Um daqueles temas delicados que atiçam o caldeirão das mais profundas convicções humanas, a eutanásia acaba de ser legalizada em Portugal, após percorrer uma trilha de sete anos que atravessou três diferentes legislaturas. O tempo até ser aprovada a lei que permite uma pessoa submetida a um “sofrimento intolerável” abreviar a própria vida dá a dimensão da complexidade de um debate que mexe com tantas camadas — das liberdades individuais à própria filosofia. Apenas seis países até hoje haviam abraçado a controversa agenda, entre eles Espanha, Bélgica e Holanda, todos estabelecendo que, depois de passar por crivo psicológico e médico, indivíduos acima dos 18 anos podem solicitar assistência para morrer. Quem assinou o novo decreto, que deve entrar em vigor até o fim do ano, foi o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que até tentou frear a medida, mas deu andamento a ela diante de um Parlamento majoritariamente favorável à decisão. “Não existem respostas fáceis, e muito menos respostas absolutas a este nível, mas a decisão coloca Portugal num patamar que, tal como a grande maioria dos países chamados democráticos, procura encontrar respostas para as mudanças societais”, avalia Miguel Ricou, professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e coordenador da plataforma europeia Wish to Die.
Não é a primeira vez que Portugal se instala no grupo de nações que avançam na pauta progressista, fazendo as liberdades de escolha se sobressaírem diante da tentação conservadora, tão em voga nos tempos atuais, polarizados. Foi assim com a radical descriminalização das drogas, que começou mais de duas décadas atrás, seguida da legalização do aborto (até a décima semana de gestação) e da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que mais tarde também conquistaram o direito à adoção. Frente a esse vasto rol de decisões que, em seu conjunto, põem os portugueses na vanguarda, cabe indagar como um país com elevada concentração de católicos — eles são 80% da população —, naturalmente refratários a essas mudanças, revela tão acentuado pendor para uma agenda que colide com tantas convicções pessoais e intransferíveis. Recentemente, o próprio papa Francisco teceu críticas abertas à eutanásia.
A mais forte explicação para o paradoxo português tem as raízes fincadas na história. Nas mãos de António Salazar, o país enfrentou quatro décadas de uma ditadura que atropelou os direitos mais básicos, instaurando uma era de perseguições e censura sob o embalo de bandeiras como “Deus, pátria e família”. Em 1974, a Revolução dos Cravos tratou de derrubar o regime autoritário, o que abriu caminho para uma Constituição arejada nas ideias e de forte cunho social, que previa a universalização do acesso a saúde e educação. A ferida deixada pelos duros tempos de Salazar, porém, ficou tão exposta que tornou os portugueses altamente reativos diante de qualquer sinal de marcha a ré. “O voto em Portugal é pautado por uma visão estritamente política”, explica o cientista político Igor Lucena. “Há uma clara separação entre Igreja e Estado”, enfatiza.
Desde que a ditadura se dissolveu, o parlamentarismo português vem alçando ao poder quadros que oscilam entre a esquerda e o centro — caldo favorável à agenda progressista. E o cenário atual é ainda mais propício, com o primeiro-ministro, António Costa, do Partido Socialista, contando com a ampla maioria absoluta que o elegeu em 2022. Antes, em 2015, ele havia chegado ao cargo maior da República graças a uma coalizão composta pelo Partido Comunista (PC) e pelo Bloco Socialista de Esquerda (BE), costura batizada de “geringonça”. O socialismo de Costa é tingido, ressalve-se, de tintas sociais-democratas — nada que lembre os primórdios da Revolução dos Cravos, mas suficiente para criar um ambiente onde há espaço para cutucar feridas que podem desembocar em avanços relevantes para a sociedade.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843
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Fonte: Veja