Via @folhadespaulo | Para Rebecka Martins Gomes, 28, escrever uma peça jurídica é muito mais do que trabalho. “É um exercício de liberdade, onde eu sinto que não tenho os limites que o meu corpo me impõe”, afirma. Empossada no último dia 21, ela é a primeira juíza tetraplégica de São Paulo.
Mesmo esse exercício de liberdade não é simples. Sem controle sobre os movimentos dos dedos, ela digita com as mãos invertidas, usando o dorso. “Eu tenho uma movimentação parcial dos braços, mas não das mãos. Por isso, sou considerada tetraplégica”, explica.
Além dela, outros seis juízes com algum tipo de deficiência foram aprovados. O TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) afirma que ela é a primeira magistrada cadeirante do estado. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), dos quase 19 mil juízes do país, 270 declararam ter algum tipo de deficiência.
As deficiências físicas e motoras, visuais e auditivas são as mais comuns, mas há casos também de deficiências psicossociais, mentais e intelectuais. Não há informações precisas no levantamento sobre cadeirantes e tetraplégicos.
A paixão pelo direito e o desejo de ser juíza vieram como consequência do acidente que lhe deixou tetraplégica. “Sinto que, como juíza, eu tenho o poder de decidir, de mudar a vida das pessoas”, afirma.
Em maio de 2009, quando Rebecka tinha 12 anos, o carro de sua família foi atingido por outro automóvel em uma estrada do Espírito Santo, quando a família viajava para a Bahia. Seu pai, Eduardo, quebrou uma das pernas. A menina, que estava no banco traseiro, atrás do pai, fraturou duas vértebras do pescoço e teve uma lesão na medula. A mãe, Alexandra, e a irmã, Sara, não tiveram ferimentos.
Rebecka precisou ainda ser submetida a uma traqueostomia e fez sessões de fonoaudiologia para voltar a falar. No meio do tratamento teve uma neuropatia grave, que provocou também uma parada cardiorrespiratória.
Ela perdeu o restante do ano escolar e só conseguiu voltar a frequentar as aulas no ano seguinte. “Ela chorava muito de ter de ficar em casa e assim que conseguimos que pudesse sair de casa, sem risco de infecções, demos um jeito para que ela voltasse a estudar”, diz a mãe.
O retorno não foi fácil, por mais que a escola tentasse se adaptar às novas necessidades da aluna. No começo, ela passava de duas a três horas nas aulas. Dores causadas por ficar muito tempo sentada e a dificuldade de manter o tronco reto atrapalhavam a rotina.
O apoio das tias maternas e dos amigos de Novo Horizonte, bairro de Serra, na região metropolitana de Vitória, onde a família mora, foram fundamentais. “Tinha sempre um amigo para ficar comigo na sala de aula na hora do recreio ou das aulas de educação física”, conta a juíza.
A família se apoiava também na fé. Evangélicos, eles frequentam a Assembleia de Deus, e muitos dos amigos que a ajudavam eram fiéis da mesma igreja.
Com o pai professor de história na rede pública estadual e a mãe dedicada à casa, o orçamento, que já era apertado, ficou ainda mais depois do acidente. A mãe passou a se dedicar mais à filha. “Eu sou motorista, acompanhante, passo a sonda quando ela precisa urinar, faço tudo”, diz Alexandra.
Ela também passou a acompanhar a filha na faculdade, em uma instituição particular chamada Multivix. Apesar das dificuldades, ela não quis fazer um curso a distância. “Eu gosto do ambiente da sala de aula.”
Na faculdade, Rebecka conheceu um professor que se tornaria sua referência profissional, o juiz Ronaldo Domingues de Almeida, do TJ-ES (Tribunal de Justiça do Espírito Santo). “Eu tinha vontade de ser juíza desde o primeiro ano, mas foi como estagiária dele que eu passei a entender mais do que era a atividade”, conta.
Ela continuou a trabalhar com Almeida durante a pós-graduação. “Foi minha aluna por três semestres e o que me chamou a atenção era o quanto era dedicada nas aulas e a qualidade de seus trabalhos”, afirma o juiz. “No começo, eu nem sabia que ela era cadeirante. Pensei que a mãe, que estava sempre com ela, era, na verdade, uma colega”, conta.
Terminada a faculdade e os estágios, passou a atuar como advogada e usava o dinheiro que recebia para prestar concursos públicos. Fez provas em Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. “A primeira vez que vim para cá foi justamente para fazer a prova”, conta, na sala da sede do TJ-SP, onde atendeu a Folha.
“Pegamos dinheiro emprestado para conseguir passar esses dias aqui”, conta a mãe, que mais uma vez a acompanha. As duas estão em São Paulo para que Rebecka passe pelo curso em que os novos juízes conhecem melhor o tribunal e seu funcionamento.
Em seguida, ela deve ser nomeada juíza assistente em uma vara até completar dois anos de estágio probatório, a última etapa antes de garantir vitaliciedade como juíza.
“Minha experiência de vida me leva a entender que um problema que parece simples para uns pode ser muito relevante para quem os sofre. Eu sei, por exemplo, o que é ter de me preocupar com acessibilidade quando vou pesquisar um restaurante para jantar ou quando vou escolher um lugar para morar.”
Por Leonardo Fuhrmann
Fonte: @folhadespaulo