Via @jornaloglobo | A respiração é ofegante. É preciso parar por dez segundos para recobrar o fôlego e prosseguir na fala. Com a voz embargada, a juíza Tula de Mello diz: “É preciso continuar.” Pela primeira vez, ela quebra o silêncio e descreve seus sentimentos diante do assassinato brutal do marido, o agente da equipe de elite da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) João Pedro Marquini Santana, de 38 anos. O crime, que ela define como um “fato repugnante”, ocorreu na noite do último domingo, na subida da Grota Funda. Ela não quer ser vista como vítima, mas como uma mulher que lutará por um Rio melhor.
— Fui metralhada, mas não serei mais uma vítima. Estou aqui na condição de uma mulher que lutará pelo Rio. João me protegeu, mas não está mais comigo. Ele entregou a vida para que eles (criminosos) cessassem os disparos, o que me possibilitou fazer uma manobra de 180 graus, em curva rápida e marcha à ré, garantindo minha sobrevivência ao ataque — disse a magistrada.
O veículo, um Mitsubishi Outlander, fora atingido com quatro tiros de fuzil no vidro da frente, cuja blindagem não era compatível com disparos daquele calibre, mas sim com os de pistola.
Tula Corrêa relembra que João mantinha uma rotina de enviar vídeos e instruções, de forma leve, perguntando se ela saberia executar as manobras para se defender. Ela aprendeu as técnicas defensivas e evasivas com a ajuda do marido e também com os ensinamentos do curso da Secretaria Geral de Segurança do Tribunal de Justiça do Rio.
— Ele (João) sempre me perguntava se eu saberia fazer as manobras. Minhas respostas eram sempre afirmativas. Relembrávamos os conceitos das técnicas, como distância, métodos de observação, entre outros abordados no curso do tribunal. A vida dele não foi em vão. Salvou a minha — desabafou Tula Mello.
A entrevista exclusiva da magistrada ao blog Segredos do Crime ocorreu após mais de cinco horas de depoimento na Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), na última quarta-feira, quatro dias após o assassinato do marido e a tentativa de matá-la. Tula Mello se emocionou. Em boa parte da entrevista, precisava buscar as palavras — um relato marcado pela dor. Um sofrimento inimaginável para quem conhece a juíza Tula Mello, por sua desenvoltura e firmeza na condução dos julgamentos no Terceiro Tribunal do Júri, do qual é titular.
A juíza Tula Correa de Mello após depoimento na Delegacia de Homicídios da Capital — Foto: Vera Araújo
Juíza viúva de policial da Core morto a tiros por bandidos posta vídeo de recordação
— João me amou como nenhum homem jamais me amou, e me fez sentir a mulher mais amada deste mundo. E essa mulher, hoje aqui, não se encontra na condição de vítima — condição esta que, queiram ou não, me recuso a assumir. Com todas as minhas forças, serei agente de transformação para uma cidade livre, justa e fraterna. Não arrancaram um cordão de ouro do meu pescoço — arrancaram a vida de João, e isso é inegociável — disse a magistrada.
Juíza fez pausas para gravar vídeo
Ao gravar o vídeo para O GLOBO, a juíza Tula Mello precisou fazer algumas pausas. Queria deixar clara a mensagem de que o momento mais difícil de sua vida não foi resultado de uma tragédia inesperada. Para organizar o que diria, escreveu anotações em uma agenda pessoal — com uma letra que só ela compreendia, assim como a própria dor.
Tula recebeu a foto acima do marido, João Marquini, das mãos de um amigo dele após o enterro: “Olha o sorrisão dele”, comenta ela. — Foto: Álbum de família
Durante a gravação, teve de repetir algumas vezes o discurso até conseguir terminar:
— Agradeço pela oportunidade de me manifestar e pelo respeito que a imprensa teve ao aguardar esse pronunciamento, no momento de profunda dor. Trouxe poucas palavras, e de forma escrita, pois é um assunto tão caro para mim que não me permitirei errar. Compareço hoje (2 de abril), retornando à DH, para me colocar à disposição para esclarecimentos de um fato repugnante — mas que não se trata de uma tragédia. Tragédia é algo inesperado, um evento como o terremoto que aconteceu semana passada na Tailândia. Casais de férias em uma piscina com ondas no alto de um prédio. Isso é uma tragédia. O que aconteceu foi um crime gravíssimo, escolha de homens que se organizaram para atos terroristas — definiu ela.
Segundo Tula Mello, não é possível atribuir o que aconteceu a um conceito genérico como “violência” — algo, segundo ela, “efêmero demais para algo que sangra, que causa dor e sofrimento”. Para a magistrada, trata-se de um ato terrorista, cujos responsáveis têm “nome e sobrenome”:
— O que aconteceu tem nome, literalmente tem nomes e sobrenomes, e é nessa condição que me encontro neste local (DHC): para elucidar e permitir a punição de cada um desses nomes. O ato terrorista que cometeram foi contra um casal que não optou pelo crime, mas sim por um trabalho duro, dedicado e diário, pela família — e mais: pela sociedade na qual nós acreditávamos poder circular pelas ruas, ouvir nossas músicas, curtir o futebol nos momentos de descanso e retornar para casa cedo, para o trabalho que se iniciaria novamente na manhã de segunda-feira — ressaltou.
Policial João Marquini e juíza Tula Mello — Foto: Reprodução
Mas a manhã da última segunda-feira de Tula Mello não começou com a rotina. Ela esteve no Instituto Médico-Legal (IML) para reconhecer e liberar o corpo do marido:
— João, operador de elite da Core, que amava a cidade do Rio em todos os seus detalhes, que amava as forças especiais com todo o seu coração, que se dedicava por inteiro e integralmente em tudo que fazia: família, amigos e seus irmãos, Falcões — disse ela, com a voz embargada.
Os passos da investigação
A magistrada optou por omitir detalhes sobre o dia do crime, para não comprometer as investigações, que seguem sob responsabilidade da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC). Segundo fontes da delegacia, o caso está em fase avançada de elucidação. Uma das peças-chave é um amigo da vítima, um policial militar, com quem João Marquini conversava pelo viva-voz do celular segundos antes de ser assassinado.
Juíza Tula Mello se declara ao marido morto por bandidos no Rio: “Voa, meu amor, além do infinito” — Foto: Reprodução
Ao perceber que criminosos haviam atravessado um Tiggo 7 prata na Serra da Grota Funda, o agente da Core, que dirigia um Sandero à frente do Outlander blindado da esposa, sinalizou para que a magistrada se afastasse. Tula Mello, de imediato, recordou-se das manobras evasivas e defensivas. A vítima foi atingida por dois tiros no tórax, dois em um dos braços e um na perna, morrendo no local.
O carro usado pelos criminosos foi encontrado na comunidade Cesar Maia, em Vargem Pequena, na Zona Oeste, a 11 quilômetros da cena do homicídio. O Tiggo 7 está sendo periciado em busca de digitais dos suspeitos, assim como o celular de João Marquini, que foi apreendido pela DHC. Peritos do Instituto de Criminalística Carlos Ébolli (ICCE) analisam também o veículo blindado da juíza.
Tiggo 7 usado por bandidos era roubada e ostentava uma placa clonada — Foto: Marcos Nunes/Agência O Globo
Por Vera Araújo
Fonte: @jornaloglobo