Duas ações apresentadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) podem invalidar os cinco principais pedidos de impeachment de ministros da Corte, protocolados no Senado com o objetivo de destituir Alexandre de Moraes.
As ações, ajuizadas em setembro pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pelo partido Solidariedade, pedem que o STF harmonize a Lei do Impeachment (1950) com os princípios da Constituição de 1988.
Na prática, sem alterar a lei, a Corte pode impor obstáculos adicionais à proposição e ao avanço de pedidos de impeachment protocolados contra seus membros no Senado. Dentro do STF, há interesse em julgar essas ações não só para anular os pedidos atuais, mas em razão do temor dos ministros de que, a partir de 2027, a direita faça maioria suficiente no Senado para eleger um presidente da Casa e começar a derrubar ministros.
A AMB e o Solidariedade pedem, por exemplo, que o afastamento de um ministro durante um eventual processo só seja aprovado se obtiver votos favoráveis de dois terços dos senadores, e não da maioria simples no plenário do Senado, como prevê a lei.
O Solidariedade, por sua vez, propõe dois filtros adicionais: 1) que a Procuradoria-Geral da República (PGR) seja a única a apresentar pedidos de impeachment ao Senado; e 2) que “em nenhuma hipótese” o impeachment seja instaurado “em razão de votos e opiniões proferidos no exercício da função jurisdicional”.
Se o STF acatar esses pedidos do Solidariedade, os cinco principais pedidos de impeachment contra Moraes no Senado, apresentados por parlamentares de direita, seriam praticamente invalidados.
Quatro deles seriam arquivados por se basearem em decisões e atos do ministro como magistrado. O quinto, apesar de focar no comportamento do magistrado, também seria invalidado por não ter sido, como os demais, apresentado pela Procuradoria-Geral da República.
Esses pedidos poderiam ser invalidados porque a AMB pede, em sua ação, que a decisão do STF sobre a Lei do Impeachment tenha eficácia ex tunc, ou seja, seja aplicada também a atos do passado, e não apenas a situações futuras, posteriores à decisão que vier a ser tomada.
Relator das ações, o ministro Gilmar Mendes já pediu pareceres do Senado, da Câmara, da Presidência da República, da Procuradoria-Geral da República (PGR) e da Advocacia-Geral da União (AGU) para decidir se acata ou não os pedidos da AMB e Solidariedade.
O Senado, por meio de parecer de sua advocacia, se manifestou contra todas as mudanças propostas pela AMB e pelo Solidariedade (leia, mais abaixo, os argumentos).
Só contra Alexandre de Moraes, há 40 pedidos de impeachment sobre a mesa do presidente do Senado, a quem cabe autorizar o início do processo. O atual presidente, Davi Alcolumbre, já disse que não vai abrir nenhum durante seu mandato, que termina em 2027.
Por que o Solidariedade quer impedir impeachment com base em decisões
O Solidariedade argumenta que pedidos de impeachment não podem se basear nas decisões de um ministro porque isso afrontaria a independência judicial.
Para o partido, a redação da Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950) dá motivo “à temerária instauração de processo de impeachment contra Ministro do Supremo Tribunal Federal em razão de discordância sobre a aplicação da lei, o que viola frontalmente o postulado da independência do Poder Judiciário”.
Trata-se da tese de que não se pode punir um magistrado pelo chamado “crime de hermenêutica”, isto é, um delito (inexistente) que deriva da interpretação que o juiz faz da lei ao aplicá-la a um caso concreto, para decidir de uma ou de outra forma.
Segundo essa ótica, a resposta à decisão de um ministro deve se dar por meio de recursos no próprio STF, e não num processo de impeachment que o retire do cargo.
“O impeachment pode se converter em instrumento de ingerência arbitrária do sistema político em outro Poder”, alerta o Solidariedade, com base em decisão recente, nesse mesmo sentido, da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
“O impeachment de Juízes não pode decorrer do sentimento de contrariedade ou inconformismo com atos jurisdicionais típicos, praticados pelos magistrados no exercício da função judicante. Os processos de impeachment devem ser reservados para casos graves, e não para situações de irresignação com decisões proferidas por Ministro do STF”, diz ainda o partido.
Em que medida pedidos de impeachment contra Moraes estão baseados em decisões
Dos 40 pedidos de impeachment em andamento contra Moraes no Senado, cinco foram apresentados por parlamentares ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Por isso, trata-se dos pedidos prioritários para os senadores mais engajados em destituir o ministro, acusando-o de atos e decisões que, segundo os parlamentares, materializaram perseguição política abusiva contra Bolsonaro e seus apoiadores.
O pedido mais recente, apresentado em 13 de agosto pelo deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) e subscrito por mais 36 deputados do PL, refere-se a um amplo leque de decisões de Moraes. Abrange desde prisões, buscas, bloqueios de redes e contas determinadas pelo ministro desde 2019 no inquérito das fake news (INQ 4781) até a recente decisão que proibiu Bolsonaro de usar as redes sociais.
Os deputados citam também a condução do processo contra Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão, preso por ordem de Moraes em 8 de janeiro de 2023 e que morreu na Penitenciária da Papuda em novembro daquele ano antes de ser julgado, mesmo após um pedido da Procuradoria-Geral da República para soltá-lo, que não foi apreciado por Moraes.
O pedido cita até uma decisão de julho deste ano em que o ministro suspendeu um decreto do Congresso que havia derrubado o aumento do imposto IOF em transações financeiras determinado pelo governo Lula. Segundo o pedido, um “inequívoco ato de usurpação de competência legislativa e de interferência indevida na política econômica do país, configurando ativismo judicial grave e crime de responsabilidade”.
Outro pedido apresentado em agosto, assinado pelo líder do PL, Sóstenes Cavalcante, e mais quatro deputados do partido, destaca uma decisão de julho de Moraes que desmontou um acampamento de parlamentares que protestavam em frente ao STF.
O ministro ainda proibiu o acesso e a permanência de parlamentares e de quaisquer outros cidadãos na área e autorizou prisão em flagrante em caso de resistência. Para os deputados, configuraram crime de abuso de autoridade, desvio do devido processo legal, afronta à liberdade de expressão, de reunião pacífica e à imunidade parlamentar.
Um terceiro pedido de impeachment de Moraes, apresentado em julho pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), tem como foco as restrições impostas por Moraes naquele mês a Bolsonaro – o veto ao uso de redes sociais, à concessão de entrevistas e declarações públicas, bem como a proibição de contato com autoridades estrangeiras e com o filho e deputado Eduardo Bolsonaro (PL-RJ).
Apesar de se referir a decisões judiciais, Flávio argumentou que o pedido de impeachment, nesse caso, não teria como pretensão afrontar a independência judicial, nem seria uma ingerência do Legislativo nas competências do Judiciário.
“O que se apresenta não é uma divergência interpretativa comum, mas um conjunto de condutas concretas e reiteradas que revelam a quebra da imparcialidade judicial e a violação ao devido processo legal por parte de um ministro da Suprema Corte, que atua em processos nos quais figura, objetivamente, como parte interessada”, diz Flávio.
O quarto pedido de parlamentares contra Moraes foi apresentado em setembro do ano passado pelos deputados Marcel Van Hattem (Novo-RS), Bia Kicis (PL-DF), Caroline de Toni (PL-SC) e pelo senador Rogério Marinho (PL-RN). Ele tem como foco decisões tomadas pelo ministro que bloquearam e desmonetizaram perfis em redes sociais de Eduardo Bolsonaro, jornalistas e influenciadores de direita.
O foco recai sobre os procedimentos adotados pela equipe de Moraes no STF e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revelados em mensagens de WhatsApp de ex-auxiliares do ministro publicadas pela Folha de S.Paulo na época.
As reportagens mostraram pedidos informais e direcionados de investigação. Além disso, medidas drásticas, como bloqueio de passaportes, quebras de sigilo, bloqueio de contas bancárias e intimações para depor à Polícia Federal teriam sido fundamentadas em elementos colhidos fora do rito jurídico tradicional e sem a devida provocação do Ministério Público.
Mais do que sobre as decisões, o foco se dá sobre a forma de atuação e a conduta de Moraes nesses processos, que, segundo os parlamentares, “vem atuando para desestabilizar o necessário equilíbrio entre as instituições, bem como violado o devido processo legal, o sistema acusatório, o princípio da inocência”.
O quinto pedido em tramitação no Senado contra Moraes é assinado pelo deputado Bibo Nunes (PL-RS). É o único que tem como foco não decisões judiciais de Moraes como ministro, mas sua conduta na confusão ocorrida com ele no aeroporto de Roma, em julho de 2023. Na ocasião, Moraes e sua família se desentenderam com outra família na entrada de uma sala VIP.
Moraes enviou à Polícia Federal uma representação acusando o empresário Roberto Mantovani de agredir seu filho com um tapa. Na ocasião, a mulher do empresário teria chamado Moraes de “bandido, comprado e fraudador de urnas”. O ministro respondeu que seriam identificados e chamou Mantovani de bandido.
No Brasil, Moraes enviou uma representação para a Polícia Federal para investigar a família, que foi alvo de busca e apreensão. A medida foi determinada pela então presidente do STF, Rosa Weber, e a investigação foi conduzida por Dias Toffoli. O caso foi arquivado em 2024 depois que a família se retratou com Moraes.
Ainda assim, para Bibo Nunes, Moraes criou uma situação que “compromete não apenas a honra, a dignidade e o decoro do cargo do ministro, mas também a integridade de uma instituição republicana tão fundamental como o Supremo Tribunal Federal”, destacando a atuação de Moraes para incriminar a família no Brasil.
“Essa conduta afeta a imagem do Judiciário ao submeter a estrita observância dos ritos processuais judiciais a questionamentos”, diz Bibo Nunes no pedido. O deputado ainda diz que, com o pedido, não se quer proteger partes de um processo conduzido por Moraes, mas sim o fortalecimento dos preceitos da Constituição.
Senado é contra restrições propostas pelo Solidariedade
Por meio de sua advocacia, o Senado enviou ao STF parecer contrário aos pedidos da AMB e do Solidariedade para impor condições mais rígidas para o impeachment de ministros. Em relação à proposta de impedir pedidos baseados em decisões, votos e opiniões, os advogados do Senado argumentaram que a Lei do Impeachment não busca responsabilizar ministros por “ato jurisdicional típico”.
“O dispositivo, quando corretamente interpretado, não criminaliza a divergência de teses ou fundamentos jurídicos, mas coíbe situações excepcionais em que a atividade jurisdicional seja utilizada como instrumento de desvio funcional ou abuso deliberado contra a própria Constituição”, diz o parecer do Senado.
Acrescentou que, na análise dos pedidos, a Presidência do Senado descarta aqueles apresentados por “mera discordância quanto ao conteúdo das decisões”.
“O processo de impeachment não se destina a rever ou punir decisões judiciais, mas, sim, condutas graves de desvio de função ou abuso, caracterizadas na Lei como crime de responsabilidade. Nesse sentido, o controle político não sobrepuja a independência judicial”, diz ainda o parecer do Senado.
Oposição critica ações no STF
Parlamentares da oposição defendem a plena constitucionalidade da lei e classificam as propostas da AMB e do Solidariedade como uma “blindagem excessiva” e uma tentativa de “usurpar” a competência exclusiva do Senado Federal.
O senador Eduardo Girão (Novo-CE) diz que eventual decisão favorável do STF nas ações “tende a deslocar o eixo de poder em favor do Judiciário, ao intervir em matéria que a Constituição confiou essencialmente ao Congresso.” “Soa como blindagem excessiva, afastando o controle democrático e reforçando a percepção de um tribunal cada vez mais opressor e imune à fiscalização”, afirmou.
O senador Jorge Seif (PL-RJ) concorda. “Mais uma invencionice interpretativa para blindar ministros de qualquer responsabilização”. Ele acrescenta que a Constituição Federal já é “clara e autoexplicativa” sobre os casos que podem ensejar o afastamento. Segundo ele, o movimento no STF é uma reação ao avanço real de pedidos de impeachment no Senado, que já contam com um número expressivo de assinaturas.
Magno Malta (PL-ES) considera as ações uma “tentativa clara de reescrever a Constituição por via judicial”. Ele afirma que a Carta “não deixa dúvidas: cabe exclusivamente ao Senado processar e julgar ministros do Supremo por crimes de responsabilidade”, e qualquer restrição representa uma “invasão frontal de competências”.
O que dizem os ministros do STF
Em 16 de setembro, dia em que a AMB e o Solidariedade ajuizaram as ações, Gilmar Mendes adiantou que o STF não aceitaria pedidos de impeachment de ministros baseados em decisões judiciais.
“Não espero que o Senado venha a agir para buscar vindita em relação ao STF. Impeachment deve ser um processo regular. Se for por conta do voto de um ministro, seria irregular. O STF não vai aceitar”, afirmou, durante um ato em São Paulo contra a anistia aos condenados do 8/1.
No último dia 26, em conversa com jornalistas no STF, o ministro Luís Roberto Barroso reforçou o argumento. Disse que o impeachment de ministro se justificaria se fosse comprovado “um episódio grave de corrupção”.
“O impeachment não é um produto de prateleira para se livrar de alguém de quem você não goste politicamente”, afirmou. Barroso acrescentou que o STF teria competência para rever um impeachment, caso fosse provocado.
“Os crimes de responsabilidade têm uma tipificação constitucional e uma tipificação legal. E, portanto, qualquer processo de impeachment, como todo ato num Estado Democrático de Direito, é passível de controle à luz da Constituição. E quem faz esse controle é o Supremo Tribunal Federal”, disse o ministro.
Fonte: gazetadopovo