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Fiz todas as recomendações que encontrei em livros e pela internet: desliguei as notificações do celular, tentei focar ao máximo no que estou fazendo e minimizei qualquer possibilidade de distração que me tirasse do momento presente. Para escrever este texto, me propus a entrar em um estado mental de intensa concentração, conhecido pela psicologia como flow, ou estado de fluxo.
Essa é a situação que combina a alta performance em determinada tarefa com o baixo esforço para realizá-la. Quando o cérebro assume esse modus operandi, o indivíduo não vê mais o tempo passar, fica imerso na atividade, não se preocupa com autocríticas nem pensa em qualquer outra coisa. A tarefa que desencadeia o flow se torna recompensadora e prazerosa por si só.
É bem provável que você já tenha experimentado o flow em algum momento da vida – seja praticando um esporte, tocando um instrumento ou mesmo jogando videogame. O estado de fluxo aparece no filme Soul, da Pixar: ali, as “almas” das pessoas que entram em flow são transportadas para uma outra dimensão, onde ficam inteiramente absortas naquilo que estão fazendo. No mundo real, as pessoas costumam se referir a esse lugar mental como “a zona” (the zone, em inglês, o idioma original do termo).
Para entrar nessa zona invejável, o desafio da tarefa em questão não pode ser maior que a habilidade do indivíduo – isso só geraria ansiedade e frustração por não conseguir realizá-la. Mas também não pode ser menor, o que deixaria a pessoa entediada. O equilíbrio entre desafio e habilidade é o segredo para atingir o estado de fluxo.
Alguns autores já tentaram traduzir o fenômeno em palavras, bem antes de a psicologia catalogá-lo. O alemão Nietzsche apelidou a coisa de estado de Rausch – “intoxicação”. Na filosofia taoísta, a sensação está relacionada ao Wu Wei, o princípio da “ação sem esforço”. Já quem sistematizou as características do flow como as conhecemos foi o croata Mihaly Csikszentmihalyi, na década de 1970.
Esse psicólogo (cuja pronúncia do sobrenome é “cíkzen-mihalí”) identificou o estado de fluxo enquanto fazia pesquisas sobre criatividade. Após conversar com músicos, atletas, gestores e trabalhadores de fábrica, ele notou que muitos usavam a palavra “fluida” para descrever a sensação, como se agissem guiados por um fluxo. Daí o nome.
Já entrei em flow enquanto escrevia diversos textos: é como se as palavras fluíssem para a página, como foi descrito pelos entrevistados de Csikszentmihalyi. Mas, justamente neste texto sobre flow, pareço estar tendo alguma dificuldade. E não é à toa. Uma das “regras” do estado de fluxo é que ele não funciona sob demanda. Não surge quando você quer, mas espontaneamente – e, em geral, você só percebe o que aconteceu quando sai dele.
Foi a partir de entrevistas e questionários que Csikszentmihalyi descobriu a universalidade do flow. Agora, técnicas de neuroimagem começam a desvendar o que ocorre no cérebro durante esse estado.
O esforço sem esforço
Os cérebros de outras espécies de mamíferos são proporcionalmente menores quando comparados ao nosso. Isso é explicado, em parte, por uma região chamada córtex pré-frontal, que é mais desenvolvida nos humanos. Ela é a responsável pelo raciocínio lógico, pelo planejamento.
Não seria absurdo pensar que os momentos de alto desempenho – seja escrever um livro, pintar um quadro ou tocar um instrumento – exigem mais atividade dessa região do cérebro. Olhando de fora, temos a impressão de que cada palavra, pincelada ou nota musical foi pensada para se encaixar perfeitamente na obra.
Mas dentro do crânio do artista ocorre justamente o contrário. Estudos feitos com ressonância magnética funcional e fNIRS (métodos distintos que monitoram o fluxo de sangue pelo cérebro) (1) mostram uma redução da atividade do córtex pré-frontal durante o flow. Ou seja, Monet não decidia nem planejava onde iria cada cor de tinta – tudo funciona no modo automático.
Esse mesmo padrão cerebral está relacionado a atividades habituais, como escovar os dentes, tomar banho, trocar de roupa. São tarefas que exigem pouquíssimo esforço mental, mas que executamos muito bem. “A gente pode definir o flow como um estado de maior eficiência do hábito”, diz Dráulio de Araújo, professor do Instituto do Cérebro da UFRN que estuda estados alterados de consciência. “Não é simplesmente fazer automaticamente, mas fazer da forma mais adequada possível.”
A menor atividade do córtex pré-frontal também significa menos “filtros” sobre nossas ações. Quem está em flow não se preocupa com os julgamentos externos e internos – o que torna a expressão da atividade mais intensa.
Que o diga Ayrton Senna. Em 1988, ele descreveu perfeitamente um estado de fluxo. Na classificação para o GP de Mônaco daquele ano, Senna garantiu o primeiro lugar no grid com 1,4 segundo de vantagem sobre o companheiro de equipe, Alain Prost – um assombro; 0,4s já seria considerado muito. “Eu já não estava dirigindo de forma consciente. Me senti em outra dimensão. O circuito virou um túnel para mim, no qual eu só ia, ia, ia…”
Outra área da massa cinzenta que “desliga” durante o flow é o córtex cingulado anterior. Dentre outras funções, ele está relacionado ao direcionamento da atenção. Sabe aquele esforço para prestar atenção a uma aula ou uma reunião chata? Isso não rola no flow: quando você entra nesse estado, o foco ocorre de forma natural, como se não houvesse mais nada no mundo. Um enxadrista entrevistado por Csikszentmihalyi definiu bem: “O teto poderia cair, mas, contanto que não caísse na sua cabeça, você nem ia perceber”.
Flow – Guia prático: Como encontrar o foco ideal no trabalho e na vida
O flow guarda características semelhantes ao hiperfoco: um estado de concentração intensa, mais frequente em pessoas que fazem parte do espectro autista ou possuem transtorno de déficit de atenção. Mas, diferente de estar concentrado em ler um livro, o estado de fluxo exige a realização de uma tarefa ativa na qual você tenha alguma habilidade. Não coincidentemente, as regiões do cérebro mais atuantes durante o flow são aquelas associadas a funções motoras.
Durante esse estado mental também há picos de atividade em áreas relacionadas à recompensa (núcleo accumbens, por exemplo). A realização da tarefa promove descargas de neurotransmissores que causam prazer, como dopamina, serotonina, noradrenalina e endorfinas. Não é à toa que diferentes pesquisas (2) associam momentos de flow a maiores índices de bem-estar, autoestima e felicidade.
Para se sentir bem durante uma tarefa, você precisa saber que está indo bem nela. Receber um “feedback” imediato de você mesmo é outro ponto que facilita o flow: acertar as notas enquanto toca uma partitura, capturar peças do oponente durante uma partida de xadrez, fazer curvas fechadas de pé embaixo na classificação para o GP de Mônaco….
Como você viu no início do texto, não existe receita de bolo para entrar no estado de flow. Mas a boa notícia é que algumas pessoas aprenderam a manuseá-lo a seu favor – e dá para aprender com elas.
O segredo dos craques
Todo mundo pode sentir flow, mas é fato que atletas atingem esse estado com mais frequência. “Quando as habilidades de dois atletas de alta performance empatam, quem ganha hoje ou amanhã vai ser decidido nos detalhes”, diz Araújo. “E esses detalhes podem ser decididos pelo estado de flow. Ali é o limite da expressão de tudo que eles treinaram e aprenderam até o momento.”
Os desportistas levam isso a sério. O psicólogo do esporte George Mumford, considerado o mestre do flow, já trabalhou com os maiores craques da NBA. “Eles sabem o que é estar ‘na zona’ e o que é ‘estar em flow’. Quando eu falo sobre isso, eles são todos ouvidos”, disse em entrevista à ABC News (3). Michael Jordan e Kobe Bryant já atribuíram diversas vitórias ao treinamento que fizeram com Mumford.
O psicólogo aposta na meditação mindfulness como uma maneira de acessar o estado de fluxo mais facilmente. Ela nada mais é do que uma técnica de meditação focada no momento presente. Em vez de “transcender”, o principal intuito do praticante é colocar a mente no aqui e agora.
Essa também é uma das abordagens de Aline Wolff, psicóloga que acompanha atletas de alta performance, incluindo a ginasta Rebeca Andrade. Ela ressalta que certas práticas antes da competição geralmente facilitam a sintonização nesse estado mental. “Se um atleta tiver um monitoramento de metas, uma boa rotina pré-competição e praticar mindfulness se possível todos os dias, ele terá uma tendência maior a entrar no estado de flow.”
Não é necessário ser uma lenda do basquete ou uma medalhista olímpica para seguir passos como estabelecer objetivos claros, adotar uma rotina e meditar. Se as suas habilidades não lhe permitem entrar em flow dando um mortal para trás, talvez você sinta o mesmo prazer no seu emprego.
O livro Flow: a Psicologia do Alto Desempenho e da Felicidade dá exemplos de cirurgiões, açougueiros e operários que relatam atingir esse estado durante o trabalho. Um soldador, por exemplo, contou que consegue ter momentos de flow na fábrica ao estabelecer pequenos recordes de tempo, que tenta bater todos os dias.
Atividades ligadas à gestão podem oferecer mais desses momentos. Uma pesquisa (4) buscou avaliar esse tema oferecendo um pager a 78 profissionais de diferentes áreas. O aparelho apitava em horários aleatórios ao longo do dia: sempre que ouvisse o bipe, o usuário deveria relatar se estava em estado de fluxo ou não. 64% dos trabalhadores na posição de gerência relataram o flow em algum momento do trabalho, em comparação com 51% dos funcionários de escritório e 47% dos operários.
Embora exista alguma diferença na porcentagem de flow em cada ocupação, podemos concordar que ela não é tão grande. Desde que os pré-requisitos sejam cumpridos (metas claras e desafio equilibrado com a habilidade), qualquer ofício pode desencadear o estado de fluxo e, consequentemente, gerar prazer.
Por outro lado, os participantes do estudo relataram baixas taxas de flow durante os momentos de lazer (cerca de 16%). Isso porque estamos acostumados a realizar atividades passivas no tempo livre – e você não vai entrar em fluxo enquanto assiste TV ou vê vídeos no TikTok.
Mas há uma atividade comum de lazer capaz de gerar enxurradas de flow – jogar videogame. Pensa só: eles proporcionam uma experiência de imersão; estabelecem metas claras; oferecem um feedback imediato de sua performance (você sabe se está indo bem ou mal); e, principalmente, regulam o desafio de acordo com as habilidades do jogador (por meio de níveis).
Os videogames se encaixam tão bem no conceito que passaram a ser usados para desencadear o estado de fluxo em participantes de pesquisas sobre o tema (Tetris é uma das opções mais usadas). Isso também explica por que os games são tão viciantes, principalmente para adolescentes: os jovens podem ainda não ter descoberto outras atividades que geram flow. Obviamente, o ideal é transportar esse estado para tarefas produtivas. De outra forma, elas serão apenas fonte de tédio.
Em suma, o estado de fluxo é maneira mais intensa de viver o presente. Lembre-se de que o futuro é só uma criação do seu córtex pré-frontal; e que o passado são páginas viradas. O único tempo que existe de fato é o aqui e o agora. Mergulhe nele, e deixe o fluxo te levar.
Fontes: (1) Artigo Brain activity during flow: A systematic review; (2) Artigo Finding flow: exploring the potential for sustainable fulfillment; (3) Artigo Michael Jordan, Kobe Bryant’s Meditation Coach on How to Be ‘Flow Ready’ and Get in the Zone; (4) Artigo Optimal Experience in Work and Leisure
Fonte: abril