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e você nasceu no século passado, provavelmente se lembra da comoção mundial que rolou quando Plutão deixou de ser planeta.
Esse pequeno mundo, composto de rocha e gelo e descoberto só em 1930, conservou o título de nono planeta do Sistema Solar por 76 anos. Ele sempre foi o mais nanico da turma, com só um quinto do tamanho da Terra (menor até que nossa Lua), e também o mais distante da nossa estrela – fica 40 vezes mais longe do Sol do que a Terra, em média.
Tudo mudou em 2005, quando três astrônomos descobriram que Plutão tinha uma prima bastante parecida: Éris, um orbezinho também gelado e rochoso, com quase o mesmo tamanho de Plutão, e ainda mais distante do Sol (68 vezes a distância média da Terra). Na época, parecia óbvio: o objeto, nomeado em homenagem à deusa grega da discórdia, seria o décimo planeta da nossa vizinhança cósmica. Mas Éris fez jus ao seu nome e gerou caos.
A descoberta fez a comunidade científica se questionar: o que é, afinal, um planeta? Éris se encaixaria na categoria? Foi só então que os astrônomos se tocaram que não havia uma definição formal desse tipo de astro; a classificação era feita de forma quase intuitiva. Afinal, nenhum outro planeta havia sido descoberto em muitas décadas.
Finalmente em 2006, a União Astronômica Internacional (IAU) se reuniu e estabeleceu que, para ser um planeta, um objeto tem que cumprir três critérios: orbitar uma estrela, ser massivo o suficiente para a gravidade torná-lo um objeto esférico (ao contrário de alguns asteroides, que têm formatos variados) e, por fim, ser dominante o suficiente para limpar a vizinhança da órbita. Ou seja: sua gravidade tem de ser forte o suficiente para remover das redondezas outros objetos que cruzem seu caminho.
Plutão e Éris, por serem pequenos demais, não cumprem o terceiro requisito – têm vizinhos próximos de massa parecida com a deles, cujas órbitas se entrecruzam sem muita noção de espaço pessoal.
Naquele ano, os livros didáticos tiveram que ser atualizados às pressas para registrar que havia só oito planetas no Sistema Solar: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno.
Por atenderem apenas aos dois primeiros critérios, Plutão e Éris entraram para a categoria de “planetas-anões”. Eles também fazem parte de outro grupo de corpos celestes chamados de “objetos transnetunianos” (OTN), que inclui várias estruturas rochosas e congeladas que orbitam o Sol para além de Netuno, na periferia do Sistema Solar.

Mas tudo pode estar prestes a mudar. Se essa região escura e bagunçada para lá de Netuno foi responsável por nos tirar o nono planeta, ela também pode, em breve, nos revelar um novo mundo, misterioso e furtivo, escondido nos confins do nosso sistema estelar.
O substituto de Plutão é apelidado apenas de “Planeta Nove”, e, por ora, permanece hipotético; sua existência é dedutível a partir de indícios indiretos. Caso ele exista, deve ser encontrado logo, logo – graças à estreia da câmera mais potente que os humanos
já criaram para observar o céu. E então, tudo o que você aprendeu na escola mudaria (de novo).
Terra de ninguém
Não é de hoje que astrônomos buscam a glória de encontrar um novo planeta em nossa vizinhança. Em 1915, o americano Percival Lowell propôs que um mundo escondido estaria perturbando a órbita de Urano com sua gravidade; ele apelidou esse desconhecido de “Planeta X” (com a letra “xis” mesmo, não o algarismo romano).
Mais tarde, cientistas concluíram que as tais perturbações não passavam de erros nas contas. Mas a busca iniciada por Lowell levou à descoberta de Plutão, 15 anos depois.
Por um século, o termo “Planeta X” foi usado por vários outros pesquisadores que teorizaram a existência de um grandalhão escondido debaixo do nosso nariz.
Essas hipóteses, já naquela época, surgiam a partir de evidências indiretas: se houvesse mesmo um objeto cósmico grande o suficiente à solta por aí, então sua gravidade afetaria perceptivelmente o movimento de outros corpos celestes menores e já conhecidos. Nenhuma dessas ideias, porém, foi para a frente.
Tudo mudou no começo deste milênio, quando os avanços tecnológicos nos permitiram observar melhor a região chamada de Cinturão de Kuiper. Essa área, localizada nos limites mais exteriores do nosso Sistema Solar, abriga objetos remanescentes do passado distante da nossa vizinhança cósmica e está repleto dos chamados objetos transnetunianos (OTNs). Éris e Plutão, por exemplo, ficam por lá.
A protagonista dessa história, porém, é outra: Sedna, um planeta-anão nomeado em homenagem à deusa inuíte do oceano. Descoberta em 2004, essa bolota congelada fica especialmente distante da nossa estrela: o seu periélio (ponto da órbita mais próximo do Sol) fica a 76 unidades astronômicas – uma unidade astronômica (UA) mede a distância média entre o Sol e a Terra, ou seja, cerca de 150 milhões de km. No afélio, o planeta-anão fica a chocantes 937 UA.
Sedna também é um objeto transnetuniano, mas um tão distante e peculiar que se encaixa no grupo que alguns chamam de OTNs “extremos”. Com o passar dos anos, outros desses objetos radicais foram sendo encontrados, como o 2012 VP113 e o 2015 BP519.
O nono passageiro?
Em 2016, os astrônomos americanos Mike Brown e Konstantin Batygin analisaram seis desses OTNs extremos. Brown foi um dos responsáveis por descobrir Sedna e também Éris, e, por isso, foi apelidado de “o homem que matou Plutão”. Mas, agora, estava disposto a se redimir – descobrindo um outro planeta.
Num estudo emblemático, a dupla observou que esses seis objetos transnetunianos extremos têm órbitas bizarras, e, ao mesmo tempo, parecidas. Todas são muito alongadas e inclinadas em relação ao plano em que os oito planetas do Sistema Solar orbitam nossa estrela (veja na figura abaixo). Mais importante: o periélio desses objetos parece estar alinhado, ou seja, a aproximação máxima de cada um deles em relação ao Sol tendia a ocorrer numa mesma região do espaço. O esperado seria que esses pontos fossem espalhados aleatoriamente.

Parecia que havia algo “puxando” os OTNs extremos, moldando suas órbitas (posteriormente, a pesquisa passou a englobar oito novos OTNs, totalizando 14). Mas o quê? Essas bolas de rocha e gelo estão muito distante de Netuno, o último planeta do nosso Sistema Solar, longe demais para serem influenciadas por sua gravidade. Teoricamente, eles deveriam estar apenas sob a influência gravitacional do Sol.
Foi então que Brown e Batygin propuseram que haveria um nono planeta, escondido para além do cinturão de Kuiper, responsável por influenciar a órbita de Sedna e seus colegas. Segundo eles, esse hipotético mundo poderia ser do tipo “super-Terra”, algo rochoso entre cinco e dez vezes mais massivo que o nosso planeta. Essa hipótese foi apelidada de “Planeta Nove”.
Alternativas
A hipótese de Brown e Batygin é a mais famosa dentre as que propõem a existência de um nono planeta, mas não é a única. Um outro modelo, inclusive, foi elaborado em 2023 pelo brasileiro Patryk Lykawka, atualmente pesquisador da Universidade Kindai, no Japão.
Enquanto os americanos falam de um Planeta Nove com cinco a 10 vezes a massa da Terra, Lykawka prevê a existência de um corpo celeste bem menor, com a mesma massa do nosso mundo ou, no máximo, o dobro disso. Ele também estaria um pouco mais próximo de nós do que o teorizado pelos americanos.
O modelo brasileiro também se baseia na observação de objetos transnetunianos, mas não apenas no alinhamento de periélios que as órbitas de Sedna e de seus companheiros parecem apresentar. Lykawka busca explicar, ao mesmo tempo, bizarrices no comportamento de vários grupos distintos de objetos transnetunianos – o bandinho de OTNs de Sedna é apenas um deles.
Segundo Lykawka, a existência de um nono planeta menor explicaria todas essas anomalias de uma vez. Nesse sentido, o modelo é ainda mais completo que o dos americanos, pois leva em conta mais variáveis na análise. O brasileiro, porém, evita chamar seu bólido hipotético de “Planeta Nove”, justamente para não confundir seu modelo com a hipótese mais famosa – que é diferente e até conflitante com a sua. Ele prefere falar apenas em “planeta do Cinturão de Kuiper”.
Calma lá
A existência (ou não) do Planeta Nove é um tópico controverso, que divide opiniões dos astrônomos. Há quem simplesmente duvide que haja algo para encontrar. Para esses céticos, as anomalias orbitais observadas podem ser explicadas por outras variáveis.
A principal crítica ao modelo de Brown e Batygin é que a dupla pressupõe que exista um alinhamento entre as órbitas dos objetos transnetunianos extremos, mas, para isso, se baseia na observação de um número muito pequeno deles (catorze, enquantos estima-se que existam muitos milhares). É possível que a amostragem sofra de algo que cientistas chamam de “viés observacional”.
Pense, por exemplo, que você está procurando um tesouro enterrado em um quintal. Você escolhe cavar próximo a uma árvore, e lá encontra algumas moedas. A conclusão é que o tesouro foi escondido naquele lugar específico, provavelmente usando a planta como ponto de referência. A árvore, então, seria algo especial. Mas, se você sair cavando aleatoriamente buracos pelo quintal, vai acabar descobrindo que há moedas por todo lado. O local que você explorou originalmente não tinha nada de especial. Por ser o único que foi analisado em detalhes, porém, ele pareceu ser importante.
O mesmo pode estar acontecendo com o modelo do Planeta Nove. É possível que esse aparente alinhamento entre Sedna e outros objetos transnetunianos extremos seja apenas uma ilusão; se colocarmos na análise as órbitas de vários outros asteroides e planetas-anões do cinturão de Kuiper, as características compartilhadas talvez não passem de coincidências. O problema é que, por ora, conhecemos poucos desses objetos extremos, então ainda não dá para chegar a um resultado estatisticamente relevante.
Os autores do modelo original defendem sua hipótese, afirmando que o suposto alinhamento da órbita dos objetos pode até ter sido o ponto de partida para a ideia, mas não é a única evidência da existência do Planeta Nove. O modelo brasileiro, por sua vez, não depende de esse alinhamento existir ou não, já que se baseia em outras anomalias em grupos diversos de objetos transnetunianos.
Mesmo assim, os céticos ainda têm um argumento forte contra a existência do tal Planeta Nove: nós já estamos procurando por ele há um tempo, e simplesmente não o encontramos. Quanto mais buscamos e nada achamos, mais diminuem suas chances de existir.
E olha que não faltaram tentativas. Em 2024, os próprios Brown e Batygin usaram dados do Observatório Pan-STARRS, localizado no Havaí, para procurar o recôndito mundo. Eles conseguiram cobrir 78% do território em que o Planeta Nove supostamente pode estar, de acordo com o modelo da dupla, e encontraram… nada.
Claro, os 22% que faltaram ainda representam um pedaço do Universo muito grande, mas a conclusão foi decepcionante de qualquer forma. Em 2021, uma outra equipe também buscou o Planeta Nove usando o Telescópio Cosmológico do Atacama, no Chile, sem sucesso.
Isso não significa que o Planeta Nove não exista, claro. É possível que ele só seja especialmente difícil de encontrar – além de muito distante, possivelmente 800 vezes mais afastado do Sol do que a Terra, esse mundo misterioso pode ser pouco brilhante, apagado no céu noturno.
Mas é preciso considerar, é claro, a (tediosa) possibilidade de o planeta simplesmente não existir. Nesse caso, outras explicações menos extraordinárias podem justificar as anomalias dos objetos transnetunianos, sejam os extremos como Sedna ou os mais próximos de nós.
É possível, por exemplo, que de fato já tenha existido um Planeta Nove no passado distante do nosso Sistema Solar, e que sua interação com Sedna e seus colegas tenha alterado para sempre suas órbitas. Esse planeta, porém, teria sido ejetado do Sistema Solar (possivelmente por efeitos gravitacionais de Júpiter, o maior e mais poderoso planeta da nossa vizinhança), ou se chocado com outro planetas, e não exista mais.
É possível também que interações gravitacionais com outras estrelas próximas tenham bagunçado a órbita dos OTNs logo no nascimento do Sistema Solar, ou que algum planeta interestelar (um objeto que não orbita uma estrela e vaga pelo espaço como um errante) tenha passado por perto e feito o mesmo em algum momento do passado longínquo.
Um estudo inusitado (e altamente especulativo) chegou a propor que há, sim, algo escondido no nosso Sistema Solar afetando as órbitas dos OTNs, mas que não seria um nono planeta, e sim um pequeno buraco negro primordial.
Todas essas hipóteses estão em estágios iniciais de formulação. A verdade é que, caso o Planeta Nove não exista, ainda precisaríamos estudar melhor o Cinturão de Kuiper e além para entender por que os objetos transnetunianos se comportam da maneira como se comportam.
Olho que (quase) tudo vê
Se os astrônomos discordam tão veementemente sobre a existência ou não do Planeta Nove, pelo menos em uma coisa todos concordam: o mistério está prestes a ser solucionado. Em 2025, será inaugurado no Chile o Observatório Vera C. Rubin – e, quando isso acontecer, será questão de tempo até o Planeta Nove ser encontrado… ou sua existência ser descartada.
Localizado no topo da montanha Cerro Pachón, a 2.600 metros de altitude, o observatório conta com a maior câmera já construída pela humanidade, com o tamanho de um carro e um precinho módico de US$ 168 milhões. O centro de pesquisa foi batizado em homenagem à astrônoma americana que lançou a hipótese da matéria escura (hipótese essa que também diz respeito a uma fonte de gravidade de origem misteriosa, mas que atua no nível das galáxias, não dos sistemas estelares).

O Vera Rubin revolucionará a astronomia; por uma década, ele vai observar e mapear todo o céu visível do Hemisfério Sul, noite após noite, em detalhes inéditos. Esse poderoso telescópio vai mapear o Cinturão de Kuiper com uma precisão inédita; se o Planeta Nove estiver por lá, os especialistas esperam que ele apareça nos próximos anos.
É possível, claro, que a câmera não fotografe o planeta logo de cara. Mas o Vera Rubin com certeza vai encontrar vários outros objetos transnetunianos, incluindo extremos, como Sedna – e, como sua observação é contínua, construirá um mapa das suas órbitas. Isso permitirá refinar tremendamente os cálculos que já existem.
Se os novos objetos transnetunianos apresentarem as mesmas anomalias orbitais dos que já conhecemos, então esse será um indício forte de que há mesmo um nono planeta influenciando esses pedegrulhos. Mas se, pelo contrário, eles apresentarem órbitas totalmente aleatórias, haverá um forte argumento a favor da ideia de que as observações da equipe de Brown tenham sido enviesadas.
Fonte: abril