Com o pacote de ajuda aos setores afetados pelo tarifaço, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) somará R$ 336,9 bilhões em despesas retiradas das regras fiscais do início do mandato até agora.
O montante inclui R$ 327,4 bilhões que já haviam sido excluídos entre 2023 e 2025 e os R$ 9,5 bilhões do novo pacote.
Para viabilizar um apoio de R$ 30 bilhões às empresas impactadas pelo tarifaço, o Tesouro fará o aporte direto de R$ 4,5 bilhões a fundos garantidores, como lastro aos financiamentos. Outros R$ 5 bilhões correspondem à renúncia fiscal via programa Reintegra — que devolve valores tributários gastos na produção às exportadoras.
Caso aprovada pelo Congresso, a medida configurará mais um exercício de contabilidade criativa para assegurar o cumprimento da meta deste ano, que é zerar o déficit primário da União. Mesmo que o Legislativo não aprove, o Planalto poderá recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), que tem autorizado tais iniciativas.
Tarifaço deveria ser acomodado no limite de despesas
Para Alexandre Andrade, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, as medidas só reforçam a desconfiança sobre o equilíbrio dos gastos governamentais. “Essas práticas afetam, de alguma forma, a percepção dos agentes em relação ao compromisso do governo com as regras fiscais e com a sustentabilidade da dívida pública”, diz.
João Pedro Paes Leme, economista da Consultoria Tendências, destaca que o maior problema é o precedente que se abre. “Você acaba criando uma cadeia de incentivos para sempre que houver uma emergência excluir itens da meta, sempre recorrer a esse tipo de instrumentação do waiver [licença formal para descumprir a regra]”, diz.
“O arcabouço já contempla uma margem de 0,25% para acomodar imprevistos, como o tarifaço. Mas o governo não mira o centro da meta”, acrescenta.
Fernando Schüler, cientista político e economista do Insper, afirma que a exclusão dos gastos da meta virou “uma saída fácil para o país”. “Formalmente, respeitamos uma regra fiscal, mas aceitamos a excepcionalização quase recorrente dessa mesma regra”, diz.
“A alternativa correta, de cortar gastos e estabelecer prioridades, não é considerada. Governo e o Congresso – que também conduz isso – não se dispõem a definir prioridades. A solução fácil é criar manobras fiscais crônicas, como essa do tarifaço.”
Na prática, o governo finge que cumpre o arcabouço fiscal, mas excetuados gastos, sequestrando as receitas futuras, ainda acrescidas de juros. “O Brasil aposta num déficit crônico, que vai para a dívida, contratando empréstimo a 15% [patamar da taxa Selic]”, diz Schüler.
“Quando vi aquelas pessoas sorrindo na assinatura da MP do tarifaço, pensei: ‘Ninguém está pagando a conta’. Como dizem, o lobby mais fraco em Brasília são os que não nasceram ainda, ou seja, as futuras gerações.”
Transição, calamidade, queimadas, tarifaço e mais: as despesas excluídas da meta fiscal no governo Lula
2023
- Precatórios: R$ 92,3 bilhões
- PEC da Transição: R$ 145 bilhões
- Apoio cultural R$ 3,8 bilhões
Total: R$ 241,2 bilhões
2024
- Calamidade no Rio Grande do Sul: R$ 29 bilhões
- Renúncia de receitas (Calamidade RS): R$ 124 milhões
- Queimadas: R$ 1,4 bilhão
- Recomposição do teto do Judiciário: R$ 1,3 bilhão
- Estatais federais: R$ 1,9 bilhão
Total: R$ 33,7 bilhões
2025
- Precatórios: R$ 48,6 bilhões
- Estatais federais: R$ 3,7 bilhões
- Socorro a afetados pelo tarifaço: R$ 9,5 bilhões
Total: R$ 61,8 bilhões
Total 2023-2025: R$ 336,9 bilhões
De saída, governo apostou em aumentar gastos
Os dribles ao Orçamento para atingir o limite de gastos – exemplificados pela ajuda ao tarifaço – não são prática nova, mas na gestão petista foram potencializados.
Logo de saída, os recursos da PEC da Transição – nada menos que R$ 145 bilhões excluídos da regra fiscal – serviram para reforçar programas sociais como o Bolsa Família e garantir investimentos públicos no início do atual mandato.
Ainda em 2023, uma decisão do STF autorizou o governo a pagar parte dos precatórios à margem da regra fiscal até 2026. A licença permitiu a retomada do pagamento dessas dívidas depois de o Tribunal barrar emenda constitucional de 2021 que postergava sua quitação. Só naquele primeiro ano, a exclusão desses débitos somou R$ 92,3 bilhões.
A partir daí, as exceções foram sendo normalizadas. No mesmo ano, o governo federal utilizou o artigo 65-A da Lei de Responsabilidade Fiscal para excluir da meta fiscal transferências de quase R$ 3,9 bilhões destinadas ao setor cultural.
O montante foi repassado via Lei Paulo Gustavo. A medida permitiu que estados, municípios e o Distrito Federal recebessem apoio financeiro emergencial para ações culturais sem impactos fiscais. O artigo em questão da LRF dispensa a contabilização, para fins de meta fiscal, das transferências a governos regionais.
Excepcionalidades englobam chuvas no RS, queimadas e teto do Judiciário
Em 2024, R$ 31,8 bilhões em deduções da meta fiscal foram justificadas por situações excepcionais. O maior impacto veio do decreto de calamidade pública no Rio Grande do Sul, que permitiu gastar R$ 29 bilhões fora da regra fiscal. Também foi destinado R$ 1,4 bilhão ao combate a queimadas na Amazônia e no Pantanal, sob a rubrica de emergência climática.
Além disso, foi retirado R$ 1,3 bilhão para recompor o teto do Judiciário e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), após decisão do TCU no Acórdão 1.103/2024. A recomposição foi feita por medida provisória, que chegou a ser criticada no Legislativo. O governo defendeu a MP como um ajuste “técnico e emergencial” para corrigir um erro de cálculo no teto de gastos, que havia desconsiderado auxílio-moradia como despesa regular.
o governo Lula ainda tentou excluir as despesas do Pé-de-Meia e do Auxílio Gás da meta fiscal, mas desistiu após críticas e risco de ser acusado de pedaladas fiscais, semelhantes às que ocorreram no governo Dilma Roussef (PT). Por se tratarem de despesas obrigatórias e vinculadas a direitos sociais, não poderiam ser ignoradas na meta fiscal.
O governo também exclui gastos das estatais federais da meta fiscal. Trata-se, principalmente, de investimentos e despesas operacionais de empresas como Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e BNDES, que utilizam recursos próprios e não dependem diretamente do Tesouro Nacional.
O argumento é que déficits podem ocorrer devido a investimentos em projetos importantes, e não representar prejuízos financeiros para o país. As exclusões somaram R$ 1,9 bilhão em 2024, e para 2025 estão previstos R$ 3,7 bilhões.
Precatórios voltaram ao debate, mas continuarão excluídos da meta
A exclusão dos precatórios representa o maior valor retirado do arcabouço fiscal em 2025. Serão R$ 48,6 bilhões pagos a credores do Estado brasileiro fora da meta até o fim do do ano. Para 2026, no entanto, a situação pode mudar.
Atualmente, a sistemática provisória em vigor é resultante da decisão do STF de maio de 2023, que autorizou o governo a excluir parte dos pagamentos fora das regras fiscais até o fim de 2026. Mas a determinação para o pagamento total do dispêndio dentro da regra fiscal a partir de 2027 limitaria drasticamente o espaço orçamentário do governo para outros gastos.
A PEC 66/2023, apresentada pelo Congresso Nacional, pretende tornar essa reincorporação muito mais suave e, na prática, abrir espaço no Orçamento e reduzir a chance de colapso nas contas públicas. O texto passou pela Câmara e foi aprovado em primeiro turno no Senado, por 62 votos a 4. Falta apenas a votação em segundo turno e a consequente promulgação pelo Congresso para que as novas regras entrem em vigor, já que emendas constitucionais dispensam sanção presidencial.
Para Schüler, a situação dos precatórios é “escandalosa”. “Pagamos precatórios com dívida pública”, diz. “É uma malandragem para evitar a saída difícil e necessária do ajuste fiscal. E a mágica é paga pelo contribuinte.” Ele critica a conivência do Supremo Tribunal Federal. “O STF faz o mesmo, aceitando tudo no Brasil como excepcional”, diz.
“O ministro [Luís] Fux tirou os precatórios das regras”, lembra Schüler em referência à decisão de 2023. “O [ministro] Flávio Dino excepcionalizou recursos para combate a incêndios com uma canetada, um recurso que deveria ser parte de um programa básico de emergência ambiental. E recentemente, [ministro] Dias Toffoli tirou do orçamento o ressarcimento das vítimas de fraudes do INSS.”
Para ele, o Supremo está ajudando a fazer gestão orçamentária, que deveria ser papel do Legislativo. “No caso dos aposentados, a Advocacia-Geral da União defendeu a exclusão argumentando que as fraudes estavam ferindo direitos fundamentais, logo era constitucional, e, portanto, caberia ao Supremo decidir”, explica.
“Mas a regra fiscal é aprovada pelo Congresso, a gestão orçamentária é do Congresso, e créditos extraordinários são aprovados pelo Congresso. Como um ministro do Supremo toma essa decisão? Ninguém pergunta isso no Brasil. Virou habitual. Isso é desorganização do pacto republicano, um desleixo com a lei e as instituições”, afirma o cientista político.
Exceções exigirão ajuste mais rígido
Para Paes Leme, o governo tem tentado contornar a insustentabilidade da regra fiscal, já consolidada na percepção do mercado e do próprio governo. O valor das despesas obrigatórias já consome praticamente todo o orçamento federal, diminuindo recursos para investimentos e até para a manutenção de serviços da máquina pública.
O percentual das despesas em saúde e educação obedece a pisos mínimos estipulados pela Constituição e não pode ser reduzido. Outras despesas importantes, como Previdência e benefícios sociais, estão atreladas ao salário mínimo, que tem ganho real acima da inflação — ou seja, acima do limite estabelecido pelo arcabouço.
Para este ano, além das manobras fiscais e do tarifaço, o governo deve conseguir cumprir a meta lançando mão de receitas não recorrentes, como distribuição de dividendos, venda de barris excedentes de petróleo e leilão de campos de pré-sal. Mas o ajuste, segundo o economista, terá de ser mais duro.
“Quando você descredibiliza a regra fiscal, as coisas ficam mais difíceis para futuras reformas. Regras terão que ser mais rigorosas e diretas, como já vimos no caso do teto de gastos. Sem isso, será necessário convencer cada vez mais a população e os agentes de mercado de que há uma busca real por sustentabilidade fiscal.”
Fonte: gazetadopovo