O fluxo migratório na fronteira dos Estados Unidos com o México, que sempre foi intenso, atingiu proporções épicas nos últimos dois anos — e tornou-se uma dor de cabeça de igual proporção para o presidente Joe Biden. Sucessor de Donald Trump, o promotor-mor da ideia de que se erguesse um muro para conter os indesejáveis, Biden adotou um discurso muito mais simpático à entrada de estrangeiros ao longo da campanha. Mal acabou de ser eleito e multidões de esperançosos se aglomeraram na divisa. Em 2021, 1,72 milhão de pessoas foram apreendidas entrando ilegalmente no país, um recorde batido com folga no ano passado, quando o número subiu 60%, para 2,76 milhões. Sem solução à vista para o problema, a Casa Branca deixou definitivamente de lado a retórica boazinha e apertou a corda: acaba de anunciar uma agressiva abordagem para a fiscalização da fronteira que permite a expulsão imediata de quem quer que entre irregularmente no país, contrariando inclusive precedentes e dispositivos legais.
Dois tipos de indocumentados cruzam diariamente, aos milhares, o Rio Grande e outros pontos de passagem, em busca do Eldorado americano: os que se dispõem a passar anos na ilegalidade, fugindo da polícia, até conseguir de alguma forma o sonhado green card — caso da maioria dos brasileiros —, e as multidões que fogem da violência de gangues e de governos repressivos e pedem asilo assim que pisam nos Estados Unidos. Antes de Trump, os refugiados podiam permanecer no país, trabalhar e tocar a vida enquanto aguardavam o andamento do processo. Com a pandemia, a Casa Branca trumpista, alegando considerações sanitárias, implantou a medida conhecida como Título 42, que autorizou os agentes de fronteira a devolver os solicitantes de asilo ao México ou seus países de origem enquanto o pedido é (muito lentamente) analisado. Parte deles virou massa de manobra para governadores republicanos, que os embarcam em ônibus para cidades democratas como Boston e Nova York, onde o afluxo de estrangeiros criou uma crise social.
Biden usou e abusou do Título 42, estendendo o decreto o quanto pôde, mas ele vai finalmente expirar no dia 11 de maio — daí o aperto nas regras. O decreto determina que quem entrar nos Estados Unidos ilegalmente será considerado inapto para pedido de asilo e aplica duas exigências de difícil cumprimento aos candidatos: solicitar refúgio (e aguardar resposta negativa) em algum outro país pelo qual tenham passado a caminho da fronteira americana e agendar entrevista com os agentes da fronteira por um aplicativo de celular. Em janeiro, Biden começou a testar alguns componentes da nova regulamentação e o número mensal de tentativas de cruzar a fronteira sul caiu 42%. A proposta está aberta a comentários públicos por trinta dias antes de entrar em vigor. Pode ainda ser — e provavelmente será — contestada nos tribunais.
Para escapar da fome e da repressão, a venezuelana Edibel Martínez, 36 anos, arriscou tudo com o marido e os dois filhos durante uma viagem de dois meses, guiada por um coiote, até a almejada fronteira com o México. “Passamos cinco dias caminhando na floresta e trinta pessoas morreram no trajeto”, contou a VEJA. Ela chegou a El Paso, no Texas, em agosto, pediu asilo e pôde trabalhar e aguardar em território americano o julgamento de seu caso. Se as novas medidas propostas já estivessem em vigor, seu caso mudaria de figura — mesmo tendo vindo de um dos países privilegiados na concessão de asilo. Biden criou um sistema “humanitário” que permite a entrada de 30 000 pessoas por mês vindas de Cuba, Haiti, Nicarágua e Venezuela — desde que obtenham aprovação prévia, tenham suporte financeiro, possuam passaporte e paguem por um voo. Resultado: em vez de facilitar, as exigências impedem a entrada da maioria.
A virada do governo americano após dois anos de inação tem um objetivo: as eleições presidenciais do ano que vem. Pesquisa da NBC sobre intenção de voto mostra que os republicanos superam os democratas em mais de 30 pontos no quesito segurança de fronteiras. “Com a medida, Biden, de olho na reeleição, quer ganhar apoio junto aos brancos da classe trabalhadora e latinos contrários à entrada de ilegais”, diz Nancy Foner, professora de sociologia da City University, de Nova York. Imigração, como tudo nos Estados Unidos, é hoje uma questão política, embora a população em declínio e uma escassez estrutural de mão de obra redobrem sua importância. Fechar as portas só adia — e atrapalha — a solução do drama.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023,
Fonte: Veja