
Carl Peter Henrik Dam era a definição de dicionário de um bom rapaz: filho de uma professora e um farmacêutico, formou-se em Química na Escola Politécnica de Copenhagen, fez mestrado e doutorado e coroou sua carreira acadêmica com um Prêmio Nobel em 1943 – em suma, o típico primo nerd quadradão que passou no concurso público e sua mãe adora comparar com você.
Dam só foi desordeiro mesmo quando ignorou a ordem alfabética – e foi justo na hora de batizar sua maior descoberta. Em 1934, ele fazia experimentos com galinhas e percebeu que, se alimentasse as aves com uma dieta sem gorduras de origem animal, elas desenvolviam problemas na coagulação do sangue. Dam concluiu que a culpa era da ausência de algum nutriente solúvel em lipídios – e o apelidou de vitamina K, de koagulation (“coagulação” em dinamarquês).
Não precisa levar bacon para o galinheiro, porém. Hoje, sabemos que a designação “vitamina K”, na verdade, se aplica a duas moléculas de origens distintas, mas capazes de realizar as mesmas funções em nosso corpo. A filoquinona, que ganhou o código K1, dá as caras em quaisquer folhas verdes, porque é uma pecinha molecular essencial para a fotossíntese.
Já as menaquinonas, que acabaram batizadas de K2, são geradas conforme os animais comem plantas e absorvem esse nutriente. Eis aí os dois vitâmeros da K; a ingestão de um ou de outro é indiferente para nós (caso você não se lembre do conceito de “vitâmero”, vale voltar no texto da D).
A K1 também se converte em K2 quando certos produtos de origem vegetal, como grãos de soja, são fermentados. Um quitute típico do Japão chamado natto, que se baseia justamente nesse ingrediente, é uma suplementação poderosa: uma colher de sopa contém 150 microgramas (μg) de K2, mais do que a dose diária recomendada para um adulto saudável.
Moral da história: se um dia você se deparar com suplementos de vitamina K à venda, saiba que comer alface ou até um pedaço de cacto dá rigorosamente na mesma. Ou quase na mesma: o corpo só consegue absorver algo entre 4% e 17% do total de moléculas presentes em alimentos como couve ou espinafre, enquanto a absorção do suplemento em estado puro atinge 80%.
Essa é só uma curiosidade, e não um motivo de preocupação: mesmo com essas taxas, ainda é fácil bater as necessidades diárias com uma alimentação comum. Parte da facilidade se deve ao fato de que nossas células reciclam parte da vitamina K após utilizá-la.
A função central desse nutriente nas células animais é adicionar um penduricalho chamado ácido carboxílico a uma molécula maior chamada glutamato.
O ácido consiste em um átomo de carbono ligado a dois oxigênios – um desses oxigênios, por sua vez, carrega um pequeno hidrogênio em suas costas, como uma mochilinha. Já o glutamato é um dos aminoácidos: a matéria-prima necessária para montar todas as milhares de proteínas diferentes de que precisamos para construir nosso corpo.
O ácido carboxílico transforma o glutamato (que tem o apelido de Glu) em gama-carboxiglutamato (cuja alcunha é Gla). O tempo todo, até quando você assiste a um Fla-Flu, suas células fazem Glu-Gla. Isso é importante, por exemplo, porque apenas as proteínas com a versão Gla do glutamato conseguem se conectar a íons de cálcio – o que explica a importância da vitamina K para os ossos.
Outro grupo de proteínas que dependem desse nutriente para funcionar são os chamados fatores de coagulação (daí, é claro, as observações de Dam descritas no começo do texto). Para espessar o sangue e combater hemorragias, esses fatores precisam aderir às paredes das plaquetas e, assim, mantê-las grudadinhas umas às outras. Essa cola molecular, essencial para cicatrizar ferimentos, só funciona depois que o Glu vira Gla.
Fonte: abril