O Brasil perde 37,8% de sua água tratada devido a problemas na distribuição, de acordo com um levantamento do Instituto Trata Brasil publicado em 2024. O número equivale a 7,6 mil piscinas olímpicas por dia. No Amapá, estado com infraestrutura de abastecimento mais precária, a taxa é de 71,7%.
Nem todo esse prejuízo é sinônimo de canos danificados. Uma parcela da água perdida é desviada por instalações clandestinas, por exemplo, cujo consumo não é contabilizado nem cobrado. Além disso, há uma margem de erro inerente às medições dos hidrômetros (os “relógios de água”) residenciais. Ainda assim, vazamentos na tubulação são a variável que mais contribui para os números alarmantes.
A dificuldade em resolver o problema é proporcional ao seu tamanho. Só o estado de São Paulo tem 120 mil km de canos subterrâneos de água e esgoto, comprimento suficiente para dar três voltas na Terra. O ideal é substituir essa tubulação labiríntica a uma taxa anual de 2%, partindo dos canos mais antigos para os mais recentes.
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Na prática, trata-se de uma meta difícil: “É muito caro. Acho que nem 1% disso pode ser alcançado”, diz o engenheiro Cícero Mirabô, do Departamento de Combate às Perdas da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). A abordagem mais realista para resolver o problema, então, envolve não substituir mas sim tapar os buracos nos canos. Para isso, é preciso, antes, descobrir onde estão os canos danificados em meio ao emaranhado de cabos, córregos e túneis ocultos sob as cidades.
O problema não é exclusividade do Brasil, tampouco limitado a países do Sul Global. Irlanda e Itália, por exemplo, arcam com perdas similares às nossas. O Reino Unido fica em 23%, e a França, em 20%. Apenas um país da União Europeia, a Alemanha, mantém a taxa abaixo dos 5%, um feito notável. A capital japonesa Tóquio é uma história de superação nesse quesito: terminou a 2ª Guerra com 80% de perdas de água, e cerca de metade de sua tubulação destruída; hoje, o número está em 3,9%.
Em busca de soluções high-tech para facilitar a caça aos vazamentos, a Sabesp se aliou há mais de uma década ao engenheiro mecânico Fabrício César Lobato, professor da Faculdade de Engenharia da Unesp no campus de Bauru (FEB) e um dos grandes especialistas do país na detecção de problemas em redes de água e esgoto. Ele trabalha com o problema desde o início de seu doutorado na Universidade de Southampton, na Inglaterra, em 2009. Lá foi orientado por Michael Brennan, um dos maiores especialistas do mundo na área. Brennan acabou se mudando para o Brasil, e hoje leciona na Unesp de Ilha Solteira.
A colaboração Unesp-Sabesp, financiada por editais da Fapesp, rendeu muitos frutos desde então. Fabrício, Brennan e seus colegas desenvolveram versões nacionais acessíveis de detectores chamados “correlacionadores”; criaram um método inovador para calibrar e avaliar esses aparelhos; e, agora, trabalham para dar um passo na vanguarda da área com os inéditos detectores de superfície. Estes são capazes de localizar vazamentos à distância, sem a exigência de que o equipamento entre em contato físico direto com os canos (o que ocorre com correlacionadores tradicionais).
Há um entrave, porém: esses produtos estão no estágio de protótipo, devido à falta de empresas interessadas e capazes de fabricá-los em larga escala. Essa etapa é conhecida como o “vale da morte” do empreendedorismo. Para transpô-lo, os pesquisadores precisam prospectar parceiros. Neste caso, as possibilidades incluem startups e algumas poucas empresas nacionais que já trabalham com equipamentos voltados para esse setor.
Correlacionador é equipamento eficaz, mas preço desestimula uso
Por décadas, dois equipamentos foram imprescindíveis para o trabalho de detecção de vazamentos subterrâneos: hastes de escuta e geofones mecânicos. Essas máquinas amplificam sons oriundos do subsolo, assim como estetoscópios fazem com o ruído dos pulmões. Tanto as hastes como os geofones só funcionam nas mãos de técnicos treinados, já que a função desses aparelhos se limita a tornar o sinal audível e levá-lo aos ouvidos: cabe ao usuário distinguir o som ligeiramente diferente que a água produz ao passar por um cano furado.
Os correlacionadores foram um avanço em parte porque não dependem só da perícia e experiência de seus operadores. Um correlacionador típico consiste em um par de detectores idênticos que são acoplados, por exemplo, a hidrantes ou a hidrômetros de duas casas localizadas em pontos diferentes de uma mesma rua. Esses são pontos de acesso eficazes porque estão diretamente conectados ao cano maior que distribui água a todos os imóveis da região. Caso haja um buraco na tubulação, o som produzido pelo vazamento percorrerá distâncias diferentes até cada um dos sensores. Isso permite que, com a ajuda de uma equação, se possa determinar o ponto aproximado em que a água está escapando.
O problema é que “hoje, um correlacionador bom sai em torno de R$ 300 mil, e não há fabricante nacional”, explica Mirabô. “Ao contratar uma empresa terceirizada, a Sabesp informa a ela que precisa dispor de uma equipe certificada em haste, geofone e correlacionador. As terceirizadas até mostram para nós que possuem esses equipamentos, mas quase nenhuma usa. No dia a dia, o empresário não põe um equipamento desse custo para rodar em um Golzinho por aí.”
O primeiro projeto submetido e aprovado por Lobato em um edital da Fapesp com a Sabesp tinha o objetivo de criar um correlacionador comercial comercialmente viável no Brasil. Deu certo, e veio com um brinde: além de desenvolverem uma versão mais barata do equipamento, Fabrício e seus colegas criaram uma bancada de simulação de vazamentos para testar a eficácia da própria invenção em comparação aos equivalentes importados, denominada “bancada virtual”.
Essa engenhoca vibra de modo a simular a assinatura sônica de um vazamento real, o que permite fazer um test drive idôneo dos correlacionadores fabricados por diversas empresas e verificar se eles estão funcionando satisfatoriamente quando retornam da assistência técnica. “Você fala para o computador simular um vazamento em uma rede de ferro fundido de 75 mm localizado a 10 m do ponto A e ele faz isso”, diz Mirabô. “Essa tecnologia não tem paralelo no mundo.”
Detector coringa dá conta de diferentes tipos de canos e solos
Lobato explica que a troca progressiva de tubulações feitas de ferro fundido por outras de plástico, ao longo das últimas décadas, tornou a detecção de vazamentos mais desafiadora. “A vibração é atenuada. Se antes era possível identificar um vazamento em um tubo a uma distância de 1 km, ou 800 m, agora esse número caiu para 100 m ou 80 m.” O objetivo de seu doutorado foi justamente aperfeiçoar técnicas vibroacústicas para torná-las mais eficazes em tubulações de PVC, polietileno de alta densidade (HDPE) e outros plásticos.
Muitas fabricantes estrangeiras, quando confrontadas com esse desafio, focaram em adquirir sensores que são mais sensíveis e, portanto, mais caros. Lobato, por sua vez, manteve o hardware acessível para baratear o produto e concentrou-se em compensar essa limitação com um software bem planejado, capaz de extrair mais informação de um sinal mais tênue. “Ele não buscou desenvolver um novo sensor”, explica Marcelo Miki, que era coordenador de Pesquisa e Desenvolvimento da Sabesp na época em que começou a colaboração com a Unesp. “Ele partiu da lógica contrária: examinou quais sensores já disponíveis no mercado satisfaziam os requisitos de captação de sinais.”
Outro trunfo do correlacionador criado por Lobato e seus colegas é sua versatilidade. “Lá fora, há equipamentos desenvolvidos em função de certos materiais de tubo e de certos tipos de solo que envolvem o tubo”, diz Miki. “[O equipamento da Unesp] mede as condições reais, em campo. Você nem precisa inserir qual material é, ou qual solo é. É um projeto coringa, nesse sentido.”
Para Miki, o sucesso da colaboração com a Unesp em relação a outras parcerias que a Sabesp já teve tem a ver com a disponibilidade de Lobato e Brennan para ouvir com humildade as experiências dos funcionários da Sabesp. Isso lhes permitiu entender suas necessidades práticas do zero, sem intenção de impor goela abaixo um projeto de pesquisa pré-concebido. “Você até pode desenvolver um trabalho teórico. Mas introduzi-lo em uma empresa de saneamento pode ser difícil porque a realidade tem nuances que os acadêmicos não enxergam”, diz.
Todos os entrevistados pelo Jornal da Unesp relataram um sentimento de frustração pelo fato de terem desenvolvido o projeto e fabricado o protótipo de um equipamento barato, versátil e adequado às necessidades da Sabesp, que, porém, ainda não saiu do papel pela ausência de uma empresa interessada em fabricá-lo.
“O Fabrício nos ajudou muito a garimpar alguém que pudesse fabricá-lo”, conta Cícero Mirabô. “Mas, mesmo na região de Campinas, que é cheia de empresas líderes mundiais em fabricação de hardware, a pergunta era: ‘quantos correlacionadores vamos vender por ano?’ É um produto de nicho, e os caras precisam de volume de produção e de comercialização.”
Correlacionadores à distância são inovação internacional
O sucesso do correlacionador para a Sabesp motivou Lobato a propor um projeto de pesquisa mais ousado em um segundo edital de saneamento da Fapesp. A ideia foi aprovada pela agência e o financiamento teve início em 2022. O objetivo é desenvolver, a partir do zero, um produto batizado de Localizador de Vazamento de Superfície, ou LOCVAS. O novo equipamento não exigirá contato físico direto entre o encanamento e o detector, como ocorre com os correlacionadores: em tese, ele será sensível o suficiente para detectar vazamentos pelo resquício de vibração que chega à superfície, propagando-se pelo próprio solo.
É possível aplicar a técnica com apenas dois sensores (microfones) na superfície, ou aumentar o número para seis ou oito. Do mesmo jeito que um celular calcula sua posição no espaço com base no tempo que os sinais de cada satélite de GPS demoram para alcançá-lo, os microfones captam o som do vazamento com diferentes intensidades conforme a distância do buraco no cano, o que permite calcular sua localização exata.
Lobato explica que esse método de detecção não invasiva não substitui as técnicas pré-existentes, mas poderá ser um recurso valioso no arsenal das companhias de água e esgoto. “Nossa intenção é começar com a medição direta no tubo [com o correlacionador tradicional]. Essa medição, às vezes, pode apresentar algum erro, ficar um pouco fora. Então, você vai em cima do tubo e faz a varredura com essa nova técnica, diminuindo os falsos positivos.”
No momento, ele e seus colaboradores estão produzindo e publicando artigos científicos sobre minúcias variadas dessa tecnologia. Por exemplo: o artigo mais recente do grupo, publicado em novembro no periódico Applied Acoustics, versa sobre testes realizados com dois sensores em que havia conhecimento prévio sobre a direção do cano enterrado. A ideia é apresentar um protótipo conceitual do projeto LOCVAS ainda em 2026. As patentes do novo dispositivo estão em processo de submissão ao Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI).
Fonte: abril






