A ideia do movimento é restaurar as famílias e, por meio da fé no “Legendário nº 1”, como Jesus é chamado, “homens acovardados” se transformam em “sacerdotes” dentro de casa, voltando a assumir o “papel de homem” dentro do lar. Enquanto eles sobem o Vale da Graça, as esposas esperam, em solo, receber “um marido restaurado” e se encontram no “Chá das Ladies” para orarem juntas pela transformação.
O local exato em que tudo acontece é um segredo guardado por uma cláusula de sigilo vitalício prevista no contrato de isenção de responsabilidade assinado pelo futuro Legendário antes do evento. Nenhum homem compartilha os detalhes do que acontece no alto, já que a revelação pode resultar em medidas judiciais ou extrajudiciais.
Uma das cláusulas informa que o futuro Legendário assume os riscos inerentes à vivência. O texto ainda reforça que as experiências possuem “natureza educativa”, ainda que possam “se tornar exaustivas”, como trilhas, caminhadas escaladas, incursões em rios pedregosos ou cavernas e alpinismo.
Foi a esposa de Tiago que conseguiu uma vaga para ele participar do TOP, como chamam a imersão na montanha. Antes, o filho mais novo revelou ao pai que gostaria de participar do Legado, evento dentro do Legendários que tem pais e filhos como público alvo. No entanto, para participarem, o engenheiro civil primeiro teria que passar pelos desafios do Vale da Graça.
“Ela conseguiu uma vaga para eu participar. Foi um momento bem difícil para mim, estava com a minha família separada. Durante o TOP, em um momento de oração, eu pedi pela restituição da minha família para Deus, foi a primeira oração que eu fiz na verdade. No domingo, quando voltamos para a igreja, minha esposa que estava nos Estados Unidos quando eu subi a montanha, estava lá com nossos dois filhos e a gente voltou. Pela graça de Deus”.
Tiago subiu a montanha em novembro de 2023 e no primeiro mês do ano seguinte levou o filho para participar do Legado, em Balneário Camboriú (SC), onde surgiram os primeiros Legendários no Brasil. Cuiabá ainda não realiza edições do evento para pais e filhos, assim como o “REM”, que foi criado para que os homens Legendários participem com as esposas.
“É uma benção muito grande poder ensinar para eles [os filhos] a ter relacionamento com Deus, ser temente a Jesus, ter esse coração preenchido, que é uma coisa que não tinha quando era pequeno. Passei muitos anos da minha vida sem ter esse relacionamento com Deus. Para mim é uma benção e uma honra estar direcionando eles dentro desse caminho, que acredito hoje ser o melhor caminho para gente seguir”.
Em uma analogia, o engenheiro civil compara o mundo atual como um rio que desagua para um caminho “não muito bom”, enquanto os Legendários surgem como uma “manada de homens” que se unem para nadar contra a corrente, “em direção a uma margem de salvação”. Na cerimônica de recepção dos homens que participaram do desafio, Tiago encontrou a esposa e os dois filhos esperando por ele. Um vídeo mostra que, ainda no palco, depois do testemunho, eles se abraçam enquanto o empresário promete se tornar um “sacerdote do lar”.
“Quem está nessa margem é Cristo. A minha visão do Legendários é essa, temos esperança que em Amor, Honra e Unidade, a gente possa transformar o mundo. Primeiro a gente se transforma como homem, assumimos nossa posição de homem, de líder, sacerdote e protetor da nossa família. Então, a gente conserta primeiro a nossa família, depois vamos consertar os locais que trabalhamos, a nossa comunidade”.
Qualquer homem pode participar, convida Tiago. No entanto, de maneira geral, muitas igrejas evangélicas tradicionais acreditam que a homossexualidade é um pecado com base em interpretações específicas de passagens bíblicas.Há dois anos, ele conta, aconteceu o Top Barbeiros, em Sorocaba (SP), em que apenas barbeiros participaram. Os profissionais são classificados pelo pastor Chepe Tupzu, da Igreja Casa de Deus na Guatemala, que criou o Legendário em 2015, como “conselheiros extraoficiais”.
“Teve alguns barbeiros que eram homossexuais, mas são homens mesmo que estejam ‘desviados’. Teve alguns deles que na hora que voltarem da montanha, renunciaram a homossexualidade. É um movimento que realmente transforma os homens”.
Questionado sobre a homossexualidade ser vista como algo errado pelos Legendários, o engenheiro civil afirmou que “Deus criou o homem e a mulher. O homem tem que fazer a função do homem e a mulher fazer a função da mulher”.
A repercussão do movimento cresceu quando a influenciadora digital Viih Tube compartilhou com os milhares de seguidores, no Instagram, que o marido, o ex-BBB Eliezer, tinha participado do desafio. Viih Tube ressaltou que o grupo transforma famílias, fazendo com que o assunto viralizasse rapidamente. Desde então, impulsionado pelos canhões do engajamento nas redes sociais, surgiram também as especulações que comparam o Legendários a uma seita.
A percepção decorre de características como a confidencialidade das atividades e a noção de “verdade única”, por exemplo, em que outras religiões, ideias ou estilos de vida são considerados errados ou perigosos. A fama de seita, inclusive, motivou a sede de Cuiabá a publicar um vídeo desmentindo os boatos. Além desses aspectos, a comercialização da fé entrou em debate.
Para participar é necessário desembolsar até R$ 1,8 mil pela inscrição, mas Jules ressalta que gastos adicionais podem ser levantados pela sede. Apesar do valor, as inscrições esgotam em poucas horas, reforça Tiago, que também é coordenador do Legado, que vai inaugurar a primeira pista cuiabana em breve.
“Normalmente publicamos nossas inscrições na segunda-feira, às 7h, levamos cerca de 200 homens para a montanha. As inscrições têm acabado em dois minutos, com mais de 3 mil pessoas tentando acessar as vagas. Tem feito um serviço muito bom para regenerar família, do mesmo jeito que aconteceu com a minha, tem feito com a de muitos homens por aí”.
Além de Eliezer, o grupo já atraiu outros famosos como Gustavo Tubarão, Thiago Nigro (Primo Rico), marido da influenciadora Maíra Cardi, Neymar pai e o empresário Kaká Diniz, marido de Simone Mendes. Jules revela que desconhecia a fama de Eliézer, mas prevê que o movimento Legendários vai alcançar ainda mais personalidades da mídia.
“Até estranhei porque tiveram outras pessoas mais famosas que ele que fizeram. O movimento vai alcançar cada vez mais pessoas e famosos, porque o evangelho e a mensagem de Deus vão chegar em toda e qualquer criatura”, afirma o presidente.
Os homens recebem números que são gravados nas fardas laranjas usadas nos desafios. Para o presidente do Legendários Cuiabá, Jules Ignácio, o aspecto aventureiro proposto pela experiência é um chamariz para os homens, mas algo que fica em segundo plano por conta da vivência espiritual no processo.
“O homem gosta de aventura, o homem gosta de pescar, o homem gosta de fazer essas aventuras… Porém, tem buscado as aventuras erradas, né? Aventuras fora do casamento, aventuras nos lugares errados. Então, me atrai pela aventura e pelo retiro em si, buscar mais de Deus”.
Jules subiu uma montanha para se tornar Legendário em Balneário Camboriú (SC) e passou a indicar o desafio para amigos, que viajaram para lá para fazer o mesmo. Em determinado momento, a cidade no litoral de Santa Catarina chegou a ter 140 participantes na pista Vale Europeu, sendo que 70 eram cuiabanos.
“Nesse dia, o pessoal de Camboriú mesmo falou: ‘poxa, vocês estão vindo em peso aqui, não é hora de fazerem uma edição em Cuiabá?’. Eu disse que era a ideia desde o começo, porém a gente precisa de homens que tinham passado pelo processo para poder abraçar essa causa no nosso estado”.
Foi assim que Jules decidiu criar a primeira sede em Mato Grosso. Em 23 de junho de 2023, os primeiros homens acamparam no Vale da Graça. Trazer o movimento para Cuiabá é definido por ele como um propósito de vida para restaurar as famílias.
“A mensagem que a gente acredita, é a palavra de Deus, é a bíblia, a ideia é trabalhar naquele que é o alicerce da família, que é o homem. É o homem que está em dívida com a sociedade, é o homem que tem terceirizado a educação dos filhos para a internet, é o homem que tem negligenciado o seu papel na sociedade, se acovardando dos problemas. Então, o movimento nasceu com objetivo de transformar os homens”.
Depois de subirem a montanha, eles podem servir em outras edições em qualquer lugar do mundo que exista uma sede do movimento. O empresário Danilo Rondinelli, de 46 anos, por exemplo, já participou sete vezes, sendo uma delas como participante. Assim que desceu a montanha, ele e a esposa se converteram. Hoje frequentam a Videira.
“Engraçado que todo mundo fala que acha que é um movimento de crente, ficou muito conectado porque há uma transformação lá, algo sobrenatural acontece. Posso te falar que não é uma lavagem cerebral, não é um processo de doutrina, basicamente a gente passa por um processo lá, muito forte. Nesse processo, você querendo ou não, mas em algum momento você vai querer, você vai ter esse encontro com Jesus. Sobem ateus, sobem católicos, sobem crentes e sobem também pessoas com sua vida completamente destruída”.
Danilo não estava enfrentando problemas no casamento e acreditava ter um bom comportamento “aos olhos de Deus” antes do Vale da Graça. No entanto, ele afirma que durante o desafio descobriu que tinha camadas que não conseguiria chegar sem a experiência do Legendários. Quanto ao sigilo, saber o que acontece seria “um baita spoiler”, define o empresário.
“É como se eu fosse desconectado da matriz, e eu passo a enxergar coisas que eu não tinha enxergado antes, a ouvir coisas que eu não estava escutando antes. E aí, sim, acontece que amigos, quando você chega, afastam de você porque ‘ah, ele se tornou um crente’. E tudo bem, eu já fui essa pessoa, entendo porque eles estão pensando dessa forma”.
Ele ainda se lembra do momento em que uma palavra ministrada por um pastor durante a trilha atingiu seu coração “como uma faca”. “Disse que você poderia ser um bom rapaz, ter um bom comportamento, ser um bom empresário, um bom marido, ser uma ótima pessoa aos olhos de Deus, mas se você não acreditar que Jesus Cristo, que nasceu da Virgem Maria, esse cara morreu na cruz para pagar os seus pecados de agora, de antes e do futuro, se você não acreditar nisso, você não vai nascer de novo, você não vai ser salvo”.
Para o empresário, o Legendários está atingindo pessoas como ele, que não entrariam dentro de uma igreja por vontade própria, mas que foram impactadas pelos três dias no Vale da Graça. Lá, ele conta que não há espaço para julgamentos. No “Manifesto dos 24 Nós”, um dos pactos é dar a vida pelos amigos e andar em matilha, já que um homem sozinho é descrito como uma presa fácil. Ser fiel as esposas também entra nas regras criadas para guiar o comportamento dos homens.
“Vou dar a vida por pessoas desse tipo e é por isso que não cabe a nós julgar, essas pessoas querem transformação, vai ser o Espírito Santo que vai conduzir elas depois que voltarem da montanha. Nosso objetivo é fazer esse cara ter um encontro, porque a gente tem a convicção de que todas as pessoas podem ser salvas, podem ter esse encontro”.
No pulso, Danilo carrega uma pulseira que no verso estampa “Amor, Honra e Unidade”, o “AHU”, uma espécie de grito de guerra dos Legendários. Para ele, os homens que sobem o Vale da Graça são sinônimo de caráter e sacerdotes da casa.
“Queria que nosso governador fosse Legendário, queria que nosso prefeito fosse Legendário, queria que esses caras que estão tomando decisões fossem Legendários, Legendários de verdade. Esses, sim, iam poder fazer coisas realmente honestas, honestas em níveis que a gente desconhece. Não honesto para agradar vários, honesto para fazer aquilo que é certo”.
“As esposas recebem um homem melhorado. Hoje em dia, só para você saber, existem mulheres solteiras que estão buscando Legendários para casar”, afirma Tiago. Segundo ele, a reputação dos homens que passam pelas 72 horas na montanha tem se tornado positiva aos olhos das mulheres já que a experiência teria poder de “firmar um conjunto de valores cristãos na vida do homem”, algo que seria capaz de “mudar tudo”.
Casada com Danilo, a empresária Michelle Rondinelli conta que não tinha problemas desestabilizando a relação, algo que é frequente no testemunho de outras esposas de Legendários. Traição é um dos temas citados por Michelle.
“Comigo não aconteceu, graças a Deus, cada testemunho que a gente escuta no ‘Chá das Ladies’ quando os meninos sobem a montanha, a gente fica aqui também sendo preparada e curada. Tem intercessão de pastora, tem o grupo das mulheres dos Legendários que fica orando”.
Quando o marido desceu a montanha, ele já chegou em casa falando sobre Deus, lembra a empresária. Apesar de terem se casado na igreja católica, eles não praticavam a religião. Para ela, o clima da vida em família mudou após o Legendários e, hoje, Danilo assumiu as funções dentro do lar.
“Está cuidando mais de mim, mais preocupado, provedor não só na questão de dinheiro mesmo, um sacerdote dentro de casa, um marido mais presente. Menos celular, porque às vezes estava em casa, eu ficava umas coisas, ele ficava fazendo outras coisas. Hoje não, a gente conversa mais, tenho um marido mais presente, faz mais coisas com meu filho, temos um filho pequeno, dar mais atenção. Claro, não tenho um marido perfeito, mas eu tenho um marido muito bom, com a graça de Deus”.
Segundo Tiago, a tendência é de que até 2025 o Brasil tenha quase 100 mil Legendários, que para ele é um “movimento de esperança”. “Existe uma progressão, se você conserta os homens, você conserta a família e assim vai”.
Fonte: Olhar Direto