Os Estados Unidos anunciaram que usarão “todo o poder americano” contra Maduro e que, até a próxima semana, navios de guerra estarão perto da Venezuela. A demonstração de força do governo Trump, no entanto, resgatou a lembrança de dezembro de 1989, quando o presidente George H. W. Bush (o pai) ordenou a invasão militar do Panamá.
A chamada Operação Justa Causa, que depôs Manuel Antônio Noriega, é lembrada como um dos episódios mais marcantes do fim da Guerra Fria na América Latina e uma amostra da forma como Washington lidaria, dali em diante, com regimes considerados hostis ou ilegítimos em seu próprio hemisfério.
A intervenção no Panamá
O governo Bush justificou a invasão do Panamá com quatro argumentos centrais. O primeiro foi a proteção de cidadãos norte-americanos, após uma série de incidentes envolvendo militares dos Estados Unidos no país. O segundo, a restauração da democracia, já que Manuel Noriega havia anulado a vitória do opositor Guillermo Endara nas eleições de maio de 1989.
Washington também apontou o combate ao narcotráfico, lembrando que o ditador já respondia a processos nos Estados Unidos por ligações com o Cartel de Medellín. Por fim, destacou a necessidade de garantir a segurança do Canal do Panamá, rota estratégica para o comércio internacional.

Amparada em acordos bilaterais e no argumento de legítima defesa, a invasão mobilizou 27 mil soldados norte-americanos, apoiados por centenas de aeronaves e blindados, que em poucas horas esmagaram as Forças de Defesa do Panamá. Noriega refugiou-se na Nunciatura Apostólica até se render em 3 de janeiro de 1990, sendo então transferido para Miami. Lá, foi julgado, condenado por narcotráfico e passou duas décadas em prisões nos Estados Unidos e na Europa. Morreu em 2017, aos 83 anos, no Panamá.
Maduro pressionado
Mais de trinta anos após a invasão do Panamá, Trump ordenou o envio ao Caribe de três destróieres e três navios anfíbios, transportando cerca de 4.500 militares, incluindo 2.200 fuzileiros navais. Embora o Pentágono não tenha detalhado a missão, a Casa Branca afirma que o objetivo é combater organizações “narcoterroristas” na região que teriam Nicolás Maduro e altos oficiais do regime chavista como líderes.
O governo dos Estados Unidos elevou a recompensa pela captura de Maduro a 50 milhões de dólares, um valor inédito na América Latina. Para Trump, o líder venezuelano não é um presidente legítimo, mas sim o chefe fugitivo de um cartel de drogas, e por isso estaria sujeito a todas as ferramentas de pressão de Washington, desde sanções diplomáticas e econômicas até a possibilidade do uso da força militar.
Advogados de Noriega comparam Panamá a Venezuela
O jornal El Nuevo Herald, de Miami, entrevistou dois advogados que participaram do caso Noriega. Para ambos os juristas (Richard Gregorie, que acusou o ditador, e Jon May, que o defendeu), existem mais diferenças do que semelhanças entre o contexto panamenho e o atual, de Maduro.
Eles consideram pouco provável que Trump, que manifestou aversão a comprometer tropas americanas em guerras ao redor do mundo, arrisque invadir um país do tamanho da Venezuela. O presidente venezuelano, assim como o ditador panamenho, foi acusado por um grande júri de Nova York em 2020 por crimes relacionados ao narcotráfico.
Mas Maduro é o líder de um país rico em petróleo e minerais que, apesar de seus problemas econômicos, é muito maior e mais poderoso que o Panamá.
Outra diferença é que Maduro não exerce o mesmo grau de controle sobre suas forças armadas que o ditador panamenho nos anos 1980. Na época, tropas americanas já protegiam o Canal do Panamá, que estava sob controle dos Estados Unidos.
“Há algo mais acontecendo além do narcotráfico”, afirmou a El Nuevo Herald Gregorie, que trabalhou mais de 40 anos como promotor federal de alto nível em Miami e outras partes dos Estados Unidos antes de se aposentar em 2018. “Essa não é a razão pela qual Trump está enviando esses navios para lá. Há mais em jogo e existe informação de inteligência à qual eu não tenho acesso”, completou, apontando os vínculos da Venezuela com o Irã e seus importantes recursos minerais.
May, que defendeu Noriega em seu julgamento de 1992 em Miami, concordou com o ex-promotor ao afirmar que, embora Maduro e Noriega pareçam alvos semelhantes como acusados de narcotráfico nos Estados Unidos, invadir a Venezuela seria uma loucura. E destacou que o envio da frota de destróieres e navios de guerra por Trump é uma missão “modesta”, mas talvez “apenas barulho de sabres suficiente” para ajudá-lo a ele e aos republicanos nas eleições legislativas do próximo ano.
“Foi realmente fácil para o exército dos Estados Unidos esmagar o Panamá”, disse May, “mas não seria o mesmo na Venezuela. Lá há um exército altamente motivado que ofereceria uma resistência feroz. Seria suicídio”.
Semelhanças: fraude eleitoral e ruptura democrática
Apesar das diferenças, no Panamá de 1989, Guillermo Endara venceu de forma incontestável as eleições, segundo observadores internacionais como o ex-presidente Jimmy Carter. Noriega, contudo, simplesmente anulou o pleito, manteve o candidato governista Carlos Duque afastado e continuou no poder por meio do controle das Forças de Defesa. A imagem de Endara sendo espancado em plena rua por agentes do regime tornou-se símbolo da ruptura democrática no Panamá.
O roubo eleitoral se assemelha à Venezuela de 2024, quando o opositor Edmundo González Urrutia também venceu as eleições contra Nicolás Maduro mas não assumiu. Assim como em 1989 no Panamá, a falta de credibilidade eleitoral reforça as acusações de ilegitimidade do regime venezuelano, abrindo espaço para que potências estrangeiras questionem a permanência de Maduro no poder.
Paradigmas contemporâneos
Apesar da rápida vitória militar, a Operação Justa Causa deixou suas marcas. Estima-se que entre 300 e 500 civis panamenhos tenham morrido durante os bombardeios e combates, embora organizações locais falem em números bem mais altos. No total, 23 soldados norte-americanos e 3 civis norte-americanos morreram. A Assembleia Geral da ONU, a Organização dos Estados Americanos e o Parlamento Europeu condenaram a invasão como uma violação do direito internacional.
Assim como em 1989, quando a invasão do Panamá começou semanas após a queda do Muro de Berlim e o início de uma nova ordem internacional, o cenário global atual também se encontra em um momento de profunda transformação.
O jornal Ciber Cuba, de exilados cubanos sediado em Valência, na Espanha, explicou que da mesma forma que a Rússia atacou a Ucrânia, rompendo a ordem surgida após a Segunda Guerra Mundial, a administração de Donald Trump “poderia sentir-se tentada a jogar uma partida semelhante no hemisfério ocidental e tentar eliminar a influência de Moscou em seu ‘quintal’”.
Segundo o periódico, sob essa lógica, Washington passaria de seu papel histórico como garantidor da antiga ordem, baseada em regras e consensos multilaterais, para uma aventura de consolidação de poder regional, destinada a reafirmar sua influência estratégica no Caribe e na América do Sul.
Eles concluem com o seguinte raciocínio: “Nesse sentido, a operação naval diante da Venezuela não seria lida apenas como parte da luta contra o narcotráfico, mas também como um movimento dentro da disputa global pelas esferas de influência, em que cada potência mede forças para marcar território frente a seus rivais”.
No caso venezuelano ainda, qualquer cenário de intervenção militar enfrentará obstáculos ainda maiores, dada a resistência de atores como Rússia, China e até aliados ocidentais à repetição de uma operação unilateral.
Fonte: gazetadopovo