Uma das notícias de ciência mais importantes do ano talvez tenha passado despercebida para você. Em agosto, o secretário da saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr., abruptamente cancelou contratos de financiamento público para projetos de pesquisa envolvendo vacinas de mRNA contra doenças como gripe aviária, influenza e Covid-19. Somando com cortes anteriores, mais de US$ 1 bilhão foram limados dessas empreitadas, que são encabeçadas por grandes universidades e farmacêuticas americanas como a Pfizer e a Moderna.
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Entre as várias medidas polêmicas do novo governo Trump, essa nem chamou tanto a atenção. Mas ela pode ter consequências gigantes no futuro. Afinal, menos grana para pesquisa de vacinas significa menos preparo para lutar contra eventuais novas pandemias virais.
A aposta nas vacinas de mRNA, aprovadas pela primeira vez com a Covid-19, era, e continua sendo, alta. Essa tecnologia é estudada há décadas e pode revolucionar a medicina ao utilizar RNA mensageiro, moléculas produzidas por todos os organismos, para ensinar nosso corpo a se defender de patógenos. Em caso de mutações no vírus, elas conseguem ser adaptadas e fabricadas em semanas, enquanto as técnicas tradicionais levam meses para ficarem prontas – diferença que, numa pandemia, pode salvar milhões de vidas.
Não só: a mesma tecnologia é uma das apostas promissoras para uma nova geração de tratamentos contra o câncer e doenças genéticas raras. Não à toa, ela rendeu aos cientistas Katalin Karikó e Drew Weissman o Nobel de Medicina de 2023.
Não é difícil, porém, encontrar uma descrição totalmente diferente das vacinas de mRNA nas redes sociais. Em algumas bolhas antivacinas, as injeções são o próprio anticristo: além de não serem eficazes, segundo essas narrativas, elas seriam altamente perigosas, responsáveis por causar câncer, AVC, infartos e uma infinidade de problemas de saúde.
Não é verdade, claro. Bilhões de doses já foram aplicadas, efeitos colaterais graves são raríssimos e elas seguem recomendadas por agências de saúde e sociedades médicas mundo afora. Há um sem-fim de estudos, tanto ensaios clínicos controlados como pesquisas usando dados do mundo real, que comprovam a eficácia e segurança delas. Apenas um exemplo: um artigo recente analisou 28 milhões de franceses e concluiu que as vacinas de mRNA estão associadas a uma menor mortalidade por Covid-19, sem aumento na mortalidade geral.
Até aí, não há grandes novidades. Há décadas o movimento antivacinas forma uma câmara de eco barulhenta, mas minoritária. A pandemia até deu certo gás ao grupo, mas ele permaneceu majoritariamente à margem.
Só que não mais. Os negacionistas deram um passo além e se institucionalizaram. O novo responsável por liderar a saúde pública dos EUA acumula pelo menos duas décadas de falas e atitudes anticiência.
Único membro associado ao Partido Republicano (o de Trump) vindo de uma família historicamente democrata – seu tio foi o ex-presidente John F. Kennedy –, RFK Jr., como é conhecido, está tomando as decisões de saúde do país com base em teorias da conspiração em vez de evidências concretas.
O cancelamento do financiamento para pesquisas com mRNA foi apenas um episódio da cruzada antivacinas da sua gestão. Em junho, ele demitiu todos os 17 especialistas independentes do comitê responsável por orientar o governo sobre o calendário de imunização das crianças americanas. RFK os substituiu por indicados seus, nem todos da área de saúde e alguns abertamente críticos às vacinas. Foi um movimento político-ideológico, não científico.
Em dezembro, veio o primeiro absurdo do novo comitê: contrariando um consenso de décadas, o grupo revogou a recomendação de vacinar recém-nascidos contra a hepatite B, uma doença letal que pode passar da mãe para os filhos.
A medida causou espanto, justamente porque a tal vacina, aplicada há décadas, nada tem a ver com mRNA (ela usa uma parte do vírus para estimular a produção de anticorpos). E esse é só o começo: é provável que o comitê siga, nos próximos anos, atacando outros imunizantes.
Pouco antes, em novembro, o site do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, sob ordens de RFK, passou a ligar vacinas ao autismo – um disparate já desmentido há décadas por inúmeros estudos.
RFK Jr. trabalha com uma estratégia sofisticada: ele também propaga ideias positivas, como a importância do exercício físico e do consumo de alimentos naturais no lugar dos ultraprocessados, e tem propostas interessantes, como pressionar a indústria alimentícia a abandonar corantes artificiais. Mas mistura essa postura com proposições que são contrárias ao consenso científico, como o boicotar as vacinas e associar o uso de paracetamol com o autismo.
Há uma ironia curiosa nesta história. As vacinas de mRNA, que agora são demonizadas pelo secretário, só foram desenvolvidas em tempo recorde durante a pandemia porque o governo americano forneceu bilhões de dinheiro público às farmacêuticas responsáveis – no final do primeiro mandato de Trump. A chamada operação “Warp Speed” foi, e às vezes ainda é, citada como um dos grandes triunfos da sua gestão anterior, numa lógica totalmente contrária à postura antivacinas do seu segundo mandato.
Em meio a tarifaços que vêm e vão, flutuações das bolsas de valores e bastidores de Washington e Brasília, absurdos como esses acabam virando notas de canto de página no noticiário diário. Mas eles afetam diretamente a saúde de milhões de pessoas – e não só nos EUA, já que tudo o que ocorre na maior economia influencia o resto do mundo.
Os resultados já aparecem: em pleno 2025, os EUA vivem o maior surto de sarampo desde que ganharam o selo de livre do vírus pela OMS, em 2000. Já são mais de 1.900 casos da doença (que é altamente contagiosa) e três mortes, sendo duas crianças. O surto começou no Texas e está se espalhando para outros estados, cortesia da baixa vacinação. Se o problema não for contido até janeiro de 2026, o país pode perder o status de eliminação. Casos de coqueluche também aumentam rapidamente por lá.
Existem muitas causas para a baixa vacinação, claro, entre elas falta de acesso a serviços de saúde e pouca informação de qualidade. Não dá para jogar tudo na conta do movimento antivacinas e de RFK Jr., até porque o problema ocorre em vários lugares do mundo (o Canadá vive um surto de sarampo ainda maior que o americano, por exemplo, e já perdeu seu status de eliminação da doença). Mas também não dá para ignorar a óbvia contradição de governantes com falas negacionistas justamente quando a imunização deveria ser prioridade.
“Negacionismo” foi uma palavra muito usada nos anos pandêmicos, você deve se lembrar. Talvez até demais, em uma retrospectiva (auto)crítica. De fato, havia uma parte da população que trabalhava para confundir e espalhar mentiras sobre vacinas. Mas uma outra porção, bem maior, estava simplesmente insegura, bombardeada por contradições nas redes durante a maior crise sanitária de suas vidas. Era natural que houvesse dúvidas sobre os novos imunizantes, temores que precisam ser tratados com seriedade pelas autoridades, profissionais de saúde e pela mídia. Não foi justo que muitas dessas pessoas também tenham sido taxadas de “negacionistas”.
Passados alguns anos, a palavra saiu um pouco de moda no noticiário e nas redes. Como na fábula do menino que gritava “lobo” todos os dias, o alerta se desgastou e perdeu força na opinião pública. Mas agora o lobo do negacionismo não só chegou como está no poder. Mais do que nunca, precisamos gritar mais alto.
Fonte: abril






