Política

Monumento à cegueira: A influência do STF no jornalismo brasileiro contemporâneo

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A imprensa que as classes culturais deste país consideram responsável, e para a qual o STF não vê necessidade de “regulamentação”, publicou dias atrás uma notícia imensa. O general Mario Fernandes, apontado pela PGR, a polícia e os jornalistas como a alma negra da “trama golpista” do dia 8 de janeiro, confirmou que sim, ele tinha um plano para executar o presidente Lula (por envenenamento), o ministro Alexandre de Moraes (forca) e, quem diria, até o vice Geraldo Alckmin — tudo a mando de Bolsonaro, é óbvio. Quem poderia ser, se não ele?

O depoimento do general Fernandes, de acordo com o noticiário publicado, foi uma “confissão” — na verdade, a prova mais espetacular, ou a única, que apareceu sobre a “trama golpista” até agora. Aí sim: depois do angu de alegações, miragens e afirmações cretinas que a PGR apresentou como “provas”, finalmente aparece alguma acusação que pode ser levada a sério. Seria a bunker buster que liquidaria de vez com o “golpe”, como a bomba usada pelos Estados Unidos para detonar as centrais atômicas do Irã. Mas, nesse caso, por que a notícia já sumiu, como um cometa? Porque ela é uma mentira fundamental.

O leitor com alguma experiência em distinguir o que dizem os títulos e o que está pasteurizado nas entranhas da notícia disse para si mesmo, assim que lhe jogaram em cima a “confissão” do general Fernandes. “Aí tem coisa.” E tinha mesmo. O general, ao depor em juízo, não confessou, nem confirmou, nem admitiu que tinha um plano para matar toda aquela gente — a “Operação Punhal Verde-Amarelo”, que a polícia apresentou e a mídia engoliu com casca e tudo meses atrás. O que ele teve foi, como disse, “um pensamento digitalizado”. O que seria isso? Umas divagações ao acaso, coisas que lhe rodaram pela cabeça e provavelmente gostaria de ter feito. Para não “cansar a vista” com a leitura, como disse, imprimiu cópias na impressora do Planalto. É isso a “prova-bomba” do regime.

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O então secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República, Mario Fernandes, durante o lançamento do Programa de Sustentabilidade da Presidência da República (3/5/2022) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Que crime seria esse — querer que o ministro Moraes acabe a sua vida pendurado num poste? Tudo bem: não deve haver ninguém querendo a morte de um político conhecido como “Picolé de Chuchu”. Mas Alexandre de Moraes? “Tenha dó”, seria capaz de dizer ele mesmo. Sabe-se lá quantos brasileiros (e até americanos, hoje em dia) pensam o que o general Fernandes pensou. Pensamento não é crime. Para o STF, o governo e a mídia é, com certeza. Mas para a lei em vigor não é. Da mesma forma, “pensamento digitalizado” não é plano de golpe, nem “ato preparatório” para nada. Não é planejamento para assassinato — pensar na morte de alguém é uma coisa, planejar um homicídio é outra.

O general Fernandes, enfim, não comunicou o seu pensamento, digitalizado ou impresso, para ninguém. Nem para Bolsonaro, para os seus superiores no Exército, nem para o célebre coronel Cid — a testemunha-chave da acusação, e sobre a qual se fundamenta todo o caso da PGR e do STF. Ou seja: a testemunha-chave dos acusadores nunca viu, leu ou ouviu o plano para a execução de Lula etc. Como é possível fazer um plano de golpe se o autor do plano não mostra para ninguém o que planejou — aliás, nem planejou, conforme acaba de dizer em juízo? Em suma: a “confissão” do general Mario Fernandes noticiada pela imprensa é o contrário de uma confissão. É uma negativa.

Eis aí o retrato em alta definição do que significa hoje no Brasil a atividade conhecida como jornalismo. A história do general Fernandes e do seu pensamento digitalizado não é um equívoco, desses que acabam na seção de “correções” depois de cometidos. É uma decisão deliberada; pode até ser automática, mas é feita de propósito. No caso, o título da matéria diz uma coisa e o texto diz outra, não porque o comunicador se atrapalhou com as informações na hora de escrever, mas porque quis mesmo deixar o público com a impressão de que aconteceu algo que não tinha acontecido. Na verdade, faz isso porque considera que é o seu dever, como profissional e cidadão: a exposição dos fatos como eles são pode levar a conclusões incorretas e ser aproveitado pelo “bolsonarismo”, “golpismo” etc. Ou, então, age assim porque é um militante de esquerda. Dá na mesma, num caso e no outro.

É esse o procedimento-padrão no noticiário político de hoje: a ideia é aplicar uma espécie de vacina obrigatória para imunizar o público contra os riscos do pensamento que a junta de governo Lula-STF considera “antidemocrático.” Por conta disso, o jornalismo deixou de ser a entrega de informação e passou a ser o fruto da aplicação, na mídia, de um sistema de IA que poderia ser chamado de CA — ou Cegueira Artificial. A CA basicamente bloqueia os circuitos cerebrais que identificam fatos e reconhecem suas realidades. Em vez de relatar os acontecimentos, assim, o noticiário político reproduz mecanicamente o que o programa de CA lhe manda publicar.

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O Presidente Do Brasil, Luiz Inácio Lula Da Silva, Participa De Cerimônia No Palácio Do Planalto, Em Brasília, Brasil (30/7/2025) | Foto: Reuters/Adriano Machado

Nas suas versões mais avançadas, o sistema elimina todos os perigos da presença de vida inteligente no que a imprensa publica. Há um raciocínio lógico aqui? Há uma conclusão racional ali? O CA acende na hora uma luz vermelha na tela do computador e troca o que deveria ser dito pelo seu exato contrário. Todas as vezes que encontra algo claro, joga escuridão em cima. Pense de novo na história do general Fernandes. A informação certa era: “General nega plano para matar Lula”. O que sai é: “General confessa plano para matar Lula”. Mais ainda, sai a mesma coisa em todo lugar. Até algum tempo atrás, um jornalista se orgulhava de dar uma notícia com exclusividade. Hoje o seu sonho é dar a notícia o mais parecida possível com a do concorrente.

A ideia-matriz é concordar com o STF, e principalmente com o ministro Alexandre de Moraes, em tudo. Eles dizem que houve um “golpe armado” numa baderna em que, segundo a própria polícia, as únicas armas encontradas foram um par de estilingues? (Está nos autos, com foto e tudo.) A mídia repete imediatamente: “Houve um golpe armado”. Uma senhora de 74 anos, que está entrevada numa cadeira de rodas, é mandada de volta para a prisão fechada porque é um risco para a segurança pública, segundo o ministro Moraes? A mídia assina embaixo. A cabeleireira do batom está condenada a 14 anos de cadeia? A mídia acha que a decisão é perfeitamente correta. A noção de absurdo foi abolida no Brasil pelo STF. A mídia aboliu junto.

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Alexandre de Moraes em audiência no STF (15/7/2025) | Foto: Antonio Augusto/STF

É um princípio inegociável, para todas as ditaduras, falsificar o significado das palavras tais como elas estão no dicionário e na lógica para inventar a sua própria História. A mídia brasileira imita esse vício com disciplina de monge beneditino. Censura é “regulamentação das redes sociais”. Moraes isola a Praça dos Três Poderes num raio de 1 quilômetro; a mídia diz que a praça foi “protegida” num raio de 1 quilômetro. Após dois anos e meio de investigação, não há nenhuma prova material de golpe, nem uma que seja. A mídia, a cada vez que toca no assunto, diz que as provas são “robustas”. Barbeiros, motoboys e vendedores ambulantes do 8 de janeiro são descritos, obrigatoriamente, como “golpistas”. O STF não recebe críticas; só recebe “ataques”. Os advogados dos réus são citados pela mídia como “advogados bolsonaristas”.

A cegueira dos meios de comunicação deriva de um princípio constitucional que não existe — o de que é proibido legalmente no Brasil, como os jogos de azar ou a impressão clandestina de moeda, algo chamado bolsonarismo. É um artigo não-escrito de todos os manuais de redação hoje disponíveis, e o jornalista-padrão acredita nisso como se acreditava antigamente nos números da lista telefônica. Moraes, o STF (“derrotamos o bolsonarismo”) e o governo Lula são os aiatolás mais dedicados dessa jihad contra o grande satã; por via de consequência, para a imprensa, têm razão em tudo. Nesse tipo de crença, a verdade dos fatos é um estorvo que tem de ser combatido o tempo todo.

Fonte: revistaoeste

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