Sociedades minimamente organizadas sempre tiverem sistemas bem estabelecidos sobre como dispor de seus mortos – um dos sinais mais ancestrais de civilização.
Nos tempos atuais, isso também está sendo reavaliado. As imagens do corpo do papa emérito Bento XVI provocaram arrepios em quem perdeu a conexão com rituais antigos e tem pavor de pensar em si mesmo na mesma situação.
Se for o seu caso, não leia o seguinte: o corpo do papa Pio XII, tratado com um método “natural” de embalsamamento, explodiu à altura do tórax durante o trajeto de Castel Gandolfo a Roma, em 1958, arrancando o nariz e alguns dedos, e ficou inteiramente verde. Quem contou os detalhes foi seu médico, que acabou banido do Vaticano até o fim da vida pela grave quebra de sigilo.
A ideia de um método natural também é o maior argumento de venda da “compostagem humana”, um sistema que foi aprovado no estado de Nova York, sob fracos protestos de “desrespeito” feitos pela Igreja católica.
O método é exatamente o que diz ser: os corpos são transformados em adubo orgânico de forma acelerada, evitando os custos altos e a ocupação de espaço do enterro comum, da tanatopraxia ou do embalsamamento completo que ainda é frequente nos Estados Unidos, bem como do consumo de energia da incineração (equivalente a 800 mil barris de combustível, esclarecem promotores da inovação).
A compostagem já funcionava em outros cinco estados americanos de população com voto mais liberal, como Washington, Vermont, Colorado, Oregon e Califórnia.
O nome oficial é redução orgânica natural e consiste em colocar o corpo num caixão de aço (reutilizável) envolto em grande quantidade de serragem, alfafa, palha ou todos eles. O receptáculo entra numa câmara, parecida com as de criogenia, onde o calor de mais de 50 graus acelera a proliferação dos microorganismos que portamos naturalmente. A intervalos regulares, ele é revirado, como na compostagem comum.
Em um mês, o trabalho pesado está feito. O caixão é aberto para a retirada de materiais inorgânicos como obturações ou próteses. Os ossos são quebrados até virar pequenos fragmentos. O caixão volta para a câmara por mais trinta dias, ao fim dos quais restará a compostagem equivalente a 38 sacos de terra orgânica. “Muito rico em nutrientes e excelente fertilizante”, diz uma funerária.
Outra oferece o serviço de espalhar a compostagem numa área de bosque mantida especialmente para isso, com a garantia de que as árvores serão preservadas e não substituídas por construções.
O serviço completo custa de 3 800 a 7 000 dólares, dependendo de despesas com transporte do corpo e outras.
O que não pode ser feito: misturar a compostagem de diferentes corpos ou usar o material orgânico como fertilizante em plantações de produtos alimentícios.
Só de mencionar esta parte já evoca um filme bizarro e muito falado pelos adeptos de ficção científica. Um detetive interpretado por Charlton Heston investiga um crime num mundo distópico em que os mares estão morrendo, a poluição é permanente e a superpopulação é dividida em castas.
Não é preciso ser nenhum gênio para descobrir a história central: o material que alimenta as massas não é feito de plânctons, extintos nos oceanos contaminados, mas de corpos humanos.
O filme data de 1973 e os acontecimentos do futuro distópico são em 2022.
A compostagem humana é um passo bem além do “enterro ecológico”, uma moda que pegou na Inglaterra: o corpo vai num caixão de vime para facilitar a decomposição natural. Mas antes de voltar pacificamente ao pó do qual todos viemos, produz um conjunte de elementos nada ecológicos, como o necrochorume.
Os rituais pós-morte fazem parte da vida e são importantes para os que ficam atravessar o luto. A religião que tinha o papel dominante nessa etapa refluiu e outros métodos surgem para atender um consumidor – isso mesmo, consumidor – que quer um fim diferente para si mesmo. “Virar árvore” parece até poético, nem que seja através da compostagem.
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Fonte: Veja