Na próxima terça-feira (2), o Supremo Tribunal Federal (STF) inicia o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de outros sete réus acusados de tentativa de golpe de Estado em 2022. Ao longo de cinco dias, os ministros Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin ouvirão as conclusões da acusação e da defesa, declarando, ao final, a culpa e as penas de cada um.
O julgamento seguirá o roteiro protocolar das ações penais que tramitam no STF, com tempo generoso para os advogados defenderem seus clientes na tribuna e a reanálise de cada uma das numerosas contestações da defesa à condução do caso por Moraes, que supervisionou de perto a investigação. A condenação é tida como certa tanto no meio jurídico quanto no político, com discussões já em andamento sobre o tempo da pena, locais e condições da prisão do ex-presidente e de outros réus militares.
Muito antes da investigação, formalmente iniciada em 2023, Moraes e seus colegas adotaram, de forma quase unânime, uma retórica de dura repreensão à conduta de Bolsonaro e seu grupo político, atribuindo a eles ações que colocariam em risco as instituições, a política e a democracia. O ex-presidente angariou a antipatia da maioria dos ministros ainda durante seu mandato, devido às constantes queixas sobre a interferência do tribunal no governo e às acusações de favorecimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva na eleição de 2022.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) sustenta que, já em 2021, prevendo uma possível derrota para Lula, Bolsonaro começou a disseminar, maliciosamente, a ideia de que seria vítima de uma futura fraude nas urnas eletrônicas. A atitude, segundo a PGR, visava mobilizar, de antemão, parte da população para se insurgir contra o resultado.
A revolta se concretizou em 12 de dezembro de 2022, dia da diplomação de Lula no TSE, com incêndios em Brasília e tentativa de invasão da Polícia Federal; e em 8 de janeiro de 2023, com a invasão e depredação do STF, do Congresso e do Palácio do Planalto. Desde o segundo turno da eleição, apoiadores de Bolsonaro acamparam em frente ao Quartel-General do Exército e a outras unidades militares no país, reivindicando uma intervenção militar para impedir a posse de Lula.
Esse é o enredo narrado pela PGR na denúncia e, em grande parte, já acolhido pelos ministros para condenar Bolsonaro e outras 30 pessoas, entre ex-ministros, militares e assessores. Todos foram acusados de cinco crimes: golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado da União. Somadas, as penas podem passar dos 40 anos de prisão.
Para dar andamento mais rápido ao caso de Bolsonaro, o procurador-geral da República resolveu separar os réus em cinco grupos, denominados “núcleos”. Nesta semana, o STF julgará o primeiro deles, composto por:
- Jair Bolsonaro, ex-presidente da República;
- Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e ex-candidato a vice na chapa de Bolsonaro;
- Anderson Torres, ex-ministro da Justiça;
- Augusto Heleno, ex-ministro do GSI;
- Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin;
- Almir Garnier, ex-comandante da Marinha;
- Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; e
- Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência.
Delação de Cid é base para condenar Bolsonaro e demais réus
A denúncia foi baseada na delação de Mauro Cid, preso em maio de 2023. A prisão foi determinada por Moraes como parte de uma investigação sobre um fato menor: a emissão de um comprovante falso de vacina contra a Covid para Bolsonaro.
A devassa do celular de Cid revelou que, no fim de 2022, diante das manifestações por intervenção militar, oficiais tramavam planos para manter Bolsonaro no poder. Na casa de Anderson Torres, foi encontrada minuta de um decreto para instituir estado de defesa no TSE e refazer a eleição.
Ao longo da investigação, foram achados arquivos digitais descrevendo medidas mais radicais, incluindo um plano, chamado Punhal Verde e Amarelo, para prender ou executar Moraes, que na época presidia o TSE, bem como Lula e o vice-presidente Geraldo Alckmin; e estratégias para implementar um gabinete de crise, formado por militares, que preparasse o país para uma nova eleição.
A história narrada pela PGR na denúncia foi, em boa medida, baseada nos relatos de Mauro Cid, que, pressionado pela prisão e possibilidade de punição até de parentes, firmou um acordo de delação premiada.
Em 2024, ele desabafou, com um familiar, que sofreu pressão da PF para confirmar a “narrativa”. Queixou-se da atuação de Moraes, que nunca disfarçou o papel de investigador no caso. “Ele já tem a sentença dele pronta. Só está esperando passar um tempo. O momento que ele achar conveniente, denuncia todo mundo, o PGR acata, aceita e ele prende todo mundo”, disse. Os áudios foram vazados pela imprensa no início do ano passado e Cid foi novamente preso por Moraes. Diante do ministro, desmentiu o que disse ao interlocutor, mas só foi liberado um mês depois.
Cid voltou a ser pressionado no fim do ano passado, quando a PF disse que, na colaboração, ele omitiu a participação de Braga Netto no fornecimento de dinheiro para uma operação de militares de forças especiais – chamados “kids pretos” – para seguir Moraes pelas vias de Brasília, inclusive perto de sua residência funcional. Seria, segundo a PF, a tentativa de executar o plano de “neutralização” do ministro.
A operação, chamada Copa 2022, foi abortada porque Bolsonaro não teria assinado, no dia 15 de dezembro, a “minuta do golpe”. Trata-se de outro ponto relevante da denúncia. Segundo Cid, o ex-presidente, na época, se reunia com os comandantes das Forças Armadas para buscar apoio à medida.
Só não teria levado a ideia adiante porque o general Marco Antônio Freire Gomes, então chefe do Exército, se posicionou contra. O ex-comandante da Aeronáutica, Carlos Baptista Júnior, também se opôs. Cid disse que o único que apoiou foi Almir Garnier, ex-chefe da Marinha.
Ministros já disseram que os crimes ocorreram
No julgamento que começa nesta terça, a suposta participação de cada réu nos delitos apontados pela PGR será avaliada pelos ministros. A etapa consiste na aferição da autoria dos crimes. A materialidade, isto é, a efetiva ocorrência dos crimes, já foi, em larga medida, aceita pelos ministros no ato de recebimento da denúncia, em julgamento realizado no fim de março, na Primeira Turma do STF.
“É sempre importante nós recordarmos que os crimes praticados no dia 8 de janeiro, em relação à sua materialidade – não estamos falando em autoria ainda – foram gravíssimos”, disse Moraes na ocasião, para rebater argumentos, dos advogados, de que os atos de vandalismo nunca poderiam levar a um golpe de Estado.
“Nós já realizamos e homologamos 542 acordos de não persecução penal oferecidos pelo Ministério Público, em que 542 réus – porque no caso a denúncia já tinha sido oferecida e aceita – confessaram que faziam parte de um grupo criminoso, uma associação criminosa, que pleiteava a intervenção militar e o golpe de Estado”, afirmou Flávio Dino, em referência à confissão de réus detidos em frente ao QG do Exército que, para escapar de uma pena de prisão, confessaram os crimes.
“É preciso desenrolar do dia 8 para trás, para a gente chegar a essa máquina que tentou desmontar a democracia, e isso é um fato. Acho que isso não é negado por ninguém em sã consciência. Todo mundo assistiu. Assistiu pelas televisões, assistiu pelas redes sociais. Assistiu de toda forma ao quebra-quebra e à tentativa de matar o Supremo, como já tinha sido tentado de extinguir o Tribunal Superior Eleitoral”, declarou Cármen Lúcia.
Na ocasião, Zanin fez um voto mais contido, apenas dizendo que havia elementos suficientes para abrir a ação penal. Luiz Fux fez uma série de ressalvas sobre o processo – votou contra a competência do STF para analisar o caso e criticou as várias versões de Cid em sua delação. Ainda assim, votou para receber a denúncia e abrir o processo. “Não se pode de forma alguma dizer que não aconteceu nada. É absolutamente impossível se afirmar isso”, disse Fux.
Qual o roteiro do julgamento de Bolsonaro
Para julgar Bolsonaro e os outros sete réus no processo, Moraes reservou cinco sessões ao longo desta e da próxima semana, nos seguintes dias e horários:
- 2/9 (terça-feira), às 9h e às 14h
- 3/9 (quarta-feira), às 9h
- 9/9 (terça-feira), às 9h e às 14h
- 10/9 (quarta-feira), às 9h
- 12/9 (sexta-feira), às 9h e às 14h
No primeiro dia, Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma, anunciará o início do julgamento e cederá a palavra a Alexandre de Moraes, que fará a leitura do relatório – um resumo de todas as etapas do caso, desde a investigação até as alegações finais.
Ainda na terça, está prevista a sustentação oral de Paulo Gonet, com as conclusões da acusação – ele terá duas horas para defender a condenação dos réus.
Em seguida, os advogados dos acusados farão suas sustentações orais – poderão contestar novamente a regularidade do processo, bem como apontar causas para absolvição. Cada um terá prazo de uma hora para falar perante os ministros. É provável que essas sustentações se estendam até a quarta-feira (3).
Depois, começam os votos dos ministros. Nesse ato, eles deverão analisar as questões preliminares – ou seja, as alegadas falhas no processo – e as acusações específicas contra cada réu, votando pela absolvição, se entender que determinado acusado é inocente, ou condenação, se considerar que há culpa.
Para a condenação, são necessários ao menos três votos nesse sentido entre os cinco ministros da Primeira Turma do STF. Depois, os ministros votam novamente, desta vez para definir a pena para cada um dos que foram considerados culpados, levando em conta o grau de participação nos atos, bem como fatores agravantes e atenuantes.
O primeiro a votar será Alexandre de Moraes. Depois votam, nesta ordem, Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin. Essa fase deve ocorrer na semana que vem.
No dia 12, o resultado deve ser proclamado. Nas semanas seguintes, será publicado o acórdão – documento que formaliza a decisão. Só depois, cada um dos réus poderá apresentar recursos, chamados embargos de declaração, a serem julgados pela própria Primeira Turma.
Atualmente, o entendimento que prevalece no STF é de que a pena pode começar a ser cumprida após a rejeição do segundo recurso. A expectativa é de que isso ocorra ainda neste ano – só pode atrasar se, no julgamento, um ministro pedir vista. Com isso, tem direito a analisar o processo por mais 90 dias.
Como os réus se defenderam no processo
Nas alegações finais, última manifestação da defesa no processo, os advogados de Jair Bolsonaro rebateram a acusação da PGR de que, desde 2021, ele teria lançado dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas com o objetivo de obter apoio popular para reverter a eleição em caso de derrota.
A defesa argumenta que seus discursos e pronunciamentos sobre o assunto eram manifestações de opinião política e que, há mais de uma década, ele defende o voto impresso. “São opiniões livres, que refletem parte do que não só a sociedade, mas também o corpo político defende ainda hoje.”
Os defensores também dizem que, no processo, provou-se que Bolsonaro contribuiu ativamente para a transição de governo, inclusive nomeando antecipadamente comandantes das Forças Armadas escolhidos por Lula.
Os advogados afirmam ainda que as conversas de Bolsonaro com os chefes das Forças Armadas foram um “brainstorm”: “não passaram, quando muito, de cogitação” – algo que a legislação penal não pune. Também dizem não haver prova de que Bolsonaro soubesse ou controlasse planos de prisão ou assassinato de autoridades, nem de contato com os manifestantes do 8 de janeiro.
A defesa de Walter Braga Netto, candidato a vice de Bolsonaro, afirmou que as declarações de Cid foram fruto de “coação” por parte da PF, com “versões modificadas” e “narrativas acusatórias encaixadas” para incriminar o general.
Os advogados disseram que uma reunião ocorrida na casa de Braga Netto – com militares que teriam planejado o atentado contra Moraes – foi uma “simples visita de cortesia”. Sustentam não haver provas de que ele tenha entregado dinheiro para Mauro Cid repassar aos executores do plano.
Em sua defesa, Augusto Heleno buscou explicar declarações fortes que deu numa reunião de julho de 2022 com Bolsonaro para discutir a eleição. As expressões “dar soco na mesa” e “virar a mesa”, segundo seus advogados, foram ditas em um contexto de “discussão política”, no “calor do momento”, e não indicam a intenção de um golpe.
“Sua fala foi em sentido figurado e mal interpretada. Em discussões políticas, muitas vezes os ânimos acabam exaltados e palavras são ditas no calor do momento, mas em nenhum momento foi empreendido algo no sentido de alguma ação não republicana”, disseram os advogados.
A defesa ainda alegou que, na segunda metade do mandato de Bolsonaro, período em que se concentram os fatos da denúncia, Heleno teria se afastado do coração do governo após o ingresso do Centrão, perdendo espaço no dia a dia de Bolsonaro.
Anderson Torres alegou, em sua defesa, que o documento apreendido em sua casa em 12 de janeiro de 2023 – a minuta de um decreto para realizar novas eleições – estava disponível na internet desde dezembro e podia ser encontrada no Google. Os advogados dizem que o papel foi deixado lá por “mero esquecimento material”.
Os advogados também negam que ele tenha sido omisso no 8 de janeiro de 2023. Provam que suas férias estavam marcadas desde julho de 2022 e que, no dia 6, se reuniu com a equipe de Segurança Pública do Distrito Federal e aprovou um plano que previa o impedimento de manifestantes na Esplanada dos Ministérios.
A defesa de Alexandre Ramagem rebateu a acusação de que ele teria influenciado Bolsonaro na descredibilização das urnas eletrônicas. A defesa diz que documentos encontrados pela PF em seu celular com críticas ao sistema eram uma “mera reiteração” e “compilado” de manifestações públicas anteriores do ex-presidente, que já vinha criticando o sistema eleitoral e defendendo o voto impresso desde 2015. “Não havia ‘nada de novo, nenhum acréscimo de argumento ou ineditismo nos fundamentos”.
A defesa final de Paulo Sérgio Nogueira afirmou que ele atuou para demover Bolsonaro da ideia de adotar qualquer medida de exceção. Segundo seus advogados, ele temia que grupos radicais levassem o ex-presidente a assinar uma “doideira”.
Lembrou ainda que ele, como ministro da Defesa, propôs a Bolsonaro um discurso de pacificação que reconhecia o resultado das eleições e conclamava a desmobilização das manifestações, que, no entanto, não foi adotado pelo então presidente.
Mauro Cid, por sua vez, disse que apenas intermediava contatos de Bolsonaro com outros interlocutores na época, não tendo qualquer poder de comando sobre atos dos outros acusados. Pediu a absolvição total, acrescentando que colaborou ativamente para a elucidação do caso.
Fonte: gazetadopovo