O que você diria, honestamente, de um país onde acontecem, acima de qualquer dúvida, os fatos descritos a seguir? Uma pista: esse país é governado por um Politburo composto de 11 juízes que nunca receberam um voto na vida e por um presidente da República que soltaram da cadeia, onde ele cumpria pena de prisão fechada por corrupção passiva e por lavagem de dinheiro — após ser condenado por nove juízes diferentes em três instâncias sucessivas.
Vamos, então, aos tais fatos — só a alguns deles, é claro, pois isso aqui é apenas um artigo de jornal, escrito por um leigo, e não um pesadelo sintático de 300 páginas usinado na em seu português desprovido de análise lógica, de clareza e de sinais de vida inteligente.
É aceitável, por qualquer critério moral, jurídico e dotado de um mínimo senso de decência humana, que o Estado brasileiro mantenha na cadeia uma cabeleireira do interior de São Paulo, com duas crianças para criar e sem nenhum vestígio de prontuário criminal em toda a sua vida? Faz algum nexo racional que ela esteja sendo acusada pelo Estado brasileiro de tentativa de “abolição violenta” da democracia por escrever as palavras “perdeu, mané” numa estátua da Justiça em Brasília durante o quebra-quebra de 8 de janeiro de 2023?
A “Suprema Corte” de Justiça do Brasil quer condenar essa moça, que se chama Débora Rodrigues dos Santos, a penas que podem superar 17 anos de cadeia. É uma sentença que só se aplica, quando se aplica, a homicidas que matam alguém, picam aos pedaços e enfiam numa mala, por exemplo. Nos “Processos de Moscou” da velha Rússia comunista dos anos 30, um dos mais abjetos já montados por uma ditadura desde a execução dos cristãos no Coliseu, a pena máxima para quem escapava do pelotão de fuzilamento era 15 anos no campo de concentração. Aqui é mais.
A possibilidade de Débora conseguir dar um golpe de Estado com seu batom (descrito pelos carcereiros como arma “inflamável”) não seria aceita por um júri de crianças do curso primário. Todos os recursos que ela apresentou até hoje foram negados por Alexandre de Moraes — mesmo quando pediu prisão domiciliar para cuidar dos filhos menores, benefício comum e dado à mulher do ex-governador Sérgio Cabral, condenado a 400 anos de cadeia por corrupção.
O argumento de Moraes é que a cabeleireira oferece um alto grau de “periculosidade”; ela poderia, pelo que foi possível entender até agora, dar um segundo “golpe armado” para derrubar o governo Lula e implantar uma ditadura de extrema direita no Brasil. Para completar, Débora está presa sem julgamento há mais de dois anos. Isso é absolutamente ilegal; é equivalente a um crime de sequestro.
Um ex-presidente do Brasil vai ser julgado, após uma denúncia da PGR contra ele por “golpe de Estado”, por uma câmara de cinco juízes em que três são seus inimigos pessoais. Um deles é o advogado particular do próprio Lula. Outro é o ministro Flavio Dino — que já disse em público que o ex-presidente “não apenas parece ser o demônio, mas é o demônio”. O terceiro, simplesmente, é o próprio ministro Moraes, que há pelo menos seis anos só toma decisões contra ele. Os outros dois são traço.
Jair Bolsonaro, independentemente do que tenha feito ou querido fazer, não terá direito a julgamento por juízes imparciais; não só os três citados acima, mas a maioria quase unânime do plenário, que tem se manifestado em público a sua convicção de que ele é culpado, sim, dos crimes que a PGR denunciou. Ou seja, o julgamento nem começou, mas o ex-presidente já foi condenado. “Vencemos o bolsonarismo”, declarou o presidente do tribunal onde ele receberá a sua sentença. Se já venceram, por que iriam perder no seu próprio tribunal?
Bolsonaro pode ter sido o pior governante do Brasil desde Tomé de Souza, como acham a esquerda, as classes culturais e a maior parte dos comunicadores. Mas seja ele quem for, mesmo o “demônio” do ministro Dino, os seus direitos como cidadão e o que está escrito na lei não podem ser abolidos — como foi feito com Débora. Um dos mais óbvios desses direitos é a presunção de que ele é inocente até que o Estado prove a sua culpa. Mas em dois anos de esforço a polícia, o MP e o ministro Moraes não foram capazes de levantar uma única prova contra os réus do “golpe”. Tudo o que repetem é que têm provas “robustas”. Mas não há até agora prova nenhuma, nem robusta, nem doente e nem de qualquer outro tipo.
O relatório da Polícia Federal que foi copiado pela PGR para montar a denúncia utiliza 98 vezes a palavra “possivelmente”. Num sistema judicial sério, isso não vale nada; só vale ali o que de fato aconteceu, e não o que poderia ter acontecido. Se a polícia não sabe, paciência; que procurem, então, alguma outra coisa que possam provar. Mas não é isso que está sendo feito. As acusações da PGR e da PF são puro “se não tem tu, vai tu mesmo”. É uma possibilidade de crime? Então qualquer coisa serve.
O ex-presidente foi acusado de mandar matar, de querer matar ou de pensar em matar — isso mesmo, matar — o presidente Lula, o ministro Moraes e até mesmo Geraldo Alckmin. Uma acusação deste tamanho tem de vir acompanhada por uma prova desse mesmo tamanho. Não veio nada. Não virá nunca. Enfim, a grande bomba termonuclear dos acusadores, a “delação premiada” do coronel Cid, acabou se transformando num busca-pé que rodou, rodou e não foi a lugar nenhum. Não existe ali a mínima prova capaz de confirmar nenhuma das histórias que contou. Sua delação foi cancelada, depois ressuscitada; ele disse que foi ameaçado (e foi mesmo, pelo ministro Moraes em pessoa) de voltar para a prisão, com sua família inteira, se não dissesse o que a PF queria.
O que realmente se tem, após dois anos de labor diário, é um grande nada. A polícia, o MP e quem ficou reproduzindo cada sílaba que ambos disseram foram informados de que já tinha se decidido, lá no alto, quem era o culpado. A partir daí, que providenciassem as “provas robustas” — inclusive a prodigiosa “minuta do golpe”, um pedaço de papel sem assinatura e que não serviria para depor nem o guarda noturno da sua quadra. Fizeram isso, e fizeram malfeito. Em qualquer sistema judicial com um mínimo de respeito a si próprio, todas as provas da PGR e da PF iriam direto para o cesto do lixo.
E então — o que você diria depois de verificar isso tudo? Continua a achar que o ministro Moraes está salvando a democracia brasileira com os processos de Brasília? Criou-se no Brasil de hoje o hábito de aceitar, com uma salva de palmas, que a lei seja violada pelo sempre que a violação prejudicar a “direita”, o “fascismo” e o inimigo político em geral. Não está claro se isso, depois de ter começado, vai parar algum dia.
Fonte: revistaoeste