Uma de minhas piadas favoritas: um cara pula do centésimo andar de um arranha-céu. Quando passa pela janela de um escritório no vigésimo, o sujeito olha para dentro, sorri e grita para o pessoal lá dentro: “Não se preocupem! Até agora, tudo bem!”.
Vamos deixar o humor de lado por um momento e analisar a situação. Temos um sujeito em uma trajetória que, de acordo com as inabaláveis leis da física, da biologia humana e da probabilidade básica, levará sua vida a um fim inevitável – e espetacular – em poucos segundos. Mas a evidência empírica que ele tem, naquele exato momento, durante sua passagem pelo vigésimo andar, é que, exceto talvez pela leve sensação de desconforto que a queda livre causa na boca do estômago, tudo está, de fato, indo muito bem.
E é a isso que ele se apega: isola esse momento de qualquer contexto relevante ou informação dissonante. Ele censura tudo, menos o aqui e o agora. Sem implicações, sem conexões, sem deduções ou extrapolações. Portanto, “até agora, tudo bem”.
Claro, dado que o encontro problemático com a calçada vai acontecer de qualquer maneira, talvez essa seja a coisa mais saudável que o pobre homem pode fazer. Mas, e se alguém no octogésimo andar tivesse oferecido um paraquedas? Ou se o Super-Homem tivesse aparecido voando e se oferecesse para pegá-lo? Teria sido racional recusar essas ofertas porque, afinal, “até agora, tudo bem”?.
Acredito que muito poucas pessoas responderiam “sim” à pergunta acima. No entanto, “até agora, tudo bem” parece estar a caminho de se tornar a nova atitude “centrista”, ou supostamente “racional”, em relação às mudanças climáticas. Outro dia, foi Bill Gates quem abraçou a linha “não é o fim do mundo, temos coisas mais importantes para nos preocupar”. Na semana passada, o governo brasileiro decidiu abrir novos campos de petróleo.
O fato de que as áreas de exploração envolvidas encontram-se na Amazônia incorpora alguma ironia à situação, mas o ponto principal é que grandes investimentos serão feitos para adicionar mais carbono à atmosfera, em um momento em que a mais comezinha sanidade ambiental exige exatamente o oposto. O presidente Lula disse que o dinheiro do petróleo da Amazônia ajudará a pagar pela transição energética. Isso tem a mesma lógica de estimular as vendas de cigarros, prometendo usar o dinheiro para tratar o câncer de pulmão.
Tanto Gates quanto Lula parecem estar no modo “até agora, tudo bem”. Claro, a situação climática é mais sutil do que a do nosso saltador otimista — ele é personagem de uma piada e nós estamos no mundo real. Gates está certo ao dizer que a mudança climática “não causará a morte da Humanidade”. A questão é que as coisas não precisam ser letais no nível de extinção global para serem muito, muito ruins.
Nossa atual civilização global floresceu graças a uma série de condições ambientais que agora sofrem interferência crescente das mudanças climáticas – e, sim, nós (como espécie) podemos nos adaptar às novas condições, mas quanto da civilização podemos levar conosco para o próximo cenário, e a que custo, é questão em aberto. Gates agora diz que a preocupação com as metas de emissões de CO2 e de temperatura está desviando recursos da luta contra causas mais urgentes de sofrimento humano. Então, devemos repriorizar.
Essa abordagem atomizadora, de tratar cada desafio como um problema perfeitamente discreto, ignora efeitos sinérgicos: tentar combater, digamos, a malária sem levar em conta que o aumento das temperaturas fará com que o mosquito da malária se sinta em casa em cada vez mais partes do mundo seria como enxugar gelo. O mesmo vale para a abertura de novos campos de petróleo para combater a pobreza (a riqueza do petróleo, espera-se, criaria empregos, etc.): a mudança climática, estimulada pelas emissões de CO2, gerará pobreza, ao forçar as pessoas a gastar em mitigação e, até mesmo, a migrar, com todas as tensões sociais e políticas que acompanham o deslocamento populacional.
A abordagem atomizadora está no cerne da atitude “até agora, tudo bem”: um foco em métricas parciais e instantâneas, somado a uma ignorância deliberada quanto a tendências, contextos e consequências previsíveis de longo prazo.
De onde vem essa retórica? Por que entrou na moda, assim de repente? Meu palpite é que se trata de um discurso que os líderes mundiais estão ensaiando — com um empurrãozinho do setor “greenwashing” da energia fóssil, a turma do “Senhor, dai-me energia limpa, mas não agora” — como uma maneira de driblar as críticas ao que promete ser uma convenção climática altamente frustrante e desprovida de brilho, a COP-30 no Brasil.
Interesses petrolíferos e líderes políticos focados no curto prazo querem se livrar de compromissos desagradáveis e metas verificáveis, substituindo-os por elucubrações vagas sobre “desenvolvimento” e “preocupação” (declarar-se “preocupado” com algo que se vê acontecer bem debaixo do nariz é uma tática antiga). É preciso reconhecer a chicana, expô-la e resistir a ela.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Pura Picaretagem” (Leya), “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares) e “Que Bobagem!” (Editora Contexto). Uma versão anterior deste artigo foi publicada em https://carlosorsi.substack.com
Fonte: abril






