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Fúria popular, uma especialidade tão francesa, arrisca cabeça de Macron

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Em 22 de julho de 1789, o homem que havia sido recém-nomeado pelo rei para o posto equivalente a ministro das Finanças, num dos piores casos de falta de timing de toda a história dos cargos públicos, foi encontrado por uma multidão escondido na casa de um amigo, amarrado e levado a Paris, num trajeto terrível. Para suplicia-lo no dia muito quente, deram-lhe vinagre apimentado para beber e passaram urtiga no suor de seu rosto.

Joseph François Foullon acabou como uma das primeiras do infinito mar de vítimas da Revolução Francesa. Enforcado num poste em frente ao Hôtel de Ville, hoje a elegante sede da prefeitura de Paris, acabou decapitado porque a corda arrebentou. Ainda não existia a guilhotina. O povo saiu comemorando pela rua com sua cabeça espetada numa estaca e um maço de capim enfiado na boca. Os inimigos políticos de Foullon haviam espalhado que, diante da escassez de cereais, ele dissera uma frase pior ainda do que a de Maria Antonieta: “Se não tem trigo, o povo que coma feno”.

O genro do fugaz ministro, Bertier de Sauvigny, também foi decapitado e a malta gritava quando as duas cabeças na estaca se aproximavam: “Beija o papai”.

A fúria popular francesa acumulou vários capítulos de barbaridades sem fim. A atual explosão de protestos violentos, expressa o espírito animal que periodicamente se apossa dos franceses. Deputados cantando a Marselhesa na Assembleia Nacional, e até chorando, foram um exemplo da reação extrema que desencadeou ao, que lhe permite passar a reforma da aposentadoria sem precisar de votação dos parlamentares.

O recurso é antipático e até excessivo, mas está no livrinho e muitos outros presidentes, de direita e de esquerda, apelaram a ele. A mudança na aposentadoria também não é nenhum exagero: passa de 62 para 64 anos (os proventos integrais continuam nos 67 anos), uma mudança que começa a valer a partir de 2030.

Macron foi eleito duas vezes pregando a necessidade de reformas e não está fazendo nada que pegue a população de surpresa. Fez o contrário do que aconselhava o presidente argentino Carlos Menem. “Se eu dissesse à população o que faria, não teriam votado em mim”, defendia o peronista que implantou reformas liberais e a fugaz paridade com o dólar.

No primeiro mandato, Macron suspendeu o debate sobre a mudança na previdência por causa da pandemia. No segundo e último, resolveu que precisava arrumar a casa para não deixar um legado de deterioração econômica. 

Tal como todo mundo, a gastou demais para bancar a população trancada em casa, sem trabalhar, mas recebendo. Resultado, visto também em outros países: inflação e endividamento. Uma dívida que já era pesada passou a 112% do PIB, acima dos padrões estabelecidos pela União Europeia.

Como em outros países desenvolvidos ou até nem ricos assim, incluindo o Brasil, a população francesa está vivendo mais e tendo menos filhos, o que ameaça a sustentabilidade do invejável estado de bem estar-social. Injustamente, os franceses também são considerados um exemplo mundial de laborfobia, pioneiros da semana de 35 horas de trabalho e veteranos das leis trabalhistas que engessam uma economia com tudo para ser mais dinâmica, com uma força de trabalho de alto nível de instrução.

Todos concordam que Macron, com seu partido de centro e o apoio da direita tradicional, poderia ter produzido um acordo nacional sobre as aposentadorias sem o estado de crise vivido no momento. Não seria tranquilo porque a França vive uma situação única, com uma extrema direita e uma extrema esquerda fortes e capazes de infernizar a vida do presidente. Mas também não seria impossível.

Agora, com o país em surto, existem duas hipóteses: a fúria continua e as paralisações promovidas pelos sindicatos conseguem afetar gravemente a vida nacional ou a reforma acaba absorvida. Existe até um bode expiatório, a discreta, quase invisível, primeira-ministra Élisabeth Borne — a França tem um sistema de presidencialismo misto. Hoje serão votadas duas moções de censura contra ela. Em princípio, não existem os votos necessários para que sejam aprovadas, mas a volatilidade do momento político é extrema.

“Todas as refinarias do país estão bloqueadas, todos os portos estão bloqueados”, comemorou o principal líder da esquerda, Jean Luc Mélenchon, elogiando, cinicamente, o “notável pacifismo” dos manifestantes.

“Vocês não viram Maio de 1968. Não sabem o que é manifestação violenta”, provocou.

A eterna obsessão por Maio de 68 evoca uma questão: o que Charles de Gaulle faria no lugar de Macron? O formidável personagem viveu momentos extremos e não só sobreviveu como saiu do ano da baderna, como classificou, consagrado nas urnas. A população assustada com o radicalismo estudantil, deu ao partido de De Gaulle 352 dos 487 lugares na Assembleia Nacional.

O salvador da honra nacional francesa, como chefe do governo no exílio em contraponto ao alto índice de colaboracionismo durante a ocupação nazista, acabou renunciando apenas um ano depois por causa de uma reforma administrativa sem nada de emocionante, rejeitada em plebiscito. Interpretou o resultado, corretamente, como um voto contra ele.

Emmanuel Macron virou um fenômeno quando não só ganhou a primeira eleição presidencial, como fez um partido do nada, majoritário na Assembleia Nacional. Esta maioria ele perdeu e o capital político extraordinário que o povo francês lhe deu foi diminuindo. É uma pena. Ao ascender, parecia uma sensata opção centrista, sem o radicalismo dos extremos que periodicamente incendeiam a França, um político e tecnocrata de altíssima qualificação, capaz de pegar qualquer assunto existente na face da Terra e produzir uns quinze dossiês a respeito.

Hoje, sua aprovação está na casa dos 28%. Dois terços dos franceses rejeitam a mudança na idade da aposentadoria e não tem manobra política que dê um jeito nisso.

A extrema esquerda, numa comparação que só poderia ser feita na França — partiu do comentarista Mathieu Bock-Côté — ,“não está longe de erotizar a violência revolucionária”.

A explosão de violência, erótica se concordamos com o comentarista, tornou o infeliz Joseph François Foullon um dos primeiros casos de aristocratas mandados para “la lanterne”, o enforcamento num poste de luz.

Metaforicamente, Macron também está sendo alvo do grito “à la lanterne”. O tipo de metáfora muito perigosa na França.

Fonte: Veja

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