Enquanto tenta lidar com as consequências da Lei Magnistky e a pressão pelo impeachment de Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal (STF) arranjou outro problema para resolver. Um problema de dezenas de milhões de reais.
Uma auditoria identificou um caso de inconsistência contábil de mais de R$ 56 milhões nas contas da corte em 2024. Desse valor, R$ 50 milhões referem-se a um pagamento adiantado, feito sem registro de contrapartida, para as obras de expansão e adequação física e estrutura do Museu do STF.
De acordo com o relatório, houve um erro na classificação da despesa. Mas, para além do problema contábil da saída dessa verba, existe uma questão sobre o seu destino.
Conforme dados do site da Transparência do Supremo, um pagamento de R$ 50 milhões foi realizado em 9 de dezembro de 2024 para a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (ONU/Unesco) para um “projeto de cooperação técnica internacional entre o órgão e o STF para o projeto intitulado Museu do STF”.
O valor foi pago em parcela única, referente ao período de novembro de 2024 a novembro de 2030, o que equivale a R$ 1 milhão por mês durante seis anos.
A Gazeta do Povo procurou o STF e a Unesco na segunda-feira (25) para pedir detalhes do projeto e, na quarta-feira (27), para questionar sobre a parceria, o pagamento adiantado e a contribuição da Unesco. Não houve resposta até o fechamento desta edição.
As distorções nas contas do STF
Os R$ 50 milhões foram registrados como uma despesa recorrente, ou seja, um gasto mensal comum. No entanto, como se trata de uma verba que irá melhorar um patrimônio e, com isso, valorizá-lo no futuro, o bem, seja pela expansão ou reforma, é considerado um ativo e deveria mostrar a sua contrapartida. Além disso, como o projeto tem seis anos de duração, ele é um ativo de longo prazo.
“Observou-se a destinação antecipada de R$ 50 milhões para a implementação dos projetos arquitetônicos de expansão e adequação física e estrutural do Museu do STF, incluindo a ampliação do espaço expositivo interno e a construção de praça rebaixada para acesso externo ao Museu, pelo período de 72 meses, sem os devidos registros de contrapartida no Balanço Patrimonial do Tribunal”, diz o Relatório de Auditoria das Contas.
O documento acrescenta: “A despesa antecipada proporciona um direito a ser reconhecido no ativo, em contrapartida à saída de caixa. Sendo assim, o não reconhecimento contábil do direito ao recebimento do bem patrimonial acarretou uma subavaliação do ativo, o que impactou individualmente, de forma relevante, as demonstrações contábeis do exercício de 2024”.
A advogada tributarista Bianca Xavier explica que a saída do dinheiro foi registrada, mas a contrapartida (o que o STF vai receber pelo valor pago) não está clara. Além disso, não é possível saber se a despesa foi um pagamento ou uma doação. Isso porque, no site da Unesco, o tipo de financiamento do projeto é descrito como “contribuição voluntária/autobenefício”, com o valor de US$ 9.067.992 (R$ 48,7 milhões).
“A análise dos lançamentos contábeis e o relatório da auditoria concluem que o valor está relacionado à construção do museu do STF. Analisando os dados contábeis, verifica-se que, se o valor está relacionado ao museu, estão ausentes as contrapartidas do gasto realizado. Da mesma forma, não há contabilização como doação”, avalia Bianca.

O problema
Ao registrar os R$ 50 milhões como despesa e não como ativo, o STF distorceu o resultado financeiro de 2024, subavaliando seu próprio patrimônio.
Na visão dos auditores internos, as distorções não foram suficientes para a emissão de um parecer sem ressalvas relevantes nas demonstrações contábeis. Em outras palavras, os problemas identificados não foram relevantes a ponto de comprometer a análise geral.
Já os especialistas tributários consultados pela reportagem avaliam que, apesar de tecnicamente esta ser apenas uma falha de classificação, o erro é considerável, porque afeta significativamente as demonstrações contábeis, a percepção dos usuários sobre a situação financeira do tribunal e o resultado do exercício.
Para os tributaristas, qualquer erro que afete a credibilidade e a prestação de contas do Estado é grave, já que a população tem o direito de saber exatamente como o dinheiro público está sendo gasto. Além disso, o valor em questão não é uma quantia irrisória. Os R$ 50 milhões representam 6,8% do volume total auditado (de R$ 819 milhões).
Do valor total das inconsistências contábeis (mais de R$ 56 milhões), R$ 6.564.453,61 se referem a bens móveis sem registros de entrada no sistema de controle do patrimônio do Tribunal (Geafin). A auditoria identificou distorções de R$ 1.016.163,50 na conta de Softwares e de R$ 5.548.290,11 na conta de Equipamentos de Proteção, Segurança e Socorro.
De acordo com o documento, a Administração alega que a divergência é resultado da limitação do Geafin, que “somente permite a regularização após a entrega definitiva do objeto”.
Inconsistência prejudica imagem da corte
Para o jurista André Marsiglia, se a auditoria conclui que as distorções não comprometem a análise geral, o erro contábil pode ser uma questão técnica que foge do controle dos ministros. De toda forma, pondera, a responsabilidade geral é do tribunal porque a inconsistência causa danos ao erário (bens públicos).
“Ainda que não comprometa o orçamento, está errado. Compromete a credibilidade da instituição frente a quem ela serve e impede a população de acompanhar de forma detalhada o uso daquele dinheiro, isso é ruim”, diz Marsiglia.
Ele emenda: “O Estado deve prestar conta dos gastos públicos ao cidadão, não apenas do quanto gastou, mas se gastou bem e de como foi, de forma descriminada”.
A resposta
De acordo com o relatório de auditoria, a administração do STF informou que “foram efetuados os registros devidos no caso de transferências a organismos internacionais, cuja contabilização ocorre de forma automática”.
A auditoria, no entanto, pontuou que essa informação se refere apenas ao procedimento de operação, e ressalta que a transferência foi classificada como despesa corrente, sendo que o projeto tem previsão de implementação em 72 meses.
As obras do museu
A Gazeta do Povo procurou o STF e a Unesco na segunda-feira para obter detalhes sobre a parceria, as novidades no museu e a possibilidade de visitas virtuais, entre outras dúvidas sobre o funcionamento do novo projeto. No entanto, nenhum deles respondeu sobre como será essa cooperação ou esclareceu as dúvidas sobre o pagamento.
Segundo o site da Unesco, a parceria “visa à expansão física, ao desenvolvimento do novo projeto expositivo e à gestão curatorial do Museu do STF, com a finalidade de promover os valores democráticos, os direitos humanos, a cultura constitucional e a cidadania no Brasil”.
Nas palavras do site do STF, “a parceria visa transformar o Museu do STF em um centro cultural de excelência, dedicado à promoção da memória e à educação para a democracia”.
A Unesco realiza projetos de consultoria para museus, como a elaboração de materiais educativos, cooperação técnica e apoio ao desenvolvimento de políticas públicas para o setor. No Brasil, porém, é mais comum atuar em projetos de recuperação e emergências.
A Unesco também é parceira do STF no Programa de Combate à Desinformação, criado em agosto de 2021 para enfrentar as práticas de desinformação “que afetam a confiabilidade na instituição”. O site da organização informa ainda que o projeto começou em dezembro de 2024 e, até setembro de 2025, concluiu apenas 1% da meta.
O site do Museu do STF não traz muitas informações. Nos ícones de “avanços relevantes” e “etapas concluídas”, não há dados, nem menção à ONU ou à Unesco. O site diz apenas que as fases 1, 2 e 3 do projeto executivo foram concluídas com sucesso e que a fase 1 das obras está em andamento. O Banco de Brasília patrocina a obra, que tem parceria da Associação de Magistrados Brasileiros.
No relatório, a expansão é descrita em três fases: expansão e adequação física e estrutural; renovação e concepção da museografia e da expografia; gestão, curadoria e manutenção do Museu do STF. Em nenhuma das fases mencionadas no relatório há citação à ONU, à Unesco ou a qualquer parceria com elas.
A auditoria
A auditoria nas contas anuais foi realizada no período de 1º/8/2024 a 21/3/2025 e, segundo o relatório,conduzida “de acordo com as normas brasileiras e internacionais de auditoria aplicadas ao setor público, ressalvadas às limitações técnicas e a composição da equipe responsável pelo trabalho”. A equipe foi composta por auditores da unidade de Auditoria Interna do STF. As contas do Supremo não foram julgadas em processo de prestação de contas pelo TCU.
Até o momento, o STF não confirmou se a inconsistência foi corrigida.
Fonte: gazetadopovo