúde

Nicolas Steno: O precursor de Darwin reconhecido pelo Papa João Paulo II

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William Buckland, de Cambridge, amava fósseis. Certa madrugada, acordou sua esposa, exasperado. Percebeu que as pegadas de um réptil extinto chamado Cheiroterium eram como as das tartarugas de hoje.

O mais peculiar é que a cônjuge entendeu sua consternação: juntos, foram a cozinha, espalharam uma gororoba de farinha úmida sobre a mesa e colocaram a tartaruga de estimação do casal para andar sobre ela. Bingo: as pegadas eram, de fato, parecidas.

Buckland, infelizmente, não fazia a menor ideia de que o Cheiroterium tinha 234 milhões de anos. E era consciente de sua ignorância. Certa vez, descreveu com deboche a idade de um Ictiossauro: viveu entre “10 mil e mais de 10 mil vezes 10 mil anos atrás”.

Essa aproximação, de fato, era o melhor que ele podia fazer. Buckland nasceu em 1784. Na época, era impossível estimar a idade correta das rochas – e de quaisquer itens extraídos delas.

Métodos como a datação por isótopos radioativos estavam a séculos de distância, e um arcebispo irlandês dizia, com base na Bíblia, que o mundo fora criado em 23 de outubro de 4004 a.C. (ele era levado razoavelmente a sério). 

Em 1676, o reverendo Robert Plot, curador do museu Ashmolean, em Oxford, encontrou um fêmur grande – realmente grande –, e pensou tratar-se de um fragmento da perna de um humano gigante mitológico. Era um palpite bastante razoável. Mesmo unicórnios eram tema de indagação científica séria em 1676.

Infelizmente, o osso em si desapareceu; restam apenas ilustrações. Quase 150 anos depois, em 1824, Buckland, o da tartaruga, coletou outros ossos, pertencentes a indivíduos da mesma espécie do suposto gigante. Dessa vez, os identificou corretamente como pertencentes a um réptil pré-histórico extinto, que batizou de Megalosaurus.

Essa foi a primeira descrição científica de um dinossauro. Não fosse um ricaço excêntrico que coletava rochas de beca universitária e fazia experimentos com tartarugas na alta madrugada, não haveria Jurassic Park. 

A palavra “dinossauro”, diga-se, só seria cunhada depois, em 1842, quando outro célebre naturalista inglês, Richard Owen, bateu a descrição do Megalosaurus com as de duas outras ossadas recém-descobertas: o Iguanodon e o Hylaeosaurus.

As semelhanças anatômicas entre as três espécies apontavam para a existência de um grupo coeso de répteis extintos, que Owen batizou de “lagartos terríveis” – em grego, deinos (terrível) e sauros (lagarto). Quando e por quê eles haviam sido extintos, era difícil dizer. Nem a Bíblia nem qualquer outro livro sagrado davam conta de explicá-los. 

A descoberta e identificação adequada dos primeiros fósseis (não só de dinossauros, é claro) vieram na rabeira do trabalho de pioneiros como o dinamarquês Niels Stensen – mais conhecido pelo nome latinizado Nicolas Steno.

Em 1666, mais ou menos na época em que o reverendo Plot atribuiu o fêmur do Megalosaurus a algum personagem das viagens de Gulliver, Steno recebeu em seu gabinete em Florença, na Itália, uma cabeça de tubarão para dissecar.

Percebeu que os dentes do animal se pareciam muito com pedacinhos de pedra pontudos de aparência peculiar chamados glossopetrae – cuja origem, até então, era um mistério científico (e que Plínio, naturalista romano, afirmava serem fragmentos da Lua). 

As tais glossopetrae pareciam tanto com dentes, de fato, que só podiam mesmo ser dentes. O que levou Steno à próxima pergunta: como dentes de tubarão, que são sólidos, foram parar no interior de rochas… que também são sólidas?

Não só os dentes, é claro. Havia uma porção de outras coisas encravadas em rochas. Rochas, na verdade, se constituem de um ou mais minerais, encravados uns nos outros de maneiras difíceis de explicar. 

Steno matou a charada: percebeu que rochas surgem graças ao acúmulo e compactação de sedimentos sobre outras rochas. Isso acontecia dentro da água, no leito dos rios e mares, por meio de um processo de decantação parecido com o do Nescau que não mistura no leite e se acumula no fundo do copo. Depois que o achocolatado endurece e a água some, voilà! Temos rocha. 

Fósseis são simplesmente ossos e dentes que dão a sorte de fazer parte do sedimento. Em suas palavras: “quando o estrato de rocha inferior estava sendo formado, nenhum dos estratos superiores existia”. Hoje soa óbvio; na época, não era. Se coisas mais antigas ficam, via de regra, mais fundo, então o chão está organizado em ordem cronológica. Havia uma janela para o passado, e nós estávamos pisando nela o tempo todo. 

Irônico é que depois, em 1671, Steno descobriu que amava mesmo era Deus. Chega de rocha. E chega, principalmente, de Lutero. Largou a fé protestante, que predominava na época no norte da Europa, e se converteu ao catolicismo. Como era bom em tudo que fazia, em um piscar de olhos foi promovido a bispo. Batia de porta em porta convertendo fiéis. Foi tanta dedicação que, em 1988, Steno foi beatificado pelo Papa João Paulo II. 

A deserção não importa: ele e outros pioneiros deixaram um legado. Em 1807 foi fundada, em Londres, a Sociedade Geológica. Em 1830, ela estava no auge: foi a primeira (e talvez a última) vez que 745 cidadãos endinheirados se juntaram para estudar pedras em vez de beber uísque caro, jogar golfe, ou fazer qualquer outra coisa que não contribui em nada para a humanidade.

O interesse deles nas pedras não era explorá-las economicamente: só fazer ciência. A geologia foi inexplicavelmente popular e levada muito a sério. Pouco a pouco, em uma história que por si só renderia um livro, o registro estratigráfico foi organizado.

Ninguém sabia a idade exata de cada rocha, mas todo mundo discutia a idade relativa, porque as rochas vinham sempre empilhadas: as mais antigas embaixo, as mais novas em cima. Pela primeira vez os cientistas vislumbravam o planeta pelo que ele realmente era: antigo, mais antigo do que era possível imaginar. Sem esse vislumbre, o trabalho de Darwin seria impossível. 

Neste ponto, havia duas posturas filosóficas em xeque. Uma era o essencialismo. Como quase tudo, o essencialismo tem origem em gregos velhos: Platão e os pitagóricos. Deles veio a ideia de que qualquer triângulo desenhado por nós era apenas uma representação imperfeita de uma ideia de triângulo. De um triângulo perfeito e abstrato que tomava chá com quadrados e círculos perfeitos e abstratos em algum paraíso inacessível.

O essencialismo foi central para o pensamento da Igreja Católica sobre os seres vivos, que predominou por toda a Idade Média. Não que você fosse ver um camponês paupérrimo, em uma conversa de bar, se declarar um essencialista convicto. Isso não acontecia. É mais correto entender o essencialismo como um jeito de ver as coisas. Uma visão de mundo.

Por exemplo: há uma jaula com dez coelhos, são todos ligeiramente diferentes entre si. Um é marrom; outro tem olhos azuis; outro é mais peludo. Essas diferenças, porém, seriam encaradas como imperfeições decorrentes da representação terrena do coelho ideal – inacessível a nós, assim como o triângulo, o quadrado e o círculo ideais.

O essencialismo, é claro, se encaixava perfeitamente com a ideia de que os seres vivos eram obra do Criador: havia um coelho criado por Deus; os demais existiam em função do original. De acordo com o teólogo William Paley: se encontramos um relógio no chão, inferimos que algum artífice inteligente o produziu; se encontramos animais e plantas com estrutura intrincada, deveríamos inferir que algum criador sábio e poderoso os criou.

Além do essencialismo, havia o finalismo: a ideia de que as espécies têm uma propensão natural a, partindo de um estado inferior, atingir um estado superior. A natureza seria um caminho inevitável da simplicidade para a complexidade. E a complexidade máxima, naturalmente, seria representada pelo ser humano.

O finalismo não era, necessariamente, uma ideia religiosa: um embrião no útero da mãe, por exemplo, segue um caminho pré-definido de um estado mais simples (um óvulo fecundado microscópico) pra um estado mais complexo (um organismo multicelular).

Sabe-se hoje que ele é capaz disso graças às instruções armazenadas no genoma. Em uma época em que genoma era ficção científica, era razoável pensar que um chimpanzé sentisse um impulso incontrolável de se tornar humano. 

Logo, porém, que o essencialismo e o finalismo começassem a perder terreno. Em 1796, por exemplo, o francês George Cuvier descobriu dos bichos de tromba particularmente felpudos: mamutes e mastodontes. Eles eram tipo elefantes, mas não eram bem elefantes. Seria mais correto descrevê-los como primos dos elefantes.

Mas será que eram variações de um elefante ideal? Ou será que o Criador teria se dado o trabalho de criar três versões ligeiramente diferentes do elefante? Pior ainda: por que mamutes e mastodontes haviam sido extintos, e os elefantes não? Dureza. 

O próprio avô paterno de Darwin – chamado Erasmus – publicou em 1794 um tratado médico intitulado Zoonomia; ou as leis da vida orgânica, que contém o seguinte trecho:

“Meditando assim sobre a grande similaridade na estrutura dos animais de sangue quente (…) Seria muito ousado imaginar, que ao longo de um grande período do tempo, desde que a Terra começou a existir, talvez milhões de anos, que todos os animais de sangue quente tenham surgido de um só filamento vivo, ao qual A GRANDE CAUSA PRIMEIRA concedeu a animalidade… E assim possuindo a faculdade de continuar a melhorar por sua própria atividade inerente, e passando essas melhorias de geração em geração para posteridade.” 

Em outro front, o geólogo Charles Lyell – ídolo da ciência vitoriana e amigo fiel de Darwin – propunha um mundo em transformação lenta, mas inevitável. Nessa visão, todos os processos geológicos em ação hoje já estavam em ação no passado.

Para explicar o porquê de uma montanha ser assim ou assado, não era preciso apelar para dilúvios repentinos e outras tragédias épicas que se encaixavam na narrativa bíblica: Lyell propôs um planeta idoso e vítima do tédio, em que fenômenos lentos e familiares como a erosão moldavam o relevo sem transformar tudo em um filme-catástrofe do Michael Bay. 

Lyell não abordou seres vivos em seus escritos, e se opôs a Darwin filosoficamente. Sua obra, porém, foi um passo importante em direção um mundo em que animais e plantas, assim como rochas, podem ser moldados de pouquinho em pouquinho.

Uma mudança na cor do pelo ou dos olhos de um coelho de verdade não são desvios irrelevantes de um coelho ideal. Pelo contrário: essas variações pequenas, acumuladas, podem transformar o coelho em outra coisa. Da mesma maneira que um fenômeno como a erosão molda o relevo um grão de areia de cada vez. Não há essências; tudo está em gradual transformação.

Fonte: abril

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