A informação de que a Universidade de Chicago vai diminuir as vagas de doutorado em pelo menos uma dúzia de cursos do setor de Artes e Ciências Humanas saiu de um comunicado interno para virar notícia. A repercussão se explica porque a área de humanas é um ponto forte da UChicago, uma das instituições de ensino mais importantes dos EUA, e se ela está disposta a reduzir turmas de pós-graduação nesses cursos, algo deve estar errado.
Muito rápido, surgiram pessoas lamentando a situação política do país e dizendo que a inteligência artificial vai dominar o mundo. Porém, a decisão da UChicago faz parte de uma tendência de enxugamento de vagas de mestrado e doutorado que começou antes de Donald Trump assumir a presidência e antes também da inteligência artificial mostrar que sabe escrever melhor do que muitos seres humanos.
Outras universidades, como as de Pittsburgh e da Pennsylvania, também se preparam para reduzir turmas. Em novembro do ano passado, a Universidade de Boston anunciou cortes de vagas em 12 cursos – incluindo Letras, História e Filosofia. Uma decisão que começou a valer já neste ano, segundo o jornal “Boston Globe”.
É claro que Trump ter suspendido o financiamento de pesquisas e segurado bilhões de dólares do National Institutes of Health (NIH), com o argumento de diminuir os gastos do governo e combater políticas de diversidade, equidade e inclusão, dificultou a vida de estudantes e universidades. Embora esses recursos fossem da área de Ciências Biomédicas, a medida chacoalha todos os setores, uma vez que o dinheiro disponível para pesquisa, vindo de outras fontes, precisa ser realocado para cobrir despesas que seriam pagas com a verba federal. Para se ter uma ideia, o NIH é o órgão público que mais financia pesquisas biomédicas no mundo inteiro, com um orçamento anual de US$ 47 bilhões, o equivalente a um quarto de trilhão de reais, de acordo com a revista “Nature”.
Humanas em baixa
A crise nas universidades americanas parece ser, na prática, uma crise na área das ciências humanas. Não é por acaso que os cursos dessa área são o principal alvo dos cortes de vagas anunciados nos últimos meses.
Em 2022, a Academia Americana de Artes e Ciências, um órgão privado que se sustenta por meio de doações e fundos de pesquisa, publicou um relatório dedicado às ciências humanas. Um dos números que mais chamou atenção mostra que os cursos de pós-graduação na área estão encolhendo há mais de dez anos, como destaca a “Inside Higher Ed”.
Segundo o levantamento, intitulado “A Situação das Humanas em 2022 – Da Pós-Graduação ao Mercado de Trabalho”, as vagas de mestrado tiveram seu ápice em 2012 (com 32,6 mil) e, até 2020, no recorte feito pela pesquisa, caíram 18,5% (para 26,6 mil). As vagas de doutorado tiveram ápice em 2015 (6 mil) e caíram 9% até 2020 (5,5 mil).
No “The Scholarly Kitchen”, a historiadora Karin Wulf diz que os problemas de humanas são reais, mas não novos, e observa que os dados da pesquisa são anteriores à pandemia. “A situação, de 2020 para cá, provavelmente se agravou”, afirma Wulf, dizendo que uma forma de encarar o problema seria levar a sério a perspectiva dos estudantes que desistem de fazer uma pós em humanas porque consideram os cursos “pouco atraentes, pouco práticos ou pouco acolhedores”.
Para o acadêmico Benjamin Schmidt, na “The Atlantic”, a origem dos problemas que as humanas enfrentam hoje é a crise financeira de 2008: “Parece que [a crise financeira] mudou a percepção dos estudantes sobre o que eles deveriam estudar, num esforço equivocado de melhorar suas chances no mercado de trabalho”. Na lógica da empregabilidade, as humanas não são páreo para os cursos conhecidos pela sigla STEM (em inglês), usada para se referir às áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Como referência, em 2020, os cursos de humanas responderam por apenas 3% dos mestrados e 7% dos doutorados concluídos nos EUA.
Na opinião de Schmidt, admitir que a área de humanas está em crise não significa aceitar que ela será extinta: “Significa que o espaço das humanas está diminuindo, que a área está se transformando, assim como a universidade como um todo. Agora, as decisões e a retórica que cercam os cursos de humanas têm mais importância do que nunca, assim como periódicos, bibliotecas e universidades precisam tomar uma série de decisões que vão definir o novo formato a ser adotado por esses cursos”.
Inveja e ressentimento
Não serão decisões fáceis de se tomar. Colaborador da “National Review” e fundador da revista “First Things”, Mark Bauerlein não hesita em criticar os professores de humanas – na opinião dele, mais pautados por política e questões identitárias do que por qualquer outra coisa. “Políticas identitárias nascem da inveja e do ressentimento, e não da dignidade e da fraternidade”, diz Bauerlein.
Doutor em antropologia social e professor da Universidade Estadual Paulista, Laércio Fidelis Dias afirma que a diversidade, a equidade e a inclusão são apresentadas como formas de promover a justiça social, combater preconceitos e incrementar a inclusão. “Mas, de fato, atuam como estratégias de revolução cultural que erodem as raízes, os valores, as tradições e as instituições que fundaram os Estados Unidos, e num sentido mais amplo, a própria civilização cristã ocidental”, diz o professor, em entrevista à Gazeta do Povo.
Ainda segundo Fidelis Dias, o foco nesses temas criou um ambiente de tensão e de conflito permanente. “São políticas que apartam as universidades do mundo real, onde vivem as pessoas de carne e osso, que trabalham, cuidam de suas famílias e lidam com questões reais e objetivas do dia a dia de pessoas comuns”. Criam um ambiente tenso, de conflitos e contendas intermitentes”, critica.
A demora para reagir
Problemas como a redução populacional e as mudanças no mercado de trabalho foram abordados pelo “Times Higher Education”, na época em que “A Situação das Humanas” foi publicada. Quem faz essa leitura dos dados é Robert Townsend, um dos diretores da Academia de Artes e Ciências. Na opinião dele, parte do problema é que as universidades americanas estão demorando para reagir e, com frequência, continuam concentradas em preparar os estudantes de humanas para carreiras dentro da academia, espaço onde o número de oportunidades não para de diminuir.
O crítico cultural Ted Gioia discorda de Townsend e acha que o problema dos cursos de humanas não está dentro da academia, mas fora dela. Gioia é conhecido pela newsletter “The Honest Broker”, com mais de 250 mil assinantes no Substack, onde ele escreveu, em março do ano passado: “O ensino de humanas vai recuperar o respeito. Mas só depois que os cursos de humanas provarem a força e o valor que têm para o mundo”.
Ele cita o irmão, Dana Gioia, como exemplo de alguém que trabalha com humanas na prática, fora da universidade, interagindo com pessoas em livrarias, centros comunitários, igrejas e em outros locais da vida real. Ted Gioia diz que o irmão encontra pessoas que procuram um tipo de conhecimento que não encontram nos algoritmos e nos dispositivos tecnológicos, mas que as ciências humanas podem proporcionar. O erro das universidades é negligenciar essas pessoas. “Essa é a verdadeira crise das humanidades”, diz o crítico.
Revolução ou não
O professor Laércio Fidelis Dias vê dois caminhos possíveis para os programas de pós-graduação em humanas a partir de agora. Um deles seria abandonar o projeto revolucionário. “[Nesse caso], os cortes orçamentários poderiam ser revistos, e as instâncias formadoras do consenso social poderiam paulatinamente ir sendo despoluídas e um horizonte de normalidade se apresentar para um futuro não tão longínquo”, diz.
O outro cenário é mais sombrio e, para o professor, bem mais factível. Nele, os cursos de humanas se tornariam cada vez mais irrelevantes. “Irrelevância essa, ancorada em sua desconexão com o mundo real no qual vivem as pessoas comuns. A consequência da irrelevância seria a perda de interesse por parte dos possíveis discentes desses programas, instaurando-se, assim, um quadro de ostracismo”, diz Fidelis Dias.
Fonte: gazetadopovo