No final de agosto, um homem foi solto pela Justiça do Ceará após passar mais de três anos preso por estupro e sequestro. O motoboy, de 27 anos, havia sido condenado a nove anos de prisão porque uma mulher – vítima de uma agressão real – associou erroneamente o homem, que era seu ex-namorado, ao crime.
A confusão levou à condenação do rapaz devido apenas à palavra da mulher, que anos mais tarde revelou à Justiça que havia se confundido. A mudança se deu após a Defensoria Pública cearense, responsável pela defesa do motoboy, reunir provas e testemunhas que confirmaram que o homem estava em sua casa no momento do crime.
O caso não tem relação direta com a lei Maria da Penha, mas ilustra um problema que uma atualização da lei, que entrou em vigor em 2023, trouxe: a palavra da suposta vítima, mesmo sem provas, ganhou ainda mais poder – o que trouxe benefícios no enfrentamento a casos reais de violência, mas também gerou insegurança jurídica em casos de falsas denúncias.
Com as novas regras, medidas protetivas passaram a poder ser concedidas de forma imediata mediante o simples depoimento da suposta vítima na delegacia ou a apresentação de suas alegações por escrito. Nenhuma comprovação da violência é exigida, nem mesmo é necessário registrar boletim de ocorrência para que as medidas protetivas sejam estabelecidas contra o suposto agressor – apesar de o pedido poder ser negado caso a delegacia aponte inexistência de risco à integridade da mulher.
Por fim, as recentes mudanças na lei Maria da Penha abriram brechas para que, mesmo que uma ação judicial absolva o homem acusado de violência, as medidas sigam mantidas a pedido da mulher. As medidas protetivas de urgência, que podem ser impostas após uma denúncia de violência doméstica, vão do afastamento do suposto agressor do local de convivência com a denunciante até a obrigação de pagar pensão alimentícia provisional.
Para evitar o mau uso da lei e ao mesmo tempo preservar a proteção de vítimas de agressões reais, a deputada Julia Zanatta (PL-SC) apresentou um projeto de lei, no dia 14 de outubro, propondo a criação de regras para garantir o direito ao contraditório e à ampla defesa na concessão de medidas protetivas de urgência, além de previsão de responsabilização criminal e civil nos casos de falsas acusações.
Se comprovada má-fé, falsa denúncia pode render até oito anos de prisão
As regras sugeridas se concentram no artigo 18 da lei Maria da Penha, que define as providências que o juiz deve adotar ao receber um pedido de medidas protetivas de urgência.
Em primeiro lugar, a deputada propõe que o homem acusado deve ser imediatamente notificado e deverá apresentar manifestação escrita no prazo de sete dias após a denúncia – atualmente o juiz pode decidir apenas com base no relato da vítima, sem ouvir previamente o acusado. Ao receber a manifestação, o magistrado deve obrigatoriamente reavaliar as medidas protetivas de urgência concedidas levando em conta os argumentos.
A deputada também propõe acrescentar no artigo uma regra que prevê o encaminhamento de denúncias falsas para o Ministério Público, para apuração de “comunicação falsa de crime”, que prevê até seis meses de prisão, ou “denunciação caluniosa”, que é mais grave e pode levar a até oito anos de prisão.
Em paralelo, o projeto de lei sugere que se for comprovado que a autora da falsa denúncia a fez com o objetivo de obter vantagens – ligadas a disputas de guarda dos filhos ou a questões patrimoniais, por exemplo – também poderá responder civilmente por danos morais e materiais.

Lei Maria da Penha é salto civilizatório, mas existem falhas, diz Zanatta
Para Julia Zanatta, a lei Maria da Penha representou um salto civilizatório no combate à violência doméstica no Brasil. No entanto, para a parlamentar, a eficácia e a legitimidade da lei ficam comprometidas quando se abre brechas para que os meios de proteção sejam acionados ilicitamente, causando prejuízos a inocentes.
“Esta proposta não enfraquece a proteção às mulheres. Muito pelo contrário, fortalece o sistema ao prevenir abusos e preservar sua credibilidade institucional. Ao prever a responsabilização penal e civil daqueles que utilizam os instrumentos legais para agravar litígios pessoais ou obter vantagens indevidas, contribui-se para o uso responsável da legislação protetiva”, afirma.
Para Zanatta, as falsas acusações sobrecarregam o sistema judiciário, e apenas uma punição severa para essas condutas permitirá que a polícia e a Justiça concentrem esforços nos casos verdadeiros, protegendo vítimas e punindo agressores. “É uma medida que protege o direito de todos aqueles que sofrem com relacionamentos abusivos e violentos, reafirmando o compromisso com a verdade, a proporcionalidade e o devido processo legal”, diz.
Principal mudança é a reavaliação do caso após manifestação do acusado, explica jurista
Para Daniel Crespo, advogado especialista em Direito Penal atuante em casos relacionados à Lei Maria da Penha, as mudanças não enfraquecem denúncias reais, apenas desestimulam acusações falsas, o que, segundo ele, tende a fortalecer e trazer maior credibilidade à lei Maria da Penha.
Para o advogado, o envio do caso para o Ministério Público quando houver indícios de má-fé não é uma novidade – a proposta legislativa apenas reforça a medida para enfatizar sua relevância. Por outro lado, aponta ele, a obrigação de que o magistrado reanalise as medidas protetivas em curto prazo após a manifestação do acusado é uma mudança significativa.
Crespo explica, ainda, que desde as mudanças feitas na lei em 2023, a concessão das medidas protetivas independe da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação ou da existência de inquérito policial. “Isso facilitou muito a concessão, o que é positivo para casos reais, mas gera grandes prejuízos quando há má-fé da denunciante”, afirma.
“Para afastar uma pessoa do lar e do convívio com os filhos, basta um depoimento. Muitas vezes não é preciso nem ir até delegacia – em alguns estados é possível fazer a denúncia por aplicativo”, explica Crespo.
“Aí o acusado tem que constituir um advogado ou procurar a Defensoria Pública para entrar com o pedido de revogação das medidas protetivas. Há juízes que estabelecem medidas sem nem sequer definir um prazo. Se o suposto autor não entra com pedido de revogação, fica para sempre. Então há, sim, pontos que precisam ser corrigidos”, afirma.
Fonte: gazetadopovo






