Desde que o planeta registrou o primeiro bilhão de habitantes, em 1800, a população só fez aumentar, cada vez mais aceleradamente. E, de bilhão em bilhão, erguia-se o pavor de um mundo superpopuloso e acendia-se uma vela no altar do reverendo e economista britânico Thomas Malthus (1776-1834), autor da teoria de que seria impossível alimentar tantas bocas num cenário em que a produção de comida não acompanhava a multiplicação de indivíduos. Tal descompasso fatalmente resultaria em guerras e fome, e a solução passaria pelo controle da natalidade por parte dos mais pobres — causa e consequência do dilema. A armadilha malthusiana se provou furada diante dos extraordinários avanços tecnológicos e sucessivos ganhos de produtividade que garantiram comida na mesa e melhoraram as condições de vida. Pois agora é o próprio fantasma da superpopulação que se esvai.
Na terça-feira 15 de novembro, segundo os cálculos da ONU, a Terra atingirá 8 bilhões de habitantes — e pela primeira vez a preocupação com o futuro é inversa. Com uma parcela já significativa da humanidade vivendo em países ou áreas onde o número de pessoas está encolhendo, a questão que se coloca neste momento é como persistir no rumo de um mundo mais próspero com menos braços para movimentar a máquina. Isso não quer dizer que a população mundial como um todo esteja caindo: o painel das Nações Unidas estima que ela continuará se expandindo ao longo do século. Seremos 9 bilhões em 2037 e 10 bilhões em 2058 (veja no quadro abaixo). Só a partir de 2087 é que a curva deve começar a virar.
A perspectiva de menos gente do que se antecipava em um planeta no qual nascem menos bebês e os adultos naturalmente envelhecem aciona alertas para escassez de mão de obra, dificuldade para sustentar benefícios sociais e outros problemas. Mas ela também descortina uma daquelas raras janelas de oportunidades: menos pessoas para alimentar, mais vagas em sistemas de saúde e de ensino e menor pressão sobre os desfalcados recursos naturais figuram no vasto rol de vantagens que, se aproveitadas pela engenhosidade humana, podem converter o planeta em um lugar melhor para viver.
A inédita desaceleração do crescimento populacional não é homogênea, e nem poderia em um mundo tão desigual. Mais da metade da explosão de nascimentos ainda previstos se concentra em apenas oito países, com destaque para a Índia — que deve se tornar a nação mais populosa do mundo a partir do ano que vem — e a Nigéria, que no próximo meio século subirá do sétimo para o terceiro lugar no ranking. É justamente no país africano que o bebê número 8 bilhões tem mais probabilidade de nascer e, levando-se em consideração as leis da estatística, virá ao mundo marcado por contrastes sociais: será um menino negro cuja família mora na área rural e luta pela sobrevivência com renda inferior a 1 dólar por dia. Já na banda rica do planeta, a previsão é que 61 países experimentem declínio superior a 1% do total de habitantes até 2050. “Essas disparidades impõem desafios de alta complexidade”, diz o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves. “Em meio a isso, o decréscimo populacional traz uma chance de avanço para as pessoas e para o ambiente em que habitam.”
O otimismo dos especialistas está ancorado em uma revolução silenciosa, observada nos últimos 200 anos. Comum a toda humanidade, ela atende pelo nome de transição demográfica e representa o maior comportamento de massa já registrado na história, independentemente de língua, cultura ou sistema de governo. Em todo canto a transição segue o mesmo roteiro, sustentado por duas linhas que se entrelaçam. Uma é a queda na mortalidade: a concentração nas áreas urbanas eleva a expectativa de vida das pessoas graças ao aumento da renda, à melhoria da educação e da alimentação, aos progressos da medicina e à ampliação das redes de saneamento básico. Outra é a redução da natalidade — na equação moderna, filhos passam a pesar no bolso mais do que antes. “Ao contrário do que ocorre nas zonas rurais, onde uma prole numerosa significa mais mão de obra na lavoura, os custos econômicos de manter descendentes nas cidades são um desestímulo aos nascimentos”, afirma Roberto Luiz do Carmo, professor de demografia da Unicamp.
A decisão de não ter filhos não é a mais comum, mas ganha cada vez mais adeptos, inclusive no Brasil. A comissária de voo Mayara Grazielli Silva, 34 anos, nunca quis ser mãe e, com o tempo, o marido, Vinícius de Mendonça, 32 anos, com quem vai completar dez anos de casada, também passou a pensar assim, e ambos desejam aproveitar a vida com mais liberdade. “Além de ser uma decisão amadurecida, existe o fato de já haver muita gente no mundo”, diz Mayara. “Mas ainda vejo muita cobrança e julgamento da sociedade”, admite. Certos fatores culturais dão mais gás à transição demográfica, entre eles a maior aceitação de métodos contraceptivos e a inserção da mulher no mercado de trabalho. Em um primeiro momento, tudo isso, somado, resulta no crescimento de uma população produtiva capaz de gerar riqueza e contribuir para a diminuição da miséria.
O mundo hoje é bem mais próspero do que no início deste século XXI, quando a Terra atingiu a marca de 6 bilhões de habitantes, como mostram os índices de mortalidade infantil, expectativa de vida e renda per capita (veja o quadro acima). Àquela altura, a ameaça da superpopulação era tema de discussões inflamadas, e a China já estava havia duas décadas mergulhada na mais radical experiência de controle populacional de que se tem notícia — a política do filho único, que vigorou até 2015. Calcula-se que a interferência direta do governo no tamanho da família impediu o nascimento de 400 milhões de crianças, o que ampliou a possibilidade de o país crescer acima de dois dígitos por ano. Mas o corte foi tão fundo que a mais populosa de todas as nações vive hoje sob a inimaginável sombra de um declínio radical de habitantes, previsto para começar em 2023, levando à perda de metade do contingente chinês até 2100. “Muitas mulheres não querem nem namorar, quanto mais ter filhos, que exigem enormes sacrifícios”, diz a chinesa Linda Mao, 36 anos, que se casou, mas escolheu não engravidar. Esse comportamento tem resistido à virada de mesa do governo, que agora paga aos casais para terem mais de um herdeiro.
A China não está sozinha. Nada menos que vinte das 22 maiores economias do mundo apresentam taxas de fecundidade inferiores a 2,1 filhos por mulher em idade fértil, o patamar mínimo para reposição da população existente. Isso significa menos adultos produtivos e mais idosos em regiões onde estão dois terços do total de habitantes da Terra — as únicas exceções são Arábia Saudita e Indonésia, sociedades marcadas pela força do patriarcado. Em nações europeias, como Portugal, Grécia e Itália, e partes da Ásia, como Japão e Coreia do Sul (que neste ano recebeu a faixa de menor taxa de fecundidade do planeta), a redução da força de trabalho em razão do envelhecimento e da baixa natalidade já é sentida na prática — 56% das empresas alemãs, por exemplo, acusam falta de pessoal qualificado.
Uma saída mais imediata para a reposição da população nos países desenvolvidos é a entrada de imigrantes — a exemplo dos Estados Unidos, uma nação que historicamente se fez importando levas de gente de fora e agora mitiga os efeitos do envelhecimento com uma gama de nacionalidades que ali aporta. Nas próximas décadas, a imigração será o grande motor do crescimento populacional em países de alta renda — isso, se eles conseguirem conter um crescente sentimento xenofóbico, trava de intolerância agravada pela atrofiada assimilação dos estrangeiros nas sociedades.
Um componente demográfico é visto como chave para as populações que encolhem: o aumento da expectativa de vida. O relatório da ONU prevê um acréscimo até 2050 de 4,4 anos em média, para 77,2 anos, ganho que pode ser aproveitado economicamente prolongando a permanência na ativa dos mais velhos. “Os países devem encontrar mecanismos para estimular os idosos a levar uma vida mais saudável e produtiva”, enfatiza o holandês Bela Hovy, chefe da Divisão de População das Nações Unidas. Esticar a jornada profissional vai depender, no entanto, de como a população grisalha é cuidada. “Políticas públicas voltadas para a prevenção de doenças são mais importantes do que nunca”, ressalta a demógrafa Márcia Castro, da Universidade Harvard.
Os desafios são ainda maiores para nações em desenvolvimento como o Brasil, onde a população começará a minguar em 2049. Por falta de planejamento, desleixo e políticas públicas desconexas, o país chega sem aproveitamento relevante à etapa final do seu bônus demográfico — a conjunção ideal em que a fatia economicamente ativa é maior do que a de crianças e idosos. O número de aposentados cujo sustento depende do trabalho de outras pessoas só faz crescer desde 2014, em uma trajetória de envelhecimento sem retorno que se desenrola antes de o país enriquecer — ao contrário do que ocorreu na Europa, por exemplo. “A solução para tal equação demográfica passa por ganhos de produtividade, que envolvem mudanças profundas no sistema tributário e investimentos em infraestrutura e tecnologia para recuperar o tempo perdido”, avalia o economista Maílson da Nóbrega. Na educação, setor vital para uma guinada, o freio populacional pode ajudar. “Com a redução do contingente em idade escolar, temos a chance de elevar progressivamente as horas na sala de aula até alcançarmos um regime integral de ensino, como nos países mais desenvolvidos”, acredita Claudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV.
Os especialistas alertam, contudo, para o fato de que nada é mais crucial para o avanço do planeta com menos gente do que os líderes mundiais se debruçarem para valer sobre a questão ambiental. As mudanças climáticas diminuem a extensão das áreas cultiváveis e causam enormes desastres, forçando o deslocamento de milhões de pessoas. A queda no crescimento populacional só tem chance de se reverter para o bem geral se o padrão de consumo do que a natureza oferece se tornar sustentável. “Todo progresso humano ocorreu à custa da exploração de recursos naturais. Precisamos alterar essa rota já”, decreta o demógrafo Alves.
Longe do catastrofismo de Malthus, o economista britânico John Stuart Mill (1806-1873) discorreu sobre a necessidade de uma relação harmoniosa entre desenvolvimento e avanço populacional. “Espero sinceramente, por amor à posteridade, que a população se contente em permanecer estacionária muito antes que a necessidade a obrigue a isso”, escreveu. Pelas contas da ONU, a humanidade tem seis décadas pela frente antes que a quantidade de habitantes no globo finalmente se estabilize. A hora é agora: o futuro depende de ações urgentes no presente.
Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815
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Fonte: Veja