Não há dúvidas de que manter uma alimentação saudável é essencial para a saúde do corpo e da mente —além de prevenir doenças, uma dieta equilibrada melhora a qualidade de vida e a disposição. No entanto, quando a pessoa busca uma alimentação excessivamente saudável, isso pode sinalizar um transtorno alimentar.
Esse quadro, chamado de ortorexia nervosa, é caracterizado pela obsessão patológica por alimentos saudáveis. Mas ainda não foi reconhecido oficialmente como um transtorno alimentar pelo DSM 5 (o manual de diagnóstico de transtornos mentais feito pela APA, a Associação Americana de Psiquiatria).
Também não se encontra definida no manual de diagnósticos de Transtornos Alimentares da APA, nem no manual de diagnósticos da Organização Mundial da Saúde, o CID-10 (Classificação Internacional de Doenças). Ainda assim, é um problema cada vez mais comum.
Atinge normalmente adolescentes e adultos jovens, entre 16 e 25 anos, que ainda moram com os pais e vêm restringindo a alimentação, a vida social e o convívio familiar por acreditar que apenas determinado tipo de alimento faz bem para a saúde.
São pessoas que fazem uma mudança gradual de padrão alimentar, com um interesse que vai crescendo, se torna excessivo e, em algum momento, vira patológico. Pode ter relação também com a vigorexia.
“Enquanto na ortorexia o principal alvo da alimentação é a saúde física e a qualidade do alimento que se ingere, na vigorexia o principal alvo é o cuidado físico exclusivamente voltado para o tamanho do corpo. Claro que é ótimo fazer atividade física e se alimentar bem, mas quando isso se torna uma obsessão, é um problema”, alerta o psiquiatra Eduardo Aratangy, médico supervisor do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas da USP.
Origem antiga
Segundo Aratangy, a ortorexia é um “apelido” que foi dado para o transtorno alimentar restritivo evitativo, que é um tipo de seletividade alimentar descrito há décadas, especialmente em crianças diagnosticadas com transtorno do espectro autista.
“A principal descrição do transtorno restritivo evitativo era não tolerar determinados tipos de alimentos por causa das características físicas, como textura, cor, sabor. Isso poderia ocorrer de forma transitória em crianças ou se tornar uma repulsa constante”, explicou o psiquiatra.
Com o passar dos anos, o transtorno evitativo que antes era caracterizado pela seletividade alimentar em crianças começou a ganhar outros contornos, muitas vezes como consequência de padrões impostos pela sociedade e pelas mídias sociais: além da repulsa infantil, a restrição alimentar passou a ser utilizada por adolescentes, jovens e adultos que associam o alimento a alguma crença, como se determinada comida fizesse mal ou apenas algum tipo de refeição fizesse bem.
“A palavra ortho, em grego, quer dizer correto. Rexis quer dizer apetite. Então, ortorexia significa apetite correto. Os registros que a ortorexia seria algo possivelmente patológico vêm desde a década de 1990”, explicou Aratangy, frisando que algumas religiões possuem restrições alimentares e que nesses casos a restrição não é considerada patológica por estar inserido num contexto cultural, aceito socialmente, sem que isso traga prejuízos físicos ou psíquicos para as pessoas.
A partir da década de 1990, diz Aratangy, começaram a surgir os primeiros registros de pessoas com desnutrição e que não queriam ingerir os nutrientes necessários por causa da prática evitativa de alimentos.
Isso caminhou em paralelo com um fenômeno social de incentivo ao consumo de alimentos mais saudáveis, com maior produção de orgânicos, sem agrotóxicos e, depois, o movimento do veganismo.
“Note que nenhum desses dois movimentos é patológico. Mas quando várias crenças vão se somando, as pessoas começam a abolir e restringir cada vez mais alimentos da dieta e isso chega a um ponto que pode se tornar obsessivo. E isso vai acontecendo em ondas, em momentos diferentes. Já houve obsessão com glúten, com lactose, com detox, entre outros”, disse o psiquiatra.
Aratangy exemplifica:
- Pessoas que não usam talheres que já foram usados em alimentos que julgam inadequados, como se eles fossem contaminados;
- Pessoas que deixam de ter vida social porque só comem coisas que são quase impossíveis de encontrar em um restaurante ou em um evento;
- Pessoas que levam a própria comida em qualquer lugar, que só comem alimentos considerados ‘puros’ etc.
Vale ressaltar que qualquer patologia mental é uma exacerbação de preocupações normais. Se preocupar com a qualidade do alimento que você consome, com atividade física, é absolutamente normal. Mas se você exacerba isso, vai se tornar um problema e, futuramente, um transtorno patológico.
No Ambulatório de Transtornos Alimentares do IPq, por exemplo, é cada vez mais comum identificar esse tipo de transtorno entre adolescentes e adultos jovens.
“Muitos casos são relacionados com as dietas da moda e com questões vindas das redes sociais. Uma celebridade propõe beber água alcalina, todo mundo começa a beber água alcalina mesmo que isso não faça nenhum sentido fisiológico. Uma celebridade propõe suspender todo alimento derivado do leite e, aí, todo mundo começa a suspender derivados do leite. Isso vira um problema de saúde, pode se tornar uma desnutrição vitamínica, proteica e de minerais”, disse o especialista.
Como é feito o diagnóstico?
Normalmente, quem busca ajuda não é a pessoa com ortorexia e sim a família. Isso porque na maioria das vezes a pessoa com ortorexia concorda com aquele comportamento, que ela considera absolutamente normal e saudável. “Ela passa a se isolar, não sai mais, passa a maior parte do tempo se preocupando em restringir determinados alimentos. A pessoa perde a capacidade de convivência e isso é patológico.”
Para chegar ao diagnóstico correto, a primeira coisa é excluir outros transtornos psiquiátricos que possam levar àquele comportamento, entre eles:
- A esquizofrenia (paciente pode ter delírios de envenenamento e achar que aquele alimento vai envenená-lo);
- O transtorno obsessivo compulsivo (quando a comida inadequada é parte das crenças obsessivas);
- Quadros ansiosos e depressivos (como a fobia de engasgamento, que é um transtorno mais comum em idosos com medo de engolir e, por isso, abrem mão de uma série de alimentos).
Uma vez excluídas essas outras patologias e, se for confirmado que é um caso de transtorno alimentar restritivo evitativo, o tratamento segue três linhas:
- Desconstruir as crenças distorcidas sobre determinado alimento (e isso depende de ajuda do nutricionista e do terapeuta cognitivo comportamental);
- Ampliar o repertório alimentar e melhorar a qualidade nutricional da pessoa;
- Prevenir as alterações que esse comportamento trouxe, com tratamento médico antidepressivo para reduzir a angústia que a transição alimentar vai trazer.
O desafio para diagnosticar a ortorexia ainda é imenso. Afinal, é uma linha tênue separar o que é alimentação saudável do que é um comportamento patológico em torno do que a pessoa acredita que seja uma alimentação saudável, geralmente com base em relatos nas mídias sociais.
Ainda há poucos estudos sobre o tema e métodos terapêuticos disponíveis, além de poucos centros especializados nesse tipo de tratamento. Por isso, o enfoque deve ser sempre multidisciplinar, com apoio do psiquiatra, nutricionista e psicólogo.
Fonte: uol
Colunista: @chefcarlosmiranda